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Perspectivas sobre o papel e a função militares no Brasil

No documento Democracia e Forças Armadas no Cone Sul (páginas 115-122)

Há razões suficientes para considerar que há uma mudança qualitati- va na relações civis-militares em países que emergem de regimes autoritá- rios. Para Samuel Huntington (1996), três ordens de fatores atestam um re-

32 Martins Filho & Zirker (1998).

33 A Lei de Diretrizes e Bases da Educação, sancionada em 1996, afirma que o ensino militar reger-se-á por normas próprias. Ao que se saiba, é a única exceção existente. Esta menção tam- bém é assinalada na Medida Provisória nº 1.911-7, de 29-6-1999, que altera a Lei nº 9.649 e

que dispõe sobre a organização da Presidência da República e dos ministérios. Ao tratar da res- ponsabilidade do Ministério da Educação, considera-o responsável pela educação em geral, “exceto o ensino militar”.

lativo sucesso: a) as normas de profissionalismo militar e de controle civil são mais bem aceitas ao redor do mundo; b) as elites civis e militares reco- nhecem que a institucionalização do controle civil objetivo serve aos inte- resses de ambas; c) estas reformas trazem novos benefícios, como a redução dos gastos militares, a diminuição de abusos aos direitos humanos e a trans- ferência de indústrias bélicas para as mãos de civis.

De todo modo, é preciso verificar o grau de institucionalização da su- premacia civil sobre o poder militar no Brasil. Instituições são padrões re- gularizados de interação que são conhecidos, praticados e aceitos regular- mente (embora não necessariamente aprovados normativamente) por agen- tes sociais determinados que, com base nessas características, mantêm a expectativa mútua de continuar interagindo sob as regras e normas incorpo- radas nesses padrões. Como em qualquer processo político e social, a insti- tucionalização supõe etapas de maturação.

Supremacia civil é mais do que simplesmente minimizar a interven- ção militar na política. Inclui a necessidade de as autoridades civis terem primazia em todas as áreas, inclusive na formulação e implantação da políti- ca de defesa nacional. Também significa a capacidade de determinar orça- mentos, estratégias de defesa e prioridades, aquisição de armas, currículos militares e doutrina; assim como o Legislativo deve ter a capacidade de re- ver essas decisões e monitorar sua implantação.

Capacidade é um conceito fundamental que envolve não apenas “au- toridade estatutária”, mas conhecimento, compreensão e experiência para formular decisões efetivas, a fim de que tenham credibilidade, o respeito e a aceitação das próprias Forças Armadas. Daí a necessidade de treinamento de civis para defesa e estratégia, assim como do papel da universidade, da mídia e de outras organizações da sociedade civil no conhecimento da defe- sa nacional.

Essa institucionalização está compreendida em um cenário difuso, no qual as missões militares clássicas são expostas a dúvidas e a novas orienta- ções. O fim da Guerra Fria, por reduzir as ameaças externas, implicou novas missões para os militares, como o combate ao tráfico de drogas e outras ati- vidades criminais, o que pode levar ao risco de enfraquecer o profissionalis- mo militar. No aspecto político, altera-se o modelo clássico da relação entre Forças Armadas e Estado, modificando uma estrutura secular da democra- cia liberal, na qual o poder armado constitui a essência da instituição estatal enquanto orienta suas ações para um inimigo externo. Os países da América Latina possuem uma longa tradição pretoriana que aponta como inimigos do Estado aqueles entes reconhecidos nas fronteiras internas — os inimigos da ordem — para os quais volta-se a atuação do poder armado, como suce- deu durante a Guerra Fria. Ultrapassada a fase de regimes autoritários e in- definidas as ameaças ao Estado, novamente corre-se o risco de transforma- ção das Forças Armadas em forças policiais, relação simbiótica inadequada para a consolidação democrática, ao fundar uma oposição entre Estado e parcelas da sociedade. Por outro lado, a inclusão das Forças Armadas em missões de natureza policial, dada a tradição republicana brasileira de inge- rência militar na política, é uma dificuldade adicional para a efetivação do

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controle civil dos militares. Quando a ênfase do emprego da força militar re- cai sobre a dimensão externa, aquele controle é facilitado, ocorrendo o con- trário quando o emprego militar é orientado para a arena interna.34

No que diz respeito à estruturação, ao preparo profissional e aos meios disponíveis, o uso das Forças Armadas na segurança pública mostra-se ina- dequado, já que a profissionalização militar está centrada no combate con- vencional de outras forças de mesma natureza.

De outra parte, o desenvolvimento e a difusão de novas tecnologias alteram as relações civis-militares, exigindo modificações no serviço militar. Em muitos países, o sistema de conscrição está sendo substituído pelo vo- luntariado, alterando substantivamente a identificação, oriunda da Revolu- ção Francesa, entre o soldado e o cidadão. As Forças Armadas brasileiras, em destaque o Exército, apresentam resistências em adotar esse novo mo- delo, não só pelos custos envolvidos, mas também porque há um caráter simbólico que busca preservar: a caserna como fator de formação da nacio- nalidade e do patriotismo. Estes são valores arraigados entre os militares e mesmo em parcelas da sociedade. Na prática, o elevado índice de desem- prego torna o serviço militar uma alternativa atraente para muitos jovens em idade de conscrição, de sorte que esta não é uma questão que mobilize a opinião pública. Ainda assim, o impacto tecnológico e as exigências de maior eficiência e preparo das tropas serão, crescentemente, uma variável a ten- sionar o modelo vigente.

Outros aspectos ainda devem ser revistos para o aperfeiçoamento dessas relações. É certo que o envolvimento direto dos quartéis na política partidária não é adequado, pelos riscos de perda da neutralidade do poder armado do Estado, mas é pouco justificável que os conscritos e profissionais com formação superior (médicos, dentistas, farmacêuticos etc.) que prestam o serviço militar obrigatório sejam proibidos de exercer o direito de voto. Pelo temor da partidarização militar, as Forças Armadas se empenharam para que esse quesito fizesse parte da legislação eleitoral. Dessa forma, cria- se uma cidadania de segunda categoria e restringem-se gravemente os direi- tos políticos das pessoas envolvidas. Este é um debate a ser realizado no Congresso, pelo interesse do aperfeiçoamento democrático.

As perspectivas quanto às relações civis-militares indicam que, se ocor- rerem crises nessas relações, a origem mais razoável será o outro lado da equa- ção. São os líderes civis os responsáveis pela criação e efetivação de maior e constante abrangência dos resultados da democracia. Crescimento econômico e principalmente melhor distribuição de renda são fatores decisivos para que se aprofunde uma cultura democrática. A legitimação do sistema político de- pende urgentemente da forma pela qual se produzirem e distribuírem os pro- dutos gerados por toda a sociedade. Embora os objetivos dessa orientação se- jam bem mais elevados, a construção de uma sociedade mais eqüitativa é um modo de se afastar situações em que a ordem seja considerada em risco e em que haja a tentação de soluções com matrizes autoritárias.

Mas, ainda assim, também os militares devem transformar sua visão de que são o reduto final da nacionalidade e de que podem, a depender das circunstâncias, tomar a si a tarefa de definir quando há uma situação de ex- cepcionalidade e onde há risco para a soberania ou a sobrevivência do Esta- do, tal como sucedeu ao longo do ainda curto período republicano do país.

Considerando nossa hipótese da vigência de uma direção política do presidente da República sobre as Forças Armadas, a qual dispensa o concur- so do Congresso Nacional, a não ser de modo subsidiário e dependente, o controle civil objetivo que fornece a moldura para tal direção política teria os seguintes componentes:

No plano da profissionalização militar: as Forças Armadas continuam desenvolvendo projetos de capacitação e desenvolvimento tecnológico de longo prazo iniciados nos anos anteriores, ainda que submetidos a restri- ções crescentes de natureza orçamentária. Este é o caso específico do proje- to Calha Norte, iniciado em meados da década de 1980 com forte tom mili- tar, e que se encontra praticamente desativado em razão de sua prioridade inexpressiva (um equívoco do atual governo), de restrições de orçamento e do descumprimento das responsabilidades das agências civis. O programa espacial sob coordenação da Aeronáutica parece preservar seu ritmo, em as- sociação com agências similares da França, da China e de outros países. Do mesmo modo, a Marinha preserva o projeto de submarino nuclear com planta industrial e laboratórios de pesquisa sujeitos, como os outros proje- tos, às desventuras das variações do orçamento. Projetos como “guerra ele- trônica” e renovação de equipamentos bélicos ganharam significativo im- pulso nos últimos anos e, no governo atual, um impulso importante com a importação de material bélico mediante recursos internacionais.

No plano da direção política dos presidentes da República: dado que es- ses programas têm duração média ou longa, nem todos se iniciaram sob a direção política do atual presidente, o que equivale a afirmar que esta dire- ção tem ocorrido, em alguma medida, desde as presidências anteriores. Por- tanto, não se trata de uma característica deste governo, mas da relação dire- tiva da Presidência da República com os militares no sistema político brasi- leiro. Mas convém destacar que o impulso mais relevante a esse tipo de relação entre o governante máximo e o aparelho militar foi dado pelo presi- dente Ernesto Geisel, ao executar as fases iniciais de seu projeto de descom- pressão política e de retirada do aparelho militar do exercício direto e insti- tucional do poder político.

Essa direção política depende essencialmente da visão de um presi- dente acerca da temática militar e da defesa nacional e é condicionada pela estratégia que estará disposto a executar em razão dos riscos políticos e da avaliação da relação custos-benefícios. Tal direção é personalista também do ponto de vista uni-institucional, na medida em que se encontra centralizada na Presidência da República — compartilhada com os ministros militares, que, como se afirmou anteriormente, representam suas forças no governo —, abdicando desse modo de um grau acentuado de co-responsabilidade do Po- der Legislativo.

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O controle civil objetivo e institucional deveria envolver, além da aludi- da profissionalização militar, o exercício de um quadro de responsabilidades e prerrogativas tanto do Congresso Nacional quanto do presidente da Repú- blica, de modo permanente, se não persistente e durável ao longo do tempo. No caso brasileiro, é a isto que este ensaio se refere quando examina a pos- sibilidade de modificações na Constituição de modo a firmar-se tal co-res- ponsabilidade.

O controle civil objetivo e personalista pode ser caracterizado no man- dato do presidente Ernesto Geisel, atingindo seu ponto máximo com o pre- sidente Fernando Henrique Cardoso e sua política de defesa nacional asso- ciada à agenda militar já comentada neste ensaio. Tomando-se como pontos extremos de uma linha contínua e crescente de desempenho deste modelo, no ponto inicial e mais baixo encontrar-se-ia o presidente José Sarney no contexto de uma tutela militar; no ponto intermediário, os presidentes Cas- telo Branco (que, apesar da conturbação do regime militar em implantação, reformou a permanência dos generais no quadro da ativa com reflexos pro- fissionais altamente positivos), Costa e Silva, Garrastazu Médici e Itamar Franco; no nível mais elevado de direção política, os presidentes civis Fer- nando Collor de Mello (que extinguiu o Serviço Nacional de Informações e o sucedâneo do Conselho de Segurança Nacional) e Fernando Henrique Cardoso (acerto da questão dos desaparecidos, cooperação militar com a Ar- gentina, política de defesa nacional e criação do Ministério da Defesa). Con- forme já se disse anteriormente, se o perfil de direção da área militar por es- tes presidentes é bastante diferente entre si, é-lhes comum a situação de ali- jamento do Congresso Nacional em seu papel coadjutor.

Portanto, esse tipo de controle civil comporta duas naturezas sob a mesma forma. Primeiro, em seu ponto baixo ou médio, as Forças Armadas não têm alterada a sua condição de autonomia política. Ou seja, elas podem até ter direitos profissionais alterados em maior ou menor profundidade, mas não o direito essencial da intervenção política. Segundo, em seu grau mais elevado, a direção política se exerce efetivamente sobre as Forças Ar- madas nas condições de exclusiva atuação do presidente da República.

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