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Um processo político peculiar

No documento Democracia e Forças Armadas no Cone Sul (páginas 125-128)

Do ponto de vista acadêmico, a detenção do general Pinochet reacen- deu o debate conceitual sobre o processo político chileno, sua transição, os acordos que lhe serviram de base e a caracterização do atual regime políti- co. Esse debate sobre a transição chilena vincula-se de maneira importante às questões institucionais fundamentais definidas no ordenamento constitu- cional. Devemos reconhecer que nós, chilenos, não temos um texto consti- tucional consensual. Pelo contrário, ele nos divide e polariza. Também pre- cisamos reconhecer as demandas da sociedade quanto a justiça, estabilida- de e eqüidade, entre outras. A principal tarefa da classe política é encontrar

4 Kofi Annan, Derechos humanos: de las palabras a los hechos. El Mundo. Madri, Espanha, 12- 4-1999.

uma forma de satisfazer tais interesses. A imensa maioria dos chilenos quer justiça e estabilidade como bases para o desenvolvimento.

As complexidades do caso chileno ficam evidentes nas diversas análi- ses, nacionais e comparadas. O Chile passa de “modelo de transição demo- crática” a um estereótipo de “tutela militar”. Um olhar para essa década que se inicia com o plebiscito que disse “não” à continuidade do governo mili- tar, em outubro de 1988, e com a eleição presidencial de 1989, nos revela importantes carências e déficits democráticos. Em conseqüência dos encla- ves autoritários na Constituição, o Chile não é uma democracia plena; tam- pouco é um sistema tutelado pela classe militar. Caracteriza-se por uma si- tuação híbrida, em que as formalidades e a prática democráticas têm prima- zia e constituem um selo essencial, mas onde, concomitantemente, a herança do passado autoritário marca a Constituição. São precisamente esses encla- ves autoritários que, combinados a uma perspectiva política fundada em “de- mocracias protegidas”, inibem a mudança e dificultam o avanço em direção a um regime efetivamente democrático.

As relações civis-militares estão marcadas por essa dicotomia. As ti- pologias sobre essas relações nos permitem conceituar e diferenciar as distin- tas etapas da evolução do sistema político e as formas que adotaram, em cada um desses processos, os vínculos entre civis e militares. Essas tipologias des- tacam o grau de controle democrático sobre as Forças Armadas, movendo- se normalmente entre dois pólos extremos: o domínio militar absoluto e o controle democrático institucionalizado. Nas gradações intermediárias surgem conceitos que possibilitam distinções matizadas, como o papel tutelar, a su- bordinação condicionada e o controle democrático consolidado.5 Outra pers- pectiva sistematiza as cosmovisões referentes a assuntos de defesa em torno de cinco paradigmas. Do mesmo modo que os anteriores, esses paradigmas enfatizam a perspectiva dos atores. São eles: o paradigma da abstenção, que focaliza a atividade das Forças Armadas na segurança externa; o paradigma da utilidade, que as vincula a outras funções de utilidade pública e desenvol- vimento; o paradigma da arbitragem politizada, que entende como papel das Forças Armadas o de fiador e árbitro dos debates políticos; o paradigma das relações político-militares, que acentua a subordinação militar; e, finalmente o paradigma do interesse nacional, que focaliza a temática da defesa em ter- mos das oportunidades e desafios que se apresentam no novo contexto do pós-Guerra Fria.6

Aplicando-se as categorias mencionadas ao caso chileno, distinguem- se diversos momentos históricos e conjunturas particulares no período re- cente. Um primeiro momento, que vai de 11 de setembro de 1973 ao plebis- cito de 1988, caracteriza-se pelo domínio militar absoluto. Nele, além do do-

5 Fitch (1992). 6 García (1998).

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V DE M O C R A C I A E FO R Ç A S AR M A D A S N O CO N E SU L

mínio militar sem contrapeso, o principal paradigma de quem detinha o poder durante o governo militar estava ligado à concepção da arbitragem po- litizada. Um segundo momento vai do plebiscito de 1988 à posse de Patri- cio Aylwin, em 11 de março de 1990. Nessa etapa do domínio militar pas- sou-se a um papel tutelar e construiu-se um paradigma sobre as relações po- lítico-militares. Um terceiro momento cobre as administrações de Patricio Aylwin (1990-94) e de Eduardo Frei Ruiz-Tagle (11 de março de 1994 a mar- ço de 2000), onde a característica fundamental indica a tentativa de deixar uma subordinação formal condicionada, em busca de um controle democrá- tico efetivo. Esse movimento significa avançar do paradigma das relações político-militares a uma organização das idéias em torno do paradigma do interesse nacional.7

O debate sobre a qualificação do caso chileno e seu tipo de transição envolve ainda o grau e a “qualidade” de sua democracia. Esse debate, pró- prio das transições, não foi concluído e tem sido parte das reflexões feitas nos últimos anos. Três elementos aparecem como indicadores substantivos do momento em que uma transição se completa: o primeiro, que o governo chegue ao poder como conseqüência de processos eleitorais livres e infor- mados, normalmente estimados em dois turnos eleitorais. O segundo, que o governo tenha autoridade para criar e estabelecer novas políticas, isto é, para aplicar seu programa. O terceiro, que os três poderes básicos do Esta- do — Executivo, Legislativo e Judiciário — gerados no contexto democráti- co não tenham que partilhar o poder com outros poderes de jure.8 Neste sentido, no caso chileno, aparecem elementos de concorrência com as auto- ridades democráticas, produtos da falta de acordo constitucional e da impo- sição de uma perspectiva de “democracia tutelada” estabelecida no texto es- tatuído durante o regime militar.

O que acaba de ser exposto é um ponto fundamental: a subordinação das Forças Armadas no contexto democrático. Nos debates dentro da Con- certación de Partidos por la Democracia (Coalizão de Partidos pela Demo- cracia), na perspectiva de suas projeções para um terceiro período de gover- no, destaca-se que uma das deficiências na avaliação do caminho percorri- do tem suas raízes neste ponto: “Um problema crítico de nossa transição democrática tem sido a dificuldade em tornar efetiva a subordinação das Forças Armadas ao poder civil. (...) Mais importante ainda é que, da manei- ra pela qual sua missão e suas tarefas estão atualmente definidas institucio- nalmente, o controle do poder civil sobre as Forças Armadas é menor que o que seria compatível com um regime plenamente democrático”.9

7 García (1998). 8 Linz & Stepan (1993).

9 Documento de debate “La gente tiene razón” (Santiago, jun. 1998). Um resumo dos documen- tos do debate foi publicado em El Mercurio, 17-5 e 14-6-1998.

A subordinação aumentou ao longo da década de 1990, mas o concei- to de poder arbitral, de fiador, unido a um alto grau de autonomia das For- ças Armadas, dificulta uma relação compatível com os padrões de um regi- me político plenamente democrático.

No documento Democracia e Forças Armadas no Cone Sul (páginas 125-128)

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