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III. Estrutura do trabalho

1. TRAJETÓRIA DA EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO REGIME DE TRANSPARÊNCIA FISCAL INTERNACIONAL

1.4. O debate internacional: a concorrência fiscal danosa e as CFC rules

1.4.2. A concorrência fiscal danosa no direito comunitário europeu

Paralelamente ao debate realizado no âmbito da OCDE, estava sendo promovido um debate na então Comunidade Europeia sobre o tema. Na Europa, não apenas o fenômeno da globalização como também a garantia da liberdade de circulação de mercadorias, serviços,

pessoas e capitais – princípios basilares do mercado comum europeu –, aliadas às medidas

que estavam sendo tomadas para a consolidação da União Monetária, trouxeram grande mobilidade ao fluxo de capitais no interior do mercado comum europeu o que ensejou preocupações com as práticas de concorrência fiscal danosa.

Além disso, a existência de práticas de concorrência fiscal danosa passou a ser vista, não apenas como lesiva às políticas tributárias e orçamentárias dos países, como também um possível entrave à manutenção do mercado comum e à consolidação de uma união monetária. Havia, portanto, importantes interesses comunitários em jogo que não estavam necessariamente presentes nos estudos feitos pela OCDE.

A partir da década de 1980, houve uma tendência acentuada de os Estados membros criarem regimes fiscais privilegiados e, por esta razão, as preocupações dos órgãos supranacionais da União Europeia estavam muito mais voltadas para os referidos regimes do

que para os paraísos fiscais tradicionalmente conhecidos89.

87 Cf. OECD. Progress report to G20. 2012, (Anexo IV) p. 15-16.

88 Veja-se, neste sentido, a página eletrônica do Fórum Global da OCDE: <eoi-tax.org/>.

89 Cf. PALMA, Clotilde Celorico. O controle da concorrência fiscal prejudicial na União Europeia. Revista Fórum de Direito Tributário (RFDT). Belo Horizonte: Fórum, ano 3, nº 15, 2005, p. 51.

Os primeiros estudos feitos em nível comunitário que apontaram para a existência de práticas de concorrência fiscal danosa, através da criação dos referidos regimes, foram feitos pela Comissão Europeia, em 1992, através da criação de um Comitê de Experts em tributação empresarial. O objetivo do Comitê era analisar três questões centrais: (i) A existência de diferenças nas cargas tributárias dos Estados membros gera distorções no mercado interno quanto à decisão de investimento? (ii) Se houver distorções, é provável que elas sejam eliminadas apenas pela interação das forças de mercado e da concorrência tributária entre os Estados membros, ou há necessidade de ação comunitária? e (iii) Quais medidas específicas

devem ser adotadas pela comunidade para remover ou mitigar essas distorções?90

Para responder as questões formuladas, o Comitê fez um estudo comparativo das

regras tributárias dos países – especialmente no tocante à tributação sobre renda da pessoa

jurídica – através do qual ele identificou uma tendência de convergência dos sistemas

tributários, mas também identificou diferenças significativas entre os sistemas adotados pelos países membros, inclusive no tocante à sua carga tributária real. Nas conclusões do estudo, o

Comitê demonstrou “a tendência de estados membros a introduzir esquemas tributários

específicos desenhados para atrair negócios internacionais com elevada mobilidade,

principalmente no setor financeiro” 91.

A preocupação central do Comitê era a eliminação de entraves tributários – tais como

a tributação de determinadas remessas intracomunitárias (e.g. dividendos remetidos da

controladora para a controlada em outro estado-membro) – que pudessem impedir o livre

fluxo de capitais no âmbito do mercado comunitário. Neste sentido, o caminho que o Comitê escolheu para eliminar as distorções tributárias advindas das diferenças entre os sistemas tributários foi a defesa de um critério de harmonização mínima da legislação que deveria ser seguido pelos países em três etapas distintas. Embora tendo reconhecido que a harmonização plena não seria necessária no curto prazo e que os países membros deveriam manter a sua liberdade na determinação dos seus sistemas tributários, o Comitê fez uma clara recomendação no sentido de que uma harmonização maior seria desejável no longo prazo. Assim, foi reconhecida a importância da questão da concorrência fiscal danosa, mas a solução adotada pela Comunidade Europeia, neste primeiro momento, foi a harmonização das

90 Cf. Conclusions and recommendations of the Committees of Independent Experts on Company Taxation:

Ruding Tax Commission of European Communities. Luxembourg. 1992, p. 9.

legislações fiscais e não a adoção de medidas unilaterais de combate entre os estados membros.

Em março de 1996, foi feita uma reunião do Conselho ECOFIN da União Europeia

que resultou em um documento denominado “A fiscalidade na União Europeia” por meio do

qual se decidiu continuar com o debate sobre a concorrência fiscal danosa através da criação de um Grupo de Alto Nível criado e coordenado pelo Executivo comunitário. Em setembro do mesmo ano, a Comissão Europeia apresentou uma proposta de pacote fiscal cujo foco era justamente o combate à concorrência fiscal danosa. O Conselho da União Europeia aprovou o pacote em dezembro de 1997 na forma de uma resolução.

Esta resolução teve um escopo muito maior do que o relatório da OCDE já que

abrangia três questões importantes – tributação da renda das pessoas jurídicas (empresas),

tributação das poupanças e tributação de remessas intracomunitárias de juros e royalties –

enquanto que o relatório da OCDE limitou-se à tributação da renda das empresas e, em

especial, à problemática dos paraísos fiscais92.

A partir da Resolução, foi criado um código de conduta que, apesar de não ser um

instrumento jurídico vinculativo dos Estados membros93, possui elevada importância no plano

político o que, segundo Maria Eduarda Azevedo, asseguraria a eficácia das suas disposições

no seio da União Europeia94. Clotilde Celorico Palma também entende que a natureza do

código de conduta – natureza de mero compromisso político ou de declaração geral de

intenções – não implica, necessariamente, a diminuição da eficácia das suas disposições95.

O campo de incidência do código é um pouco limitado uma vez que se aplica unicamente aos países membros da União Europeia. Há, no entanto, a previsão de que o código seja adotado também pelos países membros em seus territórios dependentes ou associados (e.g. possessões e territórios da Inglaterra, França e Holanda no Caribe, América do Sul e na Oceania) e que seja encorajada a sua adoção em países não pertencentes ao bloco comunitário. O relatório da OCDE, em comparação, abrange um número maior de países.

92 Cf. AVI-YONAH, Reuven S. Globalization, Tax Competition and the Fiscal Crisis of the Welfare State. Harvard Law Review, v. 113, n. 7, 2000, p. 1.658.

93 É um instrumento de soft law, assim como o relatório da OCDE.

94 AZEVEDO, Maria Eduarda. A concorrência fiscal prejudicial. Revista Fórum de Direito Tributário (RFDT).

Belo Horizonte: Fórum, ano 8, nº 48, 2010, p. 51.

95 PALMA, Clotilde Celorico. O controle da concorrência fiscal prejudicial na União Europeia. Revista Fórum de Direito Tributário (RFDT). Belo Horizonte: Fórum, ano 3, nº 15, 2005, p. 54-55.

O código de conduta restringe o seu campo regulatório à tributação direta incidente sobre as empresas sem definir, no entanto, quais são as espécies tributárias abrangidas. O código abrange todas as medidas que afetem, ou possam vir a afetar, de forma significativa a localização de atividades econômicas na União Europeia. Neste sentido, o seu foco recai

sobre a concessão de ajudas de estado96 e sobre as práticas de concorrência fiscal danosa. Os

critérios elencados para a sua identificação são, entretanto, muito semelhantes aos critérios

elencados no relatório da OCDE para a identificação dos regimes fiscais privilegiados97. Ao

serem detectadas as condutas passíveis de enquadramento como práticas de concorrência fiscal danosa, elas devem ser imediatamente congelas (standstill) e desmanteladas (roll-over) pelo país membro concedente. O Grupo de Alto Nível, de acordo com o ponto H do código de conduta, é a instituição responsável pela avaliação das medidas potencialmente prejudiciais e pela supervisão do fornecimento de informações pelos Estados membros para que a avaliação seja feita.

O código de conduta acabou sendo uma alternativa politicamente viável na União Europeia para promover coordenação de políticas fiscais entre os Estados-membros uma vez que as políticas fiscais necessitam de unanimidade de aprovação para serem implementadas na esfera comunitária, o que se torna politicamente muito custoso em vista do número de membros que integram o bloco comunitário. Além disso, a União Europeia adota o princípio da subsidiariedade, segundo o qual só em casos de necessidade absoluta é que a competência

nacional cede às competências de natureza comunitária98.

É interessante observar que, após a publicação da Resolução, outras propostas passaram a ser pensadas, na União Europeia, visando promover uma reforma que permitiria

96 O conceito de ajuda de estado não se confunde com o conceito de concorrência fiscal danosa. As ajudas de

estado podem ou não ter natureza tributária. O que caracteriza a lesividade das ajudas de estado frente à concorrência empresarial é a seletividade setorial ou individual da sua concessão. Ademais, as ajudas de estado possuem o seu regime jurídico previsto no ponto J do código de conduta e nos artigos 87 a 89 do Tratado da União Europeia. Cabe à Comissão Europeia analisar a priori os seus impactos concorrenciais, a posteriori no caso de denúncias de concessão ilegal de denúncias e proceder à revisão das ajudas já existentes. Apesar das diferenças entre os dois conceitos, não se pode excluir a possibilidade de sobreposição de ambos quando da sua aplicabilidade na realidade prática.

97 Dentre eles, destaca-se o critério “ring-fencing” segundo o qual o tratamento privilegiado é atribuído somente

a não residentes, excluindo-se os residentes do seu aproveitamento, além de serem previstas medidas que asseguram o isolamento dos seus efeitos concorrenciais perversos do mercado local. Neste sentido, por exemplo, regimes fiscais que apliquem tributação baixa ou nula em caráter geral não são passíveis de enquadramento como de tratamento privilegiado e, portanto, não estarão submetidos à disciplina do código de conduta.

98 PALMA, Clotilde Celorico. O controle da concorrência fiscal prejudicial na União Europeia. Revista Fórum de Direito Tributário (RFDT). Belo Horizonte: Fórum, ano 3, nº 15, 2005, p. 50.

atingir um padrão de harmonização maior na legislação europeia relativa à tributação direta

incidente sobre a atividade empresarial99.

Em relação às formas de combate às práticas de concorrência fiscal danosa e de elisão fiscal internacional, observamos que as alternativas pensadas pela União Europeia não estão

pautadas na adoção de medidas unilaterais de combate – tais como a adoção de CFC rules –

mas sim em medidas coordenadas de identificação, congelamento e desmantelamento de tais práticas. No caso do debate europeu, a obediência dos países membros da União Europeia ao código de conduta é mais provável do que no caso do relatório da OCDE devido à sua força política, que é inerente ao fato dele ter sido criado em âmbito comunitário.

Em relação a países terceiros, os países-membros da União Europeia podem aplicar livremente as recomendações feitas pela OCDE, mas, no tocante aos países-membros do bloco comunitário, as medidas unilaterais recomendadas sofrem algumas restrições. Tais restrições se mostram evidentes, especialmente, no caso da aplicação das CFC rules.

Bernard Castagnède expõe que a aplicação das CFC rules foi considerada incompatível com o direito comunitário pela jurisprudência da Corte de Justiça da Comunidade Europeia (CJCE) sob o argumento de que a luta de um Estado membro contra a fraude ou a evasão fiscal internacional não pode constituir um obstáculo ao princípio da

liberdade de estabelecimento previsto no artigo 43 do Tratado da Comunidade Europeia100.

Segundo o entendimento da CJCE, as CFC rules constituem não apenas uma restrição à entrada de capitais no território de um determinado Estado membro como também um entrave à saída101.

Um caso emblemático na jurisprudência da CJCE é o caso Cadbury Schweppes102. Na

ocasião, a aplicação do regime de transparência fiscal internacional do Reino Unido a rendimentos auferidos em outros Estados membros da União Europeia foi considerada como

99 Michael Devereux, Rachel Griffith e Alexander Klemm assinalam que uma das propostas em discussão visa

instituir um único conjunto de regras, ao qual estarão submetidas todas as empresas da União Europeia, para a apuração da base de cálculo dos impostos incidentes sobre a renda da atividade empresarial. Os autores assinalam ainda que, segundo a proposta, os grupos empresariais (inclusive controladas e coligadas) deveriam apurar o seu lucro de forma consolidada e depois os resultados seriam apropriados para cada um dos países. Trata-se da aplicação da lógica da tributação unitária na União Europeia. Há, também, alternativas que estão sendo atualmente pensadas para promover maior harmonização no domínio da tributação direta. envolvidos segundo fórmulas pré-estabelecidas (formulary apportionment method). Confira-se maiores detalhes em: DEVEREUX, Michael, GRIFFITH, Rachel, KLEMM, Alexander. Corporate income tax reforms and international tax competition. Economic Policy, v. 17, nº 35, 2002, p. 475-476.

100 CASTAGNÈDE, Bernard. Précis de fiscalité internationale. Paris: Presses Universitaires de France (PUF),

2010, p. 146.

101 Ibid., p. 146.

contrária à liberdade de estabelecimento empresarial. De acordo com a decisão proferida, a regra de antidiferimento do regime de transparência fiscal só pode ser aplicada em âmbito comunitário quando houver a caracterização de uma montagem artificial destinada puramente a elidir o fato gerador previsto na legislação interna de um dos seus Estados membros.

Neste sentido, o próprio regime francês de transparência fiscal internacional –

denominado Régime des Sociétés Étrangères Contrêlées (SEC) –, vigente anteriormente ao

ano de 2005, foi considerado excessivo quando confrontado com a jurisprudência firmada pela CJCE, pois ele estabelecia uma presunção geral de evasão nas hipóteses em que filiais, sucursais, controladas e coligadas fossem estabelecidas em paraísos fiscais ou se beneficiassem de regimes fiscais privilegiados.

Assim, o regime atualmente vigente das SEC, conforme consta do artigo 209-B do Côde Général des Impôts (CGI), estabelece a presunção geral de evasão em relação aos regimes fiscais privilegiados tipificados no artigo 238-A do mesmo código, salvo se ele pertencer a um dos países membros da União Europeia (art. 209-B, II), hipótese em que o regime somente se aplica caso se trate de uma montagem artificial cujo objetivo seja driblar a legislação tributária francesa103. Nestas situações, o regime deixa de ser aplicável caso o contribuinte comprove que as instalações são reais e que há o exercício de uma atividade econômica substancial ainda que o empreendimento seja beneficiário de um regime fiscal privilegiado. Tais critérios foram chancelados pela jurisprudência da CJCE.

Vale lembrar que o regime francês somente se aplica a rendimentos passivos (revenu de capitaux mobiliers) e que o critério de participação societária é preenchido uma vez que se constate haver poder de controle, através da titularidade de mais de 50% de ações, direitos de

votos ou direitos patrimoniais sobre a sociedade estrangeira104.

Em 2010, o Conselho dos Ministros de Finanças da União Europeia – Conselho

ECOFIN – se reuniu para deliberar sobre novos princípios orientadores da aplicação do

regime de transparência fiscal internacional aplicável às transações intracomunitárias e com

103 CASTAGNÈDE, Bernard. Précis de fiscalité internationale. Paris: Presses Universitaires de France (PUF),

2010, p. 147.

104 Vale ressaltar que a legislação francesa (SEC) deixa de ser aplicável – hipótese de exclusão do regime (safe harbor) – caso se comprove que mais de 50% das receitas das controladas residentes em paraísos fiscais ou em países que lhe concedam um regime fiscal privilegiado provêm de atividades efetivamente comerciais ou industriais que não sejam necessariamente pertencentes à União Europeia. Pode-se perceber, no entanto, que os critérios de exclusão do regime em relação a controladas residentes em países da União Europeia são, em geral, mais brandos do que os critérios aplicados em relação a países terceiros. Vejam-se maiores detalhes em: MACIEL, Taísa Oliveira. Tributação dos Lucros das Controladas e Coligadas Estrangeiras. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 50.

países terceiros não pertencentes ao mercado comum. Considerando a necessidade de caracterização da uma montagem artificial abusiva para que a o regime de transparência fiscal seja aplicado em relação às operações intracomunitárias, o Conselho ECOFIN propôs, através

da resolução nº 10.689/2010, novos critérios – em adição aos critérios anteriormente adotados

pelo Conselho e pela jurisprudência da CJCE – que levam à qualificação de uma determinada

transação como uma montagem artificial e abusiva em uma tentativa de aumentar o número de hipóteses em que o regime se repute aplicável.

Para Jose Manuel Calderón Carrero, esta é uma tentativa de minimização dos

princípios estabelecidos pela CJCE – inclusive no caso Cadbury Schweppes – e de

maximização dos interesses fiscais dos Estados membros que contraria o entendimento da referida corte na medida em que “a presença de um benefício fiscal não é suficiente para estabelecer a existência de abuso, exigindo-se, no entanto, que a sociedade controlada

estrangeira não realize qualquer atividade econômica efetiva” 105. Assim, Carrero defende que

as regras de transparência fiscal internacional não sejam adotadas sem que haja um safe harbor à sua aplicação, que preveja a aplicação de um teste de propósito negocial que possibilite à administração tributária saber qual foi a real motivação que levou o contribuinte a deslocar parte dos seus ativos para outra jurisdição fiscal; o desempenho de uma atividade econômica industrial ou comercial efetiva ou, tão somente, a vantagem advinda do diferimento da tributação devida no Estado de residência da sociedade controladora (investidora).

Ademais, observamos que o exemplo francês demonstra convergência com as recomendações da OCDE no sentido de que o regime possui natureza sancionatória sendo, portanto, utilizado como técnica de combate às formas de elisão e evasão fiscal propiciadas pela prática de concorrência fiscal danosa, não obstante o fato dele prever tratamento especial em relação aos países membros da União Europeia. As bases teóricas e conceituais que resultaram de toda a trajetória da evolução histórica do regime de transparência fiscal internacional serão tratadas, em maiores detalhes, no próximo tópico.

105 CARRERO, Jose Manuel Calderón. La coordinación europea de las normas de transparencia fiscal

internacional y de subcapitalización. Revista de Direito Tributário Internacional (RDTI), São Paulo: Quartier Latin, n. 15, 2010, p. 244-245. No original: “(...) la presencia de un motivo fiscal no es suficiente para establecer la existencia de un abuso requiriéndose además que la SEC no realice una actividad económica en el territorio de tal Estado atraves de medios humanos y materiales.”

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