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Crise ideológica e moral das Forças Armadas

No documento Democracia e Forças Armadas no Cone Sul (páginas 59-66)

Os últimos governos militares viveram, indiscutivelmente, no mais absoluto isolamento político. Não apenas enfrentaram a perda de seus alia- dos políticos — os empresários, a classe média e, fundamentalmente, os camponeses, fator de contrapeso — como, na esteira da profunda decompo- sição ideológica, viram-se sem apoio em seu próprio entorno institucional. Sua orfandade política e a fragmentação interna contribuíram para a derru- bada de seus mitos autolegitimadores, que haviam sustentado seu acesso ao poder, e a permanência nele.

6 Na convocação das eleições de 1978, 23 partidos se apresentaram. Três meses depois, e em meio ao debate sobre a reforma eleitoral, surgiram 53 novos partidos, em um processo de divi- são que não se encerrou em 1979: para as eleições de 1980, a Corte Nacional Electoral regis- trou 72 partidos, revelando profundas polarização e atomização sociais.

7 Na verdade, é o movimento civil regional (fator de agregação final) que acaba rompendo a unidade militar e deslocando o cenário das negociações: enquanto este movimento não entrou em cena as decisões políticas se concentravam na sede do governo. Por isso mesmo, o surgi- mento desse novo fator desestabiliza a lógica espacial do controle militar concentrado no alti- plano boliviano, situação aproveitada pelas facções militares dissidentes, que, por sua vez, buscam o apoio de seus conterrâneos da região oriental da Bolívia. A identidade cultural dos dissidentes orientais em seu espaço natural torna-se fator relevante na negociação e solução do conflito. Desse modo, a incorporação política às decisões nacionais de uma zona marginal e o ânimo regional de neutralizar projetos de desenvolvimento que pudessem reduzir seu cresci- mento evidenciam uma nova fase estatal caracterizada pelo deslocamento do eixo econômico e político do ocidente para o oriente. A queda do regime militar inaugura esta nova fase, consti- tuindo-se em momento formativo de um novo projeto de modernização nacional.

Ao longo do ciclo autoritário, a instituição militar jamais conseguiu estabelecer uma ordem política estável em sua relação com a sociedade, nem tampouco satisfazer às múltiplas demandas corporativas. Os diversos governos militares, além de usarem a rede clientelista com certo grau de su- cesso, recorreram repetidas vezes à força para conter a revolta social. A dé- bil articulação ideológica das Forças Armadas e a pouca legitimação de seu governo foram os fatores que, desde o começo, se salientaram na transição. Durante a última década, as Forças Armadas passaram por crises po- líticas inesperadas, que evidenciaram a persistência de um forte sentimen- to nacionalista, como os protagonizados pelos governos de Ovando-Torrez até a instalação do nacionalismo de direita dirigido por Bánzer. A oscilação ideológica das Forças Armadas gerou a desordem interna, pois, enquanto al- guns repetiam o libreto progressista da Revolução Nacional da soberania e da autodeterminação do Estado boliviano, os governos militares de direita assestavam duros golpes contra a matriz produtiva, a capacidade de gestão e negociação estatal e as alianças estratégicas que de algum modo manti- nham um equilíbrio, ainda que instável, nas arenas política e econômica.

Essa tensão ideológica caracteriza a administração militar entre 1969 e 1978. A partir de então, tende a desaparecer, cedendo lugar às manifesta- ções do tradicional discurso da segurança nacional, que seria o sustentácu- lo básico do poder militar. Em conseqüência, as administrações militares já não se esforçam para legitimar um programa de governo dotado de conteú- do ideológico-político. Antes, reforçam anodinamente um discurso hobbe- siano de ordem e segurança. O traço mais patético dessa espécie de “levian- dade ideológica” é a circularidade de sua lógica de desenvolvimento, que consiste em separar, quase totalitariamente, as premissas de ordem, paz e trabalho. Por isso mesmo, os governos militares não resistem ao mais leve questionamento e se esforçam, por outro lado, para culpar os outros por suas falhas administrativas.

Como Mayorga (1991) muito bem assinalou, ao longo de toda a transi- ção, as Forças Armadas foram-se atribuindo uma espécie de princípio ontoló- gico de representatividade pura da nação e de intangibilidade histórico-políti- ca, pela qual se tornavam a instituição depositária da soberania nacional, fi- cando acima da história, dos conflitos sociais e dos interesses particulares.

O discurso da doutrina de segurança nacional, vinculado à instauração de uma ordem política fundada em lógicas binárias excludentes, como a de amigo-inimigo, ou de pátria-antipátria, ordem-caos, constitui o traço mais destacado do receio de perder seu valor institucional maior — sua autono- mia. Este é um dos suportes ideológicos mais fortes que começou a se esgo- tar durante a transição por dois motivos: primeiro, porque tal autonomia ins- titucional revelou-se absolutamente insuficiente para garantir a unidade mili- tar em processo de decomposição e, segundo, porque sua vitalidade corpora- tiva desabou diante dos dramáticos efeitos da administração do governo de García Meza. O conluio entre o narcotráfico e os paramilitares em benefício de uma casta cleptocrática feriu profundamente os princípios profissionais da maioria dos militares. Esta situação pôs por terra a típica argumentação da ra- zão estatal e sua correspondente deificação.

A capacidade de organização e a força sindical que cresceu vertigino- samente entre 1978 e 1982 levaram as Forças Armadas ao emprego da vio-

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lência quase como um fim em si mesmo. Essa conduta tem uma explicação histórica, relacionada com a frágil formação ideológica, fustigada pelos fra- cassos militares do século XIX e princípios do XX: as conseqüências trau- máticas da Guerra do Chaco e a dramática derrota política sofrida durante a Revolução Nacional. Todos estes fatos impediram o adequado desenvolvi- mento doutrinário e militar e, devido a isso, sua plena integração e legitima- ção institucional frente à sociedade.

Vale dizer, a memória institucional das Forças Armadas não se estru- turou, como devia, em correspondência com a construção de um Estado Nacional, simplesmente porque tal Estado foi, como afirma Almaráz (1989), provisório. Ao contrário, tal memória serviu essencialmente à eficácia insti- tucional contingente articulada em torno de seu êxito no que diz respeito à segurança e ao controle social internos. Por isso a morte de “Che” Guevara na guerrilha de Ñancahuazú aparece como seu maior feito institucional no século XX.

Para as Forças Armadas, a possibilidade de perder o controle do po- der numa situação de profunda crise política significava reeditar seu trau- mático passado, que configurara sua memória da derrota durante a Revolu- ção Nacional. Pelo mesmo motivo, ante a pressão social, a instituição ape- lou para aquilo que se pode denominar seu “ídolo ético”. Vale dizer, apelou para essa memória, como efeito psicológico, para produzir uma conduta cor- porativa uniforme. Foi essa memória traumática que subsistiu como denomi- nador comum neste ciclo de transição política violenta.8

A lógica tutelar, a que continuamente as Forças Armadas recorreram para defender sua intervenção na política, sofreu um rápido desgaste du- rante a transição. As Forças Armadas, que sempre se apoiaram no recurso à força para lograr sua modernização, viram na transição a certeza da perda dessa lógica. Para mantê-la intacta, recorreram ao típico expediente de apre- sentar a UDP como a versão mais perigosa para a viabilidade política e eco- nômica do país. Acusaram-na de encarnar “o reino do terror marxista”, ar- gumento que serviu igualmente, ainda que de modo menos explícito, ao golpe do general Padilla, mas que adquiriu contornos quase grotescos du- rante o golpe de García Meza.

A intervenção militar na Bolívia tem sido repetidamente precedida pelo peso de seus traumas históricos. Esta situação fez com que as Forças Armadas reagissem diante de qualquer tipo de ameaça a sua autonomia. A renúncia a tal autonomia quase sempre foi associada à perda de sua possibi- lidade de modernização, já que esta é a dimensão a partir da qual, historica- mente, sempre conseguiram se desenvolver.

8 Embora o golpe de Estado na Bolívia revele muito pouco como fato em si, já que o hábito de mudar governos por esta via ocorre aqui constantemente, é um meio de revelar uma crise mili- tar. De nosso ponto de vista, ainda que expressem um determinado grau de unidade corporati- va diante de uma ameaça externa, os golpes de Estado na Bolívia são utilizados, ainda que não de maneira explícita, como recurso para manter a coesão militar. Os tradicionais argumentos de “caos social”, “anarquia”, “debilidade do Estado” fizeram a instituição se ver como detentora da razão do Estado, o que permitiu que se convencesse de sua tutela política da sociedade.

A desprofissionalização

Outro fator que presidiu o colapso do regime militar foi, sem dúvida, sua profunda crise profissional, situação que impediu o planejamento de uma retirada ordenada. Sua transformação pretoriana, desde meados da dé- cada de 1970, obrigou as Forças Armadas a maximizar o emprego de seus re- cursos repressivos, com a conseqüente debilitação de suas próprias bases de apoio orgânico. O crescente inconformismo, dentro do setor institucionalis- ta, não apenas com a forma de governar, mas também com o insucesso go- vernamental, acabou por interpor-se na já difícil tarefa de administrar os conflitos sociais.

A rápida deterioração do governo militar e a iminente transferência do governo aos civis inquietaram ainda mais grandes grupos militares que ainda não haviam usufruído do poder. Tais grupos afirmavam que não esta- vam dispostos a abdicar facilmente dos privilégios e prerrogativas das sine- curas que se haviam tornado costumeiras nas Forças Armadas. Aferrados a essa lógica, converteram as Forças Armadas em um campo de batalha, ten- tando convencer uns e outros de que ainda não havia chegado a hora de en- tregar o poder aos civis.

Essa lógica explica de certa maneira por que os governos militares nunca assumiram a administração governamental como um projeto institu- cional coerente, e sim como uma expressão de poder apoiada numa “lógica utilitária de caráter hereditário e messiânico” que encontrava justificação nos vazios conjunturais de poder.

Durante o longo ciclo governamental de Bánzer, por exemplo, o rodí- zio de oficiais na burocracia governamental, como parte de um butim políti- co mascarado como “prestação de serviços patrióticos à nação”, foi menor nas Forças Armadas e, de certo modo, bloqueou o acesso aos benefícios esti- pulados nos tradicionais códigos burocráticos utilitários. Contudo, uma vez aberta a comporta da transição, a desesperada busca de usufruto estatal de- sencadeou uma luta surda e tenaz por promoções, situação que se repetiu entre os oficiais que diziam encarnar um mandato e uma liderança institu- cionais indiscutíveis.

Não se sabe com certeza quantas tentativas de golpe de Estado ocor- reram entre 1978 e 1982 em conseqüência dessa lógica messiânica. Afirma- se anedoticamente que cada dia que passava constituía um golpe frustrado e o início do planejamento do próximo. Isso explica o grau de politização da carreira militar e seu extravio profissional, já que o parâmetro de competên- cia militar havia se deslocado para o plano político, deixando o desenvolvi- mento profissional na orfandade.

Entre 1974 e 1978, várias tentativas malsucedidas de golpe de Estado tiveram como argumento a retomada do profissionalismo. A de Padilla, em 1978, teve êxito, mas outras que se apoiaram neste mesmo argumento, prin- cipalmente as que foram comandadas pelo tenente-coronel Emilio Lanza, a partir da cidade de Cochabamba, e as de Añez e Cayoja, a partir de Santa Cruz, contra García Meza, tiveram de esperar um pouco mais para ver seus esforços coroados de êxito.

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O fracasso das aventuras golpistas causou muitos problemas nas For- ças Armadas. Os vínculos corporativos — o chamado “espírito de corpo” — sofreram tanto com a arrogância dos vencedores quanto com a humilhação dos vencidos. Armas, turmas e gerações assimilaram o trauma dessa cons- tante oscilação política.9 As deportações, os exílios, as baixas ou processos de depuração constituem os sintomas mais agudos da fragmentação inter- na. Tudo isso assinalava que o território da disputa pelo poder entre as For- ças Armadas e a sociedade havia sido incorporado ao próprio cenário insti- tucional. A profunda divisão entre as armas durante o governo de García Meza é testemunho disso. García Meza sofreu assédio militar de vários flan- cos geográficos, mas também conspirações provenientes de diversas frentes institucionais. Em muitos casos, as profundas divisões internas foram apla- cadas provisoriamente por um conjunto de sinecuras corrosivas denomina- das bonos de lealtad (bônus de lealdade).

Assim, as conseqüências de uma longa permanência no poder se fa- ziam sentir através do que se pode denominar a reinstalação da cultura ple- biscitária, sinecurista e clientelista nas Forças Armadas, hábito de politiza- ção e desprofissionalização que operava de forma paralela a seus registros hierárquicos. Tais práticas não eram novas, já que o MNR as praticara, pro- vavelmente com menos sofisticação, durante seu governo (1952-64).

Conquanto a desprofissionalização militar tenha se produzido no go- verno civil do MNR, as fases mais críticas se desenrolaram durante os regi- mes de Bánzer e García Meza. Incapazes de conseguir a unidade militar, es- tes entregaram a círculos muito próximos, marcados pela corrupção, cargos da máxima responsabilidade administrativa.

Particularmente durante o governo Bánzer, violaram-se sensíveis có- digos corporativos. Nunca, até então, os próprios militares haviam dado fim misterioso e trágico a seus camaradas de oposição. As mortes misteriosas do coronel Andrés Selich, principal aliado no momento do golpe, assim como o estranho assassinato de Zenteno Anaya na França e a brutalidade com que as- sassinaram Torrez em Buenos Aires geraram profundo mal-estar nas Forças Armadas.

O prolongado ciclo de governo das Forças Armadas produziu um proces- so de conversão funcional de suas tarefas de defesa para as de ordem interna. Isso deteriorou profundamente seu padrão de profissionalização. A ditadura praticamente transformou as Forças Armadas em polícia, a ponto de transtor- nar os padrões convencionais de competência profissional.10 Não só se en-

9 Durantes as décadas de 1960 e 70, as Forças Armadas enfrentaram inúmeros conflitos de ge- rações derivados das fases históricas que marcaram a memória das gerações através do desen- volvimento profissional no Colégio Militar do Exército. A presença de oficiais que haviam conquistado suas patentes em combate durante a Guerra do Chaco, a geração que estudou de- pois da guerra nos institutos militares, amparada por um modelo educativo ideológico e oligár- quico, e os que fizeram parte das reformas provocadas pela Revolução Nacional enfrentaram conflitos ideológicos e corporativos insolúveis em muitos casos. Para compreender como se formaram as memórias corporativas cíclicas, ver Quintana (1996).

volveram na ocupação dos centros mineiros, como chegaram até a utilizar instalações militares para práticas policiais, tanto para detenção e confina- mento, quanto para tortura. Assim, os oficiais se viram envolvidos em práti- cas policiais, ferindo com isso seu decoro e sua orientação ética e profis- sional.11

Os movimentos institucionalistas reprimidos por meio de depura- ções radicais foram deslegitimando o poder governamental das Forças Ar- madas e instalando um clima de suspeita e incerteza. Essa situação refor- çou o vezo centralizador, autoritário e arbitrário do presidente, que em vá- rias ocasiões exerceu uma tríplice função: chefe do Executivo, capitão-geral das Forças Armadas e comandante-em-chefe das mesmas. Contudo, a im- possibilidade de administrar o descontentamento militar levou ao desenvol- vimento não só de práticas clientelistas, como de um vasto sistema de inteli- gência doméstica no interior das Forças Armadas.

O uso discricionário e instrumental das normas para conferir, ampliar ou reforçar prerrogativas, juntamente com a falta de um projeto de moderni- zação institucional produziram também uma notável irritação na tropa. Apro- fundou-se a crise de identidade entre os que aderiam incondicionalmente ao governo e os que mantinham uma conduta profissional, produzindo-se crises disciplinares muitas vezes incontroláveis. Por exemplo, o fracasso da política internacional do Poder Executivo quanto à reivindicação marítima do Chile, em 1976, levou a uma tentativa de golpe de Estado.12

Durante o governo de García Meza, a transformação do padrão de competência profissional, que se apoiou na eficiência repressiva dos órgãos de inteligência, foi um dos elementos que mais afetou o desenvolvimento profissional. A ligação de membros das Forças Armadas com paramilitares, militares argentinos e narcotraficantes prejudicou ainda mais a unidade mi- litar, abatendo profundamente o moral do corpo de oficiais não envolvidos na trama governamental.

Dunkerley denomina este período “ditadura da delinqüência”, deno- minação que corresponde com propriedade ao padrão atípico de interven- ção militar e à forma de administrar o poder entre 1980 e 1981. Este foi, sem dúvida, um dos golpes mais cruentos da história do século XX, no qual se combinaram três elementos jamais registrados até então: financiamento e apoio de certos grupos pertencentes ao mundo do narcotráfico; forte apoio de militares argentinos, da linha mais dura da repressão, no processo de pla- nejamento e execução do golpe; e, finalmente, a presença de grupos parami- litares ligados a redes internacionais de terrorismo e tráfico de drogas.

11 As Forças Armadas viveram em constante crise e questionamento quanto à forma pela qual se articulou e se projetou a imagem do governo. Não observaram qualquer fronteira entre o processo de policialização e de politização institucional. A transformação que sofreu em razão da aliança firmada com os partidos de direita converteu a instituição militar no braço armado da Frente Popular Nacional. Da mesma forma, os efeitos visíveis do poder eram assimilados tanto pelos partidos, quanto pelas Forças Armadas. Assim, o empanamento da imagem institu- cional debilitou o compromisso de muitos oficiais com o governo.

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Até 1980, as intervenções militares tinham dois traços característi- cos. O primeiro era um bom grau de autonomia com pouca participação ci- vil, como foram os casos de Barrientos, Padilla e Pereda. Já outros golpes militares contaram com importante apoio e participação de partidos políti- cos, empresas privadas e membros destacados da sociedade, como os de Ovando-Torrez, Bánzer e Natusch. Mas o golpe de García Meza diferiu de ambos os esquemas, como já mencionamos. Esse golpe frustrou temporaria- mente as aspirações sociais de consolidar um modelo democrático de poder e introduziu graves transtornos na sociedade boliviana. Foi, sem dúvida, um governo carente de legitimidade e sua existência dependeu em grande parte do uso puro da força e da repressão. Comparativamente, esse foi um dos go- vernos militares mais distantes da sociedade. Foi, em muitos sentidos, a ex- pressão de uma aguda crise da instituição militar e de sua dificuldade em arti- cular-se com a democracia.

O inesperado aparecimento de García Meza no cenário converteu a ca- pacidade de negociação das Forças Armadas em uma derrota catastrófica. O golpe militar de julho de 1980 foi produto não só da débil articulação interna para fazer frente a uma sociedade que se obstinava em retornar aos cami- nhos da democracia, como uma reação a dois fatores convergentes: primei- ro, a incapacidade da instituição em articular-se em um modo de convivên- cia democrático e, por isso mesmo, sua incapacidade de definir os termos da transição. Os golpes e contragolpes ocorridos antes de julho de 1980, junta- mente com os discursos institucionais, revelam a sensação de perda de con- trole dos acontecimentos e, diante disso, a melhor solução encontrada foi o uso da força. Segundo, os interesses circunstanciais da máfia do narcotráfi- co, que se associou às figuras mais proeminentes do golpe militar.

Esse governo se sustentou puramente na força, posto que não encon- trou justificativas plausíveis — pior ainda, não tinha qualquer convicção — para negociar com a sociedade. Por isso, converteu-se em duplo refém. Primei- ro, das máfias de paramilitares e narcotraficantes, das quais extraía bons lu- cros em troca de sua livre atuação. Segundo, também se transformou em re- fém dos marcantes efeitos que essa associação ilícita produziu entre um vasto número de oficiais que controlavam não só a máquina burocrática do gover-

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