• Nenhum resultado encontrado

Os dois governos da Concertación

No documento Democracia e Forças Armadas no Cone Sul (páginas 132-137)

O primeiro governo pós-autoritarismo foi encabeçado por Patricio Aylwin, que venceu com 55% dos votos. O segundo, eleito com uma folga- da maioria de 58% dos votos, é o de Eduardo Frei Ruiz-Tagle (1994-2000).

As tarefas do primeiro governo pós-autoritarismo, ou primeiro gover- no de transição, conforme a perspectiva que se adote, foram sistematizadas da seguinte forma:17

“a) Conseguir o pronto retorno das Forças Armadas a seu papel profissio- nal, incluindo a renúncia a qualquer eventual pretensão de constituir- se o Exército em uma espécie de governo paralelo.

“b) Enfrentar o problema das violações dos direitos humanos de maneira tal que, atendendo ao imperativo ético e às exigências de justiça do mundo político-social e cultural da Concertación (vale dizer, da maioria da população), evite-se produzir o questionamento global e o encurra- lamento dos militares com o conseqüente risco de situações de insubor- dinação como as que ocorreram na Argentina. Em outra perspectiva,

15 Garretón (1995). 16 Moulián (1997). 17 Boeninger (1997).

136

V DE M O C R A C I A E FO R Ç A S AR M A D A S N O CO N E SU L

deve-se combinar justiça com prudência, como contribuição à reconci- liação nacional, ou seja, ao fortalecimento e ampliação dos consensos básicos, levando em conta que, nesta questão, a maioria dos que vota- ram ‘sim’ em 1988 e apoiaram Büchi (e inclusive Errázuriz) em 1989 apoiava e justificava os excessos militares.

“c) Assegurar a governabilidade inicial do país, desmentindo os prognósti- cos de caos, desgoverno e conflito dos partidários do regime que se reti- rava, que teriam posto em perigo a legitimidade ‘por desempenho’ da ainda frágil democracia reconstituída, servindo de pretexto a possíveis tentativas de retrocesso político.

“d) Completar o processo de legitimação institucional e construir consen- sos básicos em áreas que não haviam sido abordadas em 1989, a saber: os governos locais presididos por prefeitos nomeados por Pinochet e a legislação trabalhista.”

Finalmente, outra afirmativa central de Edgardo Boeninger é que a transição não terminou e não terminará até a total transferência do poder à soberania popular.

Como se pode perceber nessa definição, a primeira e central tarefa re- fere-se às Forças Armadas e a seu controle democrático. De uma perspectiva geral, nos processos de transição para a democracia, três elementos são fun- damentais para a reestruturação das relações civis-militares. O primeiro é a aceitação crescente das normas que regem a profissão militar e o controle ci- vil. O segundo, o surgimento de uma conjunção de interesses civis e milita- res que tenda a estabelecer um controle militar objetivo; e o terceiro, a cons- ciência de que o ajuste nas relações civis-militares tem um custo menor que outras reformas estruturais, e que seus benefícios são muito amplos.18

Essa tendência genérica revela matizes variados em cada um dos ca- sos nacionais. Não obstante, Samuel P. Huntington (1995) percebe distintos desafios nas relações civis-militares ao concluir-se o século. Esses desafios giram em torno de quatro aspectos principais: a) a possibilidade permanente de uma intervenção militar (recordava as recorrentes tentativas de golpe de Estado no último período); b) o modo de tratar os militares que têm alto grau de influência quando deixam o poder (ligada a isso encontra-se a ero- são dos pactos ou acordos que possibilitaram as transições); c) a definição dos novos papéis das Forças Armadas (ampliação da esfera de operações de paz e o combate ao tráfico de drogas e ao crime organizado); d) o modo de responder aos desafios do mundo moderno (os exércitos já não necessita- riam de bases de conscrição, modelo clássico desde a Revolução Francesa).

Se aplicados esses desafios ao caso chileno, pode-se assinalar o se- guinte: o primeiro é sempre o mais grave. Uma ruptura do sistema demo- crático pode se manifestar como um levante militar, um típico golpe de Es- tado, ou como um controle mais sutil do sistema político pelos militares através de outros instrumentos legais. No Chile, nem nas tensões de 1990, 1993 e 1995, nem no contexto da crise gerada pela detenção do general Pi- nochet, considerou-se plausível esse primeiro cenário, isto é, o de os milita- res tomarem o poder pela força. O segundo contexto também é visto como bastante improvável, mas, em alguns cenários desenhados por elementos da oposição, são percebidos enclaves autoritários que dão espaço a projetos de condicionamento. Isso se refere em especial ao uso que se poderia fazer do Conselho de Segurança Nacional como instrumento de condicionamento das autoridades democraticamente eleitas. Seria uma espécie de “bordaber- rização” do poder civil.19

No atual contexto latino-americano, qualquer desses casos significaria o isolamento diplomático, inclusive o isolamento comercial. De fato, desde que foram assinados os acordos da OEA de 1991 e as diversas cláusulas de- mocráticas anexas aos tratados comerciais, a adoção de medidas internacio- nais diante de uma ruptura da democracia significaria a marginalização do país nos sistemas regional e global. No quadro da globalização, os custos, po- líticos, econômicos e outros, são incrementais.

O segundo desafio refere-se ao tipo de relação civil-militar que se es- tabelece. Em casos como o chileno, as Forças Armadas mantêm altas cotas de poder após deixarem o governo, e procuram conservá-las no sistema de- mocrático. Isso diz respeito diretamente tanto às interpretações sobre os pactos que deram origem ao processo de transição, quanto ao processo em si. A detenção do general Pinochet em Londres pôs novamente em debate o tema dos “acordos de transição”. Passada uma década, renasce a discussão sobre os pactos assinados e os acordos tácitos que conformaram o processo de saída do regime militar.

A título de ilustração, eis dois ou três aspectos da discussão. No mo- mento da detenção do general Pinochet, militares aposentados que haviam colaborado estreitamente em seu governo declararam que as atitudes da coalizão democrática-modernizadora que governa o país estavam alterando os acordos que haviam possibilitado a transição. Assinalaram que durante o governo do presidente Aylwin teria havido acordos específicos produzidos por negociações particulares. Isso foi desmentido por alguns dos membros do gabinete do presidente Aylwin. Não obstante, abriu-se um debate sobre a questão.20

19 Essa situação refere-se ao caso uruguaio, no qual os militares tomaram o poder, mas manti- veram no cargo o presidente Bordaberry, o que lhes garantia uma fachada democrática. 20 Ver Qué Pasa e El Mercurio.

138

V DE M O C R A C I A E FO R Ç A S AR M A D A S N O CO N E SU L

No caso chileno, longe de haver um acordo de transição que ultrapas- se os consensos ou princípios orientadores da passagem do governo militar ao governo democrático, a constituição política não reflete a vontade majo- ritária do país. Não houve, no Chile, uma instância que permitisse pactuar a transição, como em outros regimes políticos e situações nacionais. Mais ain- da, deixaram-se de discutir justamente os aspectos mais significativos da configuração do regime militar, para compatibilizá-los com o regime que o sucederia. Entre estes, podem-se destacar os aspectos referentes ao sistema eleitoral, ao tribunal constitucional, ao Conselho de Segurança Nacional, às faculdades e atribuições presidenciais em relação às Forças Armadas, à composição das instituições como um todo. Por isso é que, no caso chileno, não houve acordo, nem foram pactuadas reformas substantivas. Isso impôs uma série de limitações ao regime democrático instaurado em 1990.21

Um observador qualificado como Edgardo Boeninger assinalou, acer- ca do tema dos pactos, que o complexo processo que se desenvolveu inclui “pactos explícitos, pactos tácitos ou implícitos, e um conjunto de estratégias e decisões políticas que se foram acumulando ao longo do tempo e que foram plenamente assumidas por alguns e contaram com a aquiescência consciente de outros”.22 Nesse sentido, sistematiza esses acordos nos seguintes pontos: a) o acordo e as reformas constitucionais de 1989. Acordo explícito que per-

mitiu estabelecer as normas básicas para a convivência posterior e que trazia em si um entendimento, não formalizado porém mais forte que um acordo tácito, de que um setor da oposição, a Renovación Nacional, apoiaria as mudanças substantivas necessárias à democratização do país; b) no âmbito da estratégia político-jurídica vinculada aos direitos huma-

nos, o mote central foi “verdade e justiça na medida do possível”. Dois aspectos constituíram pactos tácitos: nem lei de ponto final, nem revo- gação da Lei de Anistia. Os temas de direitos humanos seriam aborda- dos pelos tribunais;

c) aceitação das prerrogativas do general Pinochet e proteção de sua pessoa. Este é um pacto explícito. Envolve a aceitação do direito do general Pino- chet de continuar sendo comandante-em-chefe durante oito anos (1990- 98). Também estipula que, uma vez terminado tal período, assuma o car- go de senador vitalício. Essas prerrogativas estabelecidas legalmente fo- ram estendidas à proteção de sua pessoa por meio de instrumentos e pres-

21 Ver Agüero (1998). Sobre o debate na conjuntura da detenção do general Pinochet ver o arti- go de Felipe Agüero no El Mercurio, ¿Transición pactada? (Santiago, 20-11-1998).

22 Edgardo Boeninger, La detención de Pinochet, La Segunda (Santiago, 5-11-1998). Além dos condicionantes domésticos que descrevemos, destaca-se que no contexto internacional produ- ziu-se uma erosão da soberania, o que afetou o debate sobre os temas de justiça internacional.

sões que beiravam a ilegalidade, em especial no que se refere ao envio de cheques pelo Exército a um de seus filhos;23

d) deve-se reconhecer que se foi esgotando a capacidade de continuar res- peitando por tão longo tempo as sucessivas transações e acordos.

É preciso destacar aqui que a formalização ou ampliação subjetiva e objetiva de algumas das prerrogativas foi obtida através de ações incompatí- veis com a legalidade, ou no limite desta, e por um estreito exercício das ca- pacidades e atribuições das autoridades.

O terceiro desafio assinalado por Huntington é o que se refere aos pa- péis das Forças Armadas. Neste caso, existe no Chile um alto grau de con- senso acerca dos papéis e missões fundamentais das Forças Armadas. Nem as autoridades civis, nem as Forças Armadas estão buscando novas atribui- ções, e nem se trata de envolvê-las no combate ao narcotráfico. Mais ainda, existe uma clara consciência da necessidade de diferenciar claramente os papéis policial e militar. As diferenças de opinião correspondem ao grau de autonomia, perante as autoridades civis, com que as Forças Armadas po- dem estabelecer projetos institucionais.24

O quarto desafio refere-se a como responder às mudanças ocorridas no mundo, à forma de organização que deverão adotar as Forças Armadas no futuro. As respostas serão dadas pela densidade histórica e pelos condi- cionamentos geográficos, políticos e econômicos de cada Estado nacional. Dificilmente haverá soluções globais. Não obstante, algumas mudanças de- rivadas da tecnologia afetarão, de maneira direta e global, os desenvolvi- mentos e as formas de organização das Forças Armadas. O que fica eviden- te é o maior peso de ações fora das fronteiras nacionais nas Forças Arma- das dos países desenvolvidos. O tema da interoperatividade e novas formas orgânicas acompanham esse processo.

Um aspecto importante vinculado ao modo de responder às mudan- ças no mundo, que ficou patente no caso Pinochet, refere-se a como as For- ças Armadas percebem o novo contexto internacional e à maneira de estabe- lecer as prioridades estratégicas do país. A detenção do general Pinochet obrigará a repensar os condicionamentos globais em temas substantivos para a soberania nacional e para a capacidade dos países pequenos e médios num contexto em que as regras não estão claras e em que se passa por um lento processo de estabelecimento de normas.

No Chile, as relações civis-militares no século XXI terão novas caracte- rísticas, na medida em que se decantarem três questões fundamentais do pro-

23 Estes fatos provocaram as principais tensões no período de Patricio Aylwin, e também do presidente Frei, e culminaram quando o primeiro mandatário, “por razões de Estado”, solicitou ao Conselho de Defesa do Estado que não desse prosseguimento às ações judiciais.

24 Ao longo dos 10 anos de transição, cada uma das forças implantou de maneira bastante autô- noma projetos referentes à política oceânica, às fronteiras internas e às questões aeroespaciais.

140

V DE M O C R A C I A E FO R Ç A S AR M A D A S N O CO N E SU L

cesso político: a) a forma definitiva, se houver, da reconciliação nacional; b) os termos nos quais se resolva a discussão constitucional e a questão das prerrogativas e autonomia das Forças Armadas; e c) a capacidade dos civis de exercerem a liderança na defesa. Uma transição política e econômica bem-su- cedida não resolve os problemas das relações com as Forças Armadas.25

No documento Democracia e Forças Armadas no Cone Sul (páginas 132-137)

Documentos relacionados