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O declínio da autonomia militar

No documento Democracia e Forças Armadas no Cone Sul (páginas 69-73)

Apesar de ter tido de suportar a crise da implosão orgânica do Estado de 52, o primeiro governo democrático de Siles Z. (1982-85) conseguiu, fe- lizmente, manter a estabilidade política, garantindo a continuidade da de- mocratização do país. Sem dúvida, vários foram os fatores que convergi- ram, concorrendo positivamente para esse objetivo. Primeiro, o profundo cisma e desprestígio das Forças Armadas, que impossibilitou a rearticula- ção de setores reacionários. Segundo, o alto grau de legitimidade política e social outorgado ao primeiro governo democrático, que lhe permitiu assu- mir com firmeza os assuntos do Estado, ainda que nem sempre com êxito, como no caso do manejo da economia nacional. É necessário destacar que,

ainda que Siles Z. tivesse o governo nas mãos, a correlação de forças parti- dárias no Congresso lhe era totalmente adversa, situação que levou o país a extremos de ingovernabilidade. Terceiro, a habilidade política característica do governo da UDP, que foi essencial para a articulação de uma base confiá- vel de apoio em um setor das Forças Armadas capaz de neutralizar reações antidemocráticas. Nesse mesmo plano, a concessão de certo grau de autono- mia e flexibilidade tática para julgar e depurar a instituição militar teve pa- pel relevante. Finalmente, e mais como uma questão complementar, o acompanhamento do desempenho militar feito pela sociedade internacio- nal atuou como um fator de dissuasão política.

A retirada incondicional das Forças Armadas, em meio a uma das mais profundas fragmentações internas, favoreceu a rápida desarticulação da es- trutura repressiva que os governos anteriores, principalmente o de García Meza, haviam conseguido montar na instituição militar e, paralelamente, em determinados enclaves policiais controlados pelo Ministério do Interior.

Além disso, o governo, através das próprias Forças Armadas, empreen- deu um acelerado processo de depuração de seu pessoal comprometido com delitos do narcotráfico e com a violação sistemática dos direitos humanos. Ambas as medidas tiveram notável efeito persuasivo, que conteve a reorgani- zação interna e, ao mesmo tempo, permitiu isolar e excluir elementos deses- tabilizadores.

Deixar que as próprias Forças Armadas realizassem a depuração de seu pessoal constituiu um verdadeiro acerto. Isso impediu que o governo e a instituição militar se enfrentassem abertamente. Apesar disso, diversos seto- res afetados em sua tentativa de recobrar ânimo após a derrota acusaram o governo de vendeta política, de antimilitarismo visceral e de demonstração de princípios marxistas antinacionalistas no julgamento das Forças Armadas como um todo. A acertada condução e o manejo político do Alto Comando militar desarmou e neutralizou essas reações.

A escolha do Alto Comando foi outro acerto-chave. O Poder Executivo conseguiu selecionar com extrema cautela autoridades militares que no pas- sado haviam apoiado projetos progressistas e, posteriormente, no exílio ou na reserva, aderido ao projeto da reconquista democrática. Essas pessoas, além de procederem com firmeza na depuração institucional, tiveram a habilidade de configurar uma arquitetura organizativa com comandos intermediários fiéis ao sistema político e capazes de exercer controle efetivo sobre o eixo geo- gráfico-chave da estrutura do poder militar, com o objetivo de neutralizar a reorganização interna e possíveis golpes do setor militar afetado.

Os comandos das unidades com maior poder de fogo, assim como os principais institutos, foram ocupados por oficiais identificados com a neces- sidade de estabilizar a democracia e afastar as Forças Armadas do jogo polí- tico.16 As ordens gerais de nomeação seguiram os critérios de prudência e firmeza. Buscou-se, quase sempre, obter uma espécie de “equilíbrio político e controle interno” que possibilitou não só o acesso de oficiais que manifes-

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tavam explicitamente sua lealdade ao regime democrático, como também a incorporação gradual do pessoal sobre o qual pairava alguma suspeita de conspiração, tudo com o objetivo de impedir que aumentasse novamente o grau de insatisfação e de interferências profissionais excludentes. Assim, a aplicação dessa espécie de engenharia política tornou possível a subordina- ção militar ao poder civil com um mínimo de resistência interna, e, funda- mentalmente, sem perigosas provocações.

Um quarto elemento que contribuiu para o controle das Forças Ar- madas foi a nomeação de um civil para o Ministério da Defesa. Apoiado em sua relativa experiência política no manejo do problema militar, Ortíz Mer- cado catalisou dificuldades e insatisfações por meio de um bom contato com o presidente da República. Depois de mais de uma década de gestão ministerial exclusivamente militar, Ortíz Mercado assumiu o Ministério da Defesa, cargo que já exercera durante o governo nacionalista do general Torrez, em 1971. Embora controvertida, sua gestão serviu como um firme sinal de autoridade, indicando que o governo não estava disposto a ceder nenhum espaço de autonomia institucional.

Um quinto elemento que ajudou a restabelecer uma relação civil-mi- litar relativamente harmônica foi o importante apoio político que o presi- dente da República deu aos comandos e, por extensão, a todo o conjunto das Forças Armadas, bem como o interesse e o tempo que concedeu aos te- mas ligados à segurança nacional através do Consejo Supremo de la Defen- sa (Cosudena). Provavelmente, nenhum outro mandatário na democracia conseguiu criar um verdadeiro clima de comunicação, confiança e diálogo permanente com as Forças Armadas como o de Siles Z. em sua curta ges- tão. A revalorização dos temas estratégicos no início da consolidação demo- crática foi vital para as Forças Armadas, já que o próprio governo autoritá- rio havia se encarregado de diminuir a importância estratégica da segurança, relegando-a ao plano da ordem interna. Mediante essa inesperada conduta presidencial, tratou-se de restabelecer o prestígio e a auto-estima profissio- nal, para manter desimpedido o caminho da reinserção das Forças Armadas na democracia.

O elemento mais importante e de peso decisivo na consolidação da subordinação militar em meio a uma anárquica mobilização sindical contra o governo foi a inédita convergência política entre a Central Obrera Bolivia- na e as Forças Armadas, para conjurar uma tentativa fracassada de golpe de Estado provocado por uma aliança entre militares e policiais exonerados e ambiciosos.17 Ainda que não se tenha firmado um pacto explícito e docu- mentado entre ambos os atores, historicamente antagônicos, o grau de coor- denação, comunicação e controle dos eventos ocorridos durante o seqües- tro do presidente demonstrou que ninguém estava disposto a retroceder no caminho da consolidação democrática.

Finalmente, dada a gravidade da situação em que se encontrava o país devido à exacerbação das demandas salariais e à dimensão conflituosa

que haviam alcançado, o setor reacionário das Forças Armadas não conse- guiu apresentar nenhum argumento capaz de estruturar um golpe de Esta- do. É provável que o temor de desencadear novamente as traumáticas jor- nadas de abril de 52 pesasse no ânimo dos grupos golpistas.

Em suma, as medidas políticas adotadas para restabelecer a autorida- de civil sobre as Forças Armadas transcorreram com relativa rapidez devi- do essencialmente à inexistência de prerrogativas militares condicionando a consolidação democrática. A atomização partidária e a forte presença do partido do general Bánzer no Congresso impediram o início imediato do jul- gamento das responsabilidades de seu governo e das ditaduras subseqüen- tes. O processo judicial iniciado em 1988 contra o governo de García Meza foi praticamente um acordo político entre os partidos conservadores, que condicionaram seu apoio à exclusão do general Bánzer, que fazia parte da coalizão governista.18

O profundo recuo militar, os processos judiciais contra alguns respon- sáveis da ditadura, o férreo controle interno e uma sociedade em contínuo es- tado de alerta impediram que setores marginais das Forças Armadas desesta- bilizassem o governo. Em contrapartida, o governo da UDP e os próprios co- mandos militares insistiram na necessidade de incentivar um rápido processo de profissionalização. Não se conseguiu, contudo, nem conceber, nem, o que é pior, elaborar um programa que desse fim à profunda crise de politização e desmoralização institucional. Decerto, isso não foi possível devido, essencial- mente, à prioridade dada pelo governo à solução dos problemas sociais e eco- nômicos acumulados nas duas últimas décadas e desencadeados nos cinco anos anteriores.

Uma vez restabelecido o clima de confiança, o governo da UDP se viu inexoravelmente obrigado a reintroduzir as Forças Armadas no cenário político, para restabelecer a ordem pública. A presença militar em funções policiais teve o objetivo de impor limites e conter a explosiva e caótica mo- bilização popular produzida pelos dramáticos efeitos da hiperinflação, nun- ca antes registrada na história econômica da Bolívia. Ante o colapso políti- co e econômico do país, Siles Z. se viu obrigado a renunciar ao governo um ano antes do término constitucional de sua gestão. Para tanto, convocou eleições para maio de 1985, ocasião em que a ADN, o partido do general Bánzer, obteve sua primeira vitória eleitoral. Embora o general não tenha assumido o poder, por não contar com o apoio de outros partidos, inaugu- rou, junto com o MNR, o ciclo dos acordos e pactos partidários pragmáti- cos e desideologizados.

18 Seis anos depois do restabelecimento da democracia teve início o assim chamado “Julgamen- to do Século”, contra o governo de García Meza, Arce Gómez e os responsáveis pelo golpe de julho de 1980. Após mais de 2.500 dias de julgamento, García Meza foi condenado a 234 anos de prisão e 4 mil dias de multa por nove tipos de delitos. Cf. El Diario, 23-4-1993. Ver também Justicia y dignidad; alegato presentado por la parte civil acusatoria en el juicio de responsabilidades contra la dictadura de García Meza (Sucre, 1992).

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