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A conflituosa construção do controle civil e perspectivas futuras

No documento Democracia e Forças Armadas no Cone Sul (páginas 43-49)

Como se viu, o processo de democratização iniciado em 1983 fez sur- girem novas tendências e um novo tipo de relação civil-militar. No tocante às Forças Armadas, pode-se observar que, desde então, estas sofreram os impactos das novas condições sociopolíticas e, particularmente, das profun- das mudanças que se produziram no âmago da própria organização. Os im- pulsos corporativos que as cúpulas militares tentaram conservar a fim de preservar certas prerrogativas institucionais e de projetar-se, na medida do possível, como atores autônomos na nova ordem democrática, foram neu- tralizados pela profunda crise de identidade e de papel político que eclodiu

59 Ver Urien Berri & Marín (1995).

60 Ver Seguridad Estratégica Regional en el 2000, Servicio militar obligatorio; encuesta nacional, ago. 1994. Nesse trabalho constata-se que 81,2% dos entrevistados manifestaram-se de acordo com a instauração de um regime de recrutamento voluntário.

61 Nesse momento, o Exército contava com 16 mil soldados, e a Marinha e a Força Aérea com 3 mil cada uma. Em nenhuma dessas duas forças esses soldados faziam parte das unidades milita- res operacionais que as compunham. Essa não era, em compensação, a situação do Exército, onde a tropa desempenhava funções-chave em sua estrutura operacional.

nos quartéis com o colapso da ditadura. Assim, do comportamento castren- se ofensivo e desestabilizante que prevaleceu nos últimos 50 anos passou-se a um padrão defensivo, baseado numa ação intraburocrática, no qual as For- ças Armadas começaram a desempenhar um papel secundário e subordina- do dentro da trama de poder que se instalou a partir de dezembro de 1983. Tratou-se, por certo, da conformação de uma nova modalidade de relações civis-militares, nas quais as Forças Armadas deixaram de constituir um ator político com capacidade de exercer o poder estatal através da montagem de um regime autoritário sustentado por elas, ou com possibilidade de tutelar, de alguma maneira, o sistema político ou, pelo menos, de empreender ações desestabilizantes da ordem institucional democrática como forma de pres- são. Desde então, as Forças Armadas passaram a ser um ator intra-estatal, cuja inserção no âmbito institucional começou a aparecer mediante o exercí- cio combinado de algum grau de influência sobre o círculo governamental através de posicionamentos pontuais, proposições e, no extremo, mediante pressões ou questionamentos ao poder civil, mas sem que tais manobras te- nham podido traduzir-se em modalidades tutelares de projeção política, nem sequer no que se refere à revisão do passado — única questão, na verdade, em que os distintos setores castrenses haviam encontrado uma base discur- siva e institucional comum, nem tampouco em relação à brusca redução or- çamentária que suas instituições sofreram durante todos esses anos, e que também havia constituído um sério problema comum.62

Tudo indica, pois, que desde 1983, o governo civil constituiu, de uma ou outra maneira, e ao contrário do ocorrido nas décadas anteriores, a ins- tância dominante e principal do jogo político e, em conseqüência, o eixo de gravitação das relações civis-militares passou pelos estilos e orientações que guiaram o desempenho da classe política civil, assim como também pelos resultados e efeitos obtidos pela projeção desta frente à problemática cas-

62Algumas situações de conflito foram resolvidas de modo favorável à perspectiva ou aos inte- resses militares, como, por exemplo, o término negociado do primeiro e do terceiro levantes caras-pintadas ou as leis do Ponto Final e da Obediência Devida e os indultos pelos quais se pôs fim à revisão judicial do passado. Contudo, tais fatos parecem indicar que as saídas encontra- das para os levantes resultaram mais de certas táticas concessivas do poder político, que de uma imposição autônoma e unilateral das Forças Armadas, e que se fundamentaram mais na crença governamental de que o confronto produzira uma situação de desestabilização institu- cional — primeiro levante cara-pintada; na imperícia demonstrada no processamento dos fatos — terceiro levante cara-pintada; na forma de enfrentar o fracasso e a inconsistência com que se encarou o processo de revisão do passado — leis do Ponto Final e da Obediência Devida; ou no predomínio de uma modalidade pragmática de solução de situações de conflito — os indultos. Inclusive, uma clara expressão disso foi a efusiva defesa da atuação militar no combate à sub- versão, efetuada por Menem ao longo dos anos de 1994 e 1995. Essa defesa ocorreu em mo- mentos em que a revisão judicial das responsabilidades penais do passado já havia acabado, as cúpulas militares da época não faziam referências ao tema e o general Balza efetuava sua auto- crítica, cujo conteúdo se contrapunha àquela defesa.

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trense. Como se disse, a presença autônoma dos militares no Estado foi qua- se nula, inclusive até para a definição dos aspectos mais relevantes da vida institucional das próprias Forças Armadas. O espaço e as possibilidades para desenvolver iniciativas visando à reformulação das instituições arma- das foram consideráveis; por isso, a falta de políticas nesse sentido eviden- ciou a relativa incompetência com que os sucessivos governos civis aborda- ram a questão militar. A indefinição governamental no estabelecimento de prioridades e objetivos gerais para questões relativas à defesa nacional e a inexistência de políticas militares globais foram uma constante ao longo de todo o período. Isso refletiu as limitações com que os governos alfonsinista e menemista encararam os temas militares.

Durante a primeira etapa democrática, a problemática decorrente dos crimes cometidos durante a ditadura processistaconstituiu um pesado ônus para o governo radical. A magnitude da repressão desencadeada na época e a gravidade das seqüelas do terrorismo de Estado, assim como a forte pres- são social em favor da implementação de uma revisão ampla desse passa- do, condicionaram substancialmente o primeiro governo da democracia re- cém-instaurada. Contudo, a centralidade que esse governo atribuiu ao te- ma, as ambigüidades e contradições com que o enfrentou e o simultâneo abandono de uma política militar baseada na reforma das Forças Armadas criaram um cenário altamente conflituoso e, por vezes, incontrolável para o próprio governo. Diante dessa situação, este, mais preocupado em buscar saídas de curto prazo para os conflitos oriundos da revisão do passado do que em delinear um novo perfil institucional e profissional para os milita- res, restringiu a reforma militar a um conjunto de medidas menores, sem que estas fossem acompanhadas de uma reformulação conceitual da defesa e, em seu âmbito, de uma reestruturação geral das Forças Armadas.

Neste quadro, cabe dizer que a administração alfonsinista careceu de eficácia na instrumentação de decisões e iniciativas conducentes à estabili- zação das relações civis-militares. Essa falta foi significativa no momento de tentar solucionar as questões altamente conflituosas herdadas da ditadura militar, particularmente em tudo o que dizia respeito à revisão do passado, ou no momento de assentar as bases políticas e institucionais para a refor- ma do aparato militar. Ao término do governo Alfonsín, continuavam tangí- veis as deturpações orgânico-funcionais das Forças Armadas em relação às novas condições institucionais, econômicas e internacionais e, em conse- qüência, a reforma militar continuava pendente, do mesmo modo que as questões da revisão do passado e do conflito existente no Exército entre o comando dessa força e o setor cara-pintada permaneciam como assuntos in- solúveis. Estas certamente foram as principais deficiências da administra- ção radical e suas conseqüências constituíram heranças conflituosas para o futuro governo constitucional.

Em 1989, a conjuntura política diferia substancialmente da existente quando da instauração democrática em 1983. No que se refere à questão militar, o desafio de Menem não incluía a redefinição das relações civis-mi- litares a fim de obter a estabilidade institucional da democracia, uma vez que a sorte desta não estava vinculada ao risco de uma regressão autoritá- ria pela via de um possível golpe de Estado castrense. Apesar da persistên- cia de situações de franco conflito na segunda metade da década de 1980 — como o enfrentamento cara-pintada/Emge — e do predomínio de um discur- so militar favorável à atuação castrense no passado autoritário, a subordina- ção das Forças Armadas aos poderes constitucionais era então um fato. Após a saída antecipada de Alfonsín da presidência, ficou claro que os dile- mas da democracia na Argentina passavam pela capacidade governamental de estabilizar a economia e fazer frente aos desafios das novas condições fi- nanceiras, produtivas e comerciais vigentes nos planos internacional, regio- nal e local. No atinente às relações civis-militares, essa situação supunha a emergência de novas oportunidades de reforçar a subordinação castrense às autoridades civis, oportunidades diferentes daquelas que prevaleceram du- rante a gestão de Alfonsín. Esse panorama interno era reforçado no plano externo pelas transformações ocorridas em fins da década de 1980 no cená- rio internacional e regional, em particular no âmbito sub-regional do Cone Sul, mudanças que provocaram o surgimento de novas condições geopolíti- cas e estratégicas para a Argentina. O término do conflito Leste-Oeste, da ameaça comunista e da busca permanente de supremacia militar pelas gran- des potências como coordenadas centrais das relações internacionais contri- buiu para a perda de importância e para a secundarização da dimensão mili- tar no cenário internacional. Por seu turno, na América Latina, e particular- mente no Cone Sul, essas mudanças foram acompanhadas do processo de integração sub-regional iniciado e aprofundado desde 1985 até hoje, dando lugar, no início, à adoção de políticas de cooperação e complementação regio- nal e, depois, de integração. Tudo isso contribuía, por fim, para um contexto regional de paz e estabilidade.

Nesse quadro, Menem interpretou corretamente as novas condições políticas que se impunham tanto no cenário internacional quanto no do- méstico e utilizou melhor do que Alfonsín os recursos de poder disponíveis para aumentar a capacidade de controle governamental sobre os militares, ainda que isso não se tenha traduzido em uma política militar global na hora de efetuar mudanças de base na estrutura institucional das Forças Ar- madas. Por um lado, o mandatário peronista foi eficaz e bastante competen- te na instrumentação de decisões e iniciativas conducentes à estabilização das relações civis-militares e no aprofundamento da subordinação castren- se ao poder político, seja desarticulando com êxito os problemas mais gra- ves herdados da gestão radical, seja impondo de modo eficaz seus próprios critérios aos comandos militares em assuntos-chave, ou seja, tornando se-

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cundárias as questões atinentes à defesa nacional e delimitando o âmbito de desdobramento institucional das Forças Armadas. Neste aspecto, as diferen- ças em relação ao mandatário radical foram importantes. Contudo, assim como Alfonsín, não formulou nem levou a cabo uma política militar global, baseada na reestruturação orgânico-funcional das Forças Armadas, a fim de superar as deformações existentes no funcionamento e na organização das mesmas e de dar-lhes um novo perfil profissional em sintonia com as novas condições políticas, econômicas e internacionais. No caso de Menem, esse déficit foi substancialmente maior se comparado com a gestão alfonsinista, já que a eliminação das situações de conflito herdadas, a ampla margem de subordinação militar ao governo civil, a existência de uma situação interna- cional e local mais favorável e os êxitos obtidos quanto à estabilização e ao crescimento da economia propiciaram um contexto mais favorável que o existente nos anos 1980 e criaram novas oportunidades de viabilizar iniciati- vas passíveis de produzir as mudanças necessárias nas Forças Armadas. O único obstáculo foi a indiferença com que o governo tratou as questões mi- litares e de defesa nacional, que já não ocupavam um lugar central no cená- rio público como haviam ocupado na década anterior. Vale dizer que duran- te a presidência de Menem, não se implementou a reforma das Forças Ar- madas porque o poder político não quis.

Em suma, as relações civis-militares mantidas ao longo da década de 1990 na Argentina indicam a existência de um alto grau de subordinação castrense ao poder civil. No entanto, como vimos, essa subordinação não resultou de políticas globais visando especificamente a uma redefinição dou- trinária, orgânica e funcional das Forças Armadas, e sim da combinação de um conjunto de condições situacionais gerais, como a ampla revalorização social da democracia, o respaldo internacional à consolidação democrática, as profundas mudanças internacionais e regionais, a política externa ten- dente a privilegiar os processos de integração regional, a crise fiscal e o ajuste econômico, assim como a esporádica, mas não menos importante, convergência alcançada entre a situação e a oposição em questões-chave como a Lei de Defesa Nacional, a desmilitarização da segurança interna e o reforço do sistema institucional ante as rebeliões caras-pintadas. Apesar de, pelo lado civil, se irem impondo certas modalidades parciais de exercício efeti- vo do mando ou do governo político-institucional às Forças Armadas, sobretu- do durante o mandato de Menem, os defeitos e as insuficiências das autorida- des governamentais no exercício do poder sobre as instituições castrenses foram uma constante ao longo de todo o período analisado. As tangíveis defor- mações orgânico-funcionais que há muito as instituições castrenses apresen- tam e a conseqüente necessidade de levar a cabo uma reforma militar global evidenciam que o atual controle civil sobre os militares não exclui a existên- cia de tarefas pendentes neste aspecto da vida nacional. Este, certamente, foi o principal déficit de ambos os governos.

A experiência argentina — particularmente a dos últimos anos — mostra que o fato de não se abordar de forma global as questões de defesa nacional ou a não reestruturação institucional da matriz doutrinária, organi- zacional e funcional das Forças Armadas não dá lugar necessariamente a si- tuações de conflito nas relações civis-militares nem induz à insubordinação militar em relação às autoridades civis. Ao contrário, o que se observou em nosso caso é que as questões da defesa nacional e da reforma militar não fo- ram tratadas pelo poder político como temas prioritários e, mesmo assim, a subordinação militar às autoridades constitucionais se acha consolidada e as relações civis-militares se encontram estabilizadas sobre a base de um es- trito controle civil, mesmo que venham a surgir situações que alterem es- sas tendências.

A falta de uma abordagem integral das questões militares e da defesa nacional pelos sucessivos governos civis refletiu a má vontade e/ou incapa- cidade da classe política para aproveitar as oportunidades surgidas com o colapso da ditadura e nos anos seguintes. A não regulamentação da Lei nº 23.554 impediu que se utilizasse o Conselho de Defesa Nacional (Codena)

como instância privilegiada para o desenho, a formulação e a implementa- ção de políticas de defesa nacional e militares. Por sua vez, a inexistência de uma lei orgânica das Forças Armadas impediu a determinação precisa das funções de cada força militar, assim como suas funções combinadas e con- juntas. Atualmente, o preenchimento desse vazio institucional não só não seria objeto de resistências ou questionamentos militares, como, ao contrá- rio, contaria com o respaldo institucional das chefias castrenses. Ou seja, a responsabilidade pela falta de um mando integral sobre as Forças Armadas cabe exclusivamente aos governos civis.

Esse estado de coisas explica a falta de perspectiva estratégica dos diri- gentes políticos nacionais. Como na Argentina não existe a possibilidade iminente de uma guerra externa e como os militares não constituem uma ameaça à institucionalidade democrática, os dirigentes políticos assumem posições que vão desde a indiferença para com as questões castrenses até a premeditada decisão de nada fazer a respeito. Essas orientações contri- buem para um exacerbado conjunturalismo, que impede qualquer tentativa de empreender, pelo menos a médio prazo, uma avaliação dessas problemá- ticas. Mas o mais grave dessa deficiência é que ela impede o aproveitamen- to das oportunidades que, nesta conjuntura, permitiriam assentar novas ba- ses institucionais para a organização e o funcionamento da defesa nacional e das Forças Armadas em sintonia com as condições internacionais, regio- nais e domésticas da atualidade.

Por outro lado, não seria ilusório considerar a possibilidade de que, no quadro da estabilidade institucional obtida nestes anos, a Argentina ve- nha a enfrentar algum conflito social grave e que alguns dirigentes e certos militares postulem a volta dos militares como fator de estabilidade e de con-

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tenção político-social. A profunda crise de identidade que atravessam os mi- litares e a necessidade de maximizar posições para obter mais recursos or- çamentários não contribuiriam para aplainar o caminho em favor da manu- tenção de uma posição de renúncia política e de repúdio a uma eventual participação castrense em assuntos de segurança interna. Isso significaria um substancial retrocesso institucional para a Argentina, cuja característi- ca mais notável não resultaria de um avanço autônomo dos militares, mas de uma falha da classe política em exercer pleno controle sobre as Forças Armadas.

Conseqüentemente, a subordinação castrense ao poder civil atual- mente existente não exime o governo democrático da responsabilidade de conduzir as Forças Armadas, ainda mais se se observa que tal subordinação não resulta de políticas que visaram a uma redefinição global da área mili- tar. A utilização eficiente das atuais condições de subordinação castrense ao poder político, após o desenvolvimento de um conjunto de reformulações mais profundas nas relações civis-militares, depende da capacidade da clas- se política de aproveitar estrategicamente tais fatores, o que necessariamen- te pressupõe a revisão da indiferença e do comportamento débil com que esses dirigentes consideraram o tema castrense e as questões ligadas à defe- sa nacional. Trata-se apenas de dar a devida importância às problemáticas surgidas das instituições militares e de abordá-las institucionalmente como questões que, de alguma maneira, se referem ao processo de consolidação democrática.

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