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A senhora Lili: um olhar psicanalítico sobre as demências

CAPÍTULO 4 A Clínica de linguagem e sujeitos com demência

M: não eu não tenho medo, mas me dá uma vontade de sará logo disso.

75 Medicamento usado para tratar a

demência do tipo Alzheimer de intensidade leve a moderada com ou sem doença vascular cerebral relevante. Principio ativo: hidrobrometo de galantamina; Classe terapêutica: Anticolinesterásicos.

121 A paciente queixa-se da “falta de memória”, mas “nem quer contar” e oscila entre “aumentar” e “fracassar” a memória, entre ter ou não Alzheimer: ela quer “sará logo disso”. Neste momento, ela também diz sobre o seu fracasso – cerebral e de posição na família – “eles querem que eu tome”. Um pedido de ajuda se presentifica: “dá uma vontade de sará”... mas ficamos na dúvida se esse apelo era dirigido ao clínico e, se ainda, era suficiente para sustentar um tratamento, conforme o que se seguiu nos outros encontros com a paciente. Neste momento, a especificidade da demência e a especificidade do caso pressionaram. Mesmo diante de um caso em que a queixa é verbalizada, algo parecia ficar encoberto – a própria demência.

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Em outra sessão, a terapeuta pergunta sobre seus esquecimentos.

M: o padre faz um sermão mais lindo, eu presto bem atenção, depois não sei, ele pergunta alguma coisa, porque as vezes eles fazem alguma pergunta / e eu presto atenção porque eu sei que ele vai fazê, perguntá, não me lembro, não guardo / esqueci, é a memória né, minha memória fraquíssima, eu tenho medo que me dê aquele tal do Alzheimer, do esquecimento

T: a senhora tem medo disso?

M: eu tenho muito medo disso, tenho muito medo disso, porque tem uma, não era minha amiga, amiga da minha sobrinha, irmã (SI), ela tem, também

esquecida, uma mulher tão inteligente, uma mulher boa T: mas por que quê a senhora tem medo?

M: eu tenho medo de ficar assim também

Quanto ela nomeia a doença de Alzheimer, “cessa a representação gramatical”, e a fala toma a direção de uma “articulação significante”. Seguem- se segmentos ininteligíveis (SI) e um “movimento sintagmático em ato” (LIER- DEVITTO e FONSECA, 2012). Destacado em azul, não se sabe quem tem a doença: a paciente, a irmã, a amiga, a mulher.

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Após ler uma pequena história, a senhora comentou, no encontro seguinte:

M: você veja, meu Jesus Cristo eu era professora e meu Deus eu dava aquelas aulas assim com facilidade e tudo e agora não guardo na memória sabe, não guardo na memória o que eu leio, eu sabia orações décor e agora nossa Senhora. Orações de manhã, fazia muito as orações assim décor, de noite na missa, a missa ainda graças a Deus sei tudo porque eu vô quase todo dia, então a gente sabe respondê, mas assim eu vô lê uma coisa e não guardo na memória o que eu leio.

A dificuldade de memória é caracterizada pelo esquecimento de números de telefones, do que leu e do sermão do padre. Essas queixas de esquecimentos poderiam ser assumidas como de linguagem, como dificuldades para compreensão de leitura e da fala do outro. Para Marlene, esquecer o número de telefones, o sermão da Igreja e o texto lido não são situações subjetivas distintas. Para um clínico, esquecer números e o que leu ou escutou são queixas de naturezas distintas?

Tendo como pano de fundo o que pude retirar do estudo de Freud e de Lacan, parece-me não ser autorizada a desarticulação entre queixas de memória e queixas de linguagem. A partir do que discutimos no capítulo 2, com Freud, esquecimentos de nomes estão associados às representações-de- palavra. Um clínico de linguagem fica, assim, autorizado a escutar e atender casos em que há “queixa de memória”. Isso porque memória e linguagem são “concomitantes dependentes”. Na obra “Psicopatologia da vida cotidiana (1901)”, os esquecimentos de nomes, pessoas e objetos mostram um funcionamento psíquico não arbitrário. Uma rede associa-se ao nome esquecido, ou seja, uma “força psíquica produz falta na fala e/ou escrita” (idem, ibidem, p. 42). Interessante é que Freud destaca que essas manifestações não se apresentam “de maneira diferente das falhas que ocorrem em situações favorecidas pelo cansaço, intoxicação e distúrbios da circulação;” (idem,

ibidem, p. 42).

Assim, esquecer e lembrar são determinados pela censura psíquica. Destaca-se que os distúrbios da circulação, como o que ocorre nas afasias e

123 na demência vascular, favorecem as manifestações de esquecimentos, mas não eliminam a explicação do funcionamento psíquico: há um motivo para o esquecimento. Foi essa “força psíquica” que Messy (1993) pode retirar e admitiu: “em quinze anos de experiência não encontrei ainda a doença travestida com o rótulo de ‘doença de Alzheimer’ [...] cuja história não se escorra num fato existencial” (idem, ibidem, p. 84). Isso significa que a demência não aparta o sujeito de suas vivências.

Nota-se que as queixas de esquecimentos da senhora Marlene, em muitos momentos, associavam-se ao discurso social da velhice, como nos fragmentos abaixo:

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M: eu sô amiga (riso), todo mundo me conhece, porque eu já tô velha do lugar, acho que sô eu a segunda ou a tercera velha lá né, o resto, tem mais velha do que eu, minha comadre é (SI) mas essa nunca, não foi como eu que perdi muito a memória assim, professora sabe como é, tem que pensá muito

T: uhum, a senhora acha que pensô muito, por isso que perdeu agora?

M: eu achei que e: e/ e: eu era muito dedicada na escola, perdi bastante depois que me aposentei, depois, meus pais doentes né, e eu sempre cuidava deles.

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M: mas a gente, engraçado como pensa na morte, eu digo Jesus do céu, eu