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Tá seca, mas já foi molhada também T O senhor tem uma foto com a bota molhada?

A senhora Lili: um olhar psicanalítico sobre as demências

CAPÍTULO 4 A Clínica de linguagem e sujeitos com demência

P. Tá seca, mas já foi molhada também T O senhor tem uma foto com a bota molhada?

P. Quando tá molhada tá... tá... Quando não tá seca, tá verde (olha para a planta da sala)

T. Verde? Essa planta tá molhada, não tá seca, né Mario? P. Não tá seca, não tá feia, não tá meia, meia... tá verde. T. É sim, ela tá verde! E sua bota tá seca...

P. A bota tá seca

(LANDI, 2010, P. 110)

Em (1), a paciente responde à fala do outro – referência interna - com pertinência textual e com uma fala que não fere a representação gramatical. Em (2), o falante mantém em movimento no diálogo, sob efeito

114 dos significantes da fala do outro e da própria fala. Entretanto, a fala não faz signo e o laço se dilui. Landi observa:

Se, na demência, o sujeito vai fugindo do outro, a linguagem vai perdendo função comunicativa e se revolve em torno de uma mesma massa sonora, caminha apoiada na repetição da fala do outro, de expressões formulaicas que irrompem na fala do paciente, as quais não podemos determinar nem a fonte (de onde ela vem) e nem para quem ela é, de fato, endereçadas. Mas, só no final, a fala perde laço com falas (própria e do outro) (idem, ibidem: 110).

O sujeito com demência fala suas vivências e, por aí, pode-se deduzir que há falante na fala. O que chama a atenção é a cisão entre fala e escuta, ao contrário da posição do paciente afásico como já assinalei. A partir disso, Landi pode atestar que enquanto houver fala na demência, há movimento regido pela reflexidade da linguagem. Isso quer dizer que mesmo “desorientado”, o demenciado fala as suas vivências. Há língua, há falante, há memória na demência. Entretanto, o modo de relação do sujeito com a própria fala e a do outro está abalado. Como efeito, perde-se a função comunicativa e a referência externa.

Emendabili (2010), pesquisadora filiada à reflexão da Clínica de Linguagem, concorda com Landi ao sublinhar que aquilo que o sujeito diz, mesmo que desorientado da referência externa, “é carregado de vivências subjetivas” (idem, ibidem, p 1). Com LIER-DeVITTO, Fonseca e Landi (2007), a autora sustenta que “falas de pacientes com demência revelam uma “dissolução subjetiva” – o passado vai sendo esquecido, o laço social se esgarça e tem-se um abalo na unidade imaginária do eu”. (EMENDABILI,

2010, p. 86). Assim, ela visualiza a possibilidade de uma clínica com o objetivo de “sustentar o falante na fala”. Nesse caso, o clínico deve suportar “ficar tanto fora de um sentido desejado ou antecipado” (idem, ibidem, p. 84).

Fonseca, recentemente, tem discutido a distinção entre afasias e demências, ou melhor, a posição do falante afásico e do sujeito com demência. Sua vasta experiência com afásicos, a fez atestar que são quadros de

115 linguagem distintos. Ou seja, não há afasia na demência. Em uma comunicação oral, ela assegura:

Embora Landi e Emendabili tenham nos feito ver que é lícito falar de sujeito mesmo na demência, não se pode desconsiderar que entre os estudiosos da demência há consenso relativamente ao fato de que nela está implicada uma gradativa dissolução subjetiva que caminha em paralelo com - uma também gradual e incontornável - deterioração da linguagem (LANDI, 2007). Note-se que, na afasia, esse paralelismo não faz sentido porque não há dissolução: nem subjetiva, nem linguística (FONSECA, 2012, oral).

Dissolução subjetiva que marca o desencontro entre sujeito e falante na demência, como a autora abordou ao relatar fragmentos do acompanhamento da senhora A. com diagnóstico de demência. Sobre os episódios dialógicos, Fonseca notou que a senhora “não era indiferente” à fala do terapeuta. Ela tomava a fala do outro como uma demanda enunciativa e em seu dizer persistia o jogo combinatório da língua, apesar do efeito de “fala vazia” devido às estereotipias verbais. No entanto, a autora destaca os indícios da incidência do sujeito na cadeia falada de A. Em suas palavras:

Não posso deixar de notar, mais uma vez, a presença de hesitação em meio ao compasso e, ao mesmo tempo, descompasso entre o que diz a Sra. A. e a cena enunciativa na qual o diálogo se apresenta. Acontecimentos simultâneos que nos confrontam com a não-coincidência entre sujeito e

falante. (idem, ibidem) (grifo meu).

O descompasso entre o dizer e a cena enunciativa, certamente, impõe outras direções clínicas quanto à sustentação do tratamento/acompanhamento. A fala “fora de tempo e fora de lugar” diz sobre um sujeito alienado na própria fala. Essa constatação, ressalta Fonseca, não pede de vista a ausência de queixa e demanda para mudança. “Ausências que, sem dúvida alguma, criam embaraços para a configuração de um setting clínico” (idem, ibidem, oral).

116 De um modo geral, os trabalhos de Landi (2007), Emendabili (2010) e Fonseca (2012) identificam a especificidade da demência no que diz respeito à posição do falante frente à própria fala e à fala do outro. Especificidade caracterizada por: (1) distinção entre afasia e demência, principalmente na relação fala e escuta. A escuta presa ao imaginário do falante, como semelhante, não se sustenta na demência; (2) a demência envolve a dissolução subjetiva, marcada pela dominância da dissolução imaginária; (3) a fala presa às vivências – presa ao simbólico – desencontra a cena enunciativa (referência externa).

Sobre o “aprisionamento” em cenas vividas, pude observar quando supervisionei a avaliação da senhora Hilda 71 em uma instituição de longa permanência. Apesar das suas queixas de memória e as dificuldades para executar as tarefas cotidianas, ela não tinha o diagnóstico de demência confirmado.

Inicialmente, chamou a atenção que o “falar de si” tomava conta dos encontros. Qualquer texto iniciado pela terapeuta, deflagrado pela leitura do jornal, de uma crônica, deslizava, facilmente, para cenas vividas (em negrito, logo abaixo). Ela tinha dificuldade em se manter no texto do outro. No trecho abaixo, a terapeuta leu uma reportagem de jornal sobre fortes chuvas na região sul do país. Após a leitura em voz pela terapeuta, seguiu-se o seguinte diálogo: H: Mas meu Deus, essa noite?

T: Segunda –feira, dia 26 de abril [não era a data próxima ao atendimento] [terapeuta continua lendo]

H: Meu Deus do céu! Que barbaridade!

T: Então o que a senhora entendeu do que eu li? A senhora entendeu né? H: Meu Deus do céu, castigo isso. Meu Deus do céu, que judiação.

T: Então, o que a senhora entendeu do que eu li? H: Deus u livre um prejuízo desse, judiação.

T: Prejuízo do que mesmo, dona H? O que aconteceu?

71 Esse caso foi atendido por uma aluna do curso de Fonoaudiologia e supervisionado por mim. Partes das sessões foram transcritas e estão no trabalho de conclusão de curso “Sobre a fala de uma idosa institucionalizada: considerações sobre a linguagem e o sujeito na Clínica de Linguagem” (WAGNER, 2010).

117 H: Prejuízo de tudo jeito. Das casa, da saúde, das pessoa, enchente desse jeito prejudica a saúde pro pessoar, a água demais prejudica a saúde do pessoar.

T: Aonde aconteceu tudo isso?

H: Foi na Vila São João [bairro que a senhora H. morava, mas que não aparecia na reportagem] decerto esses dias que tava dando no rádio, mas quase nóis não ligamo o rádio, e// a dona “B”, ela sempre gostava mais de

liga o rádio do que eu, eu engraçado, ligo só cedo, ali pelas nove hora, escuto o programa do padre e não me lembro mais de liga. Meio dia tem tanta notícia

T: É, tem bastante notícia