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Quebra-se a aliança de poder: tem início a transição

No documento Democracia e Forças Armadas no Cone Sul (páginas 159-161)

Na origem da transição encontram-se as chaves para se compreender os avanços e as continuidades em relação ao regime anterior no âmbito das relações civis-militares. A declaração insurrecional lida pelo general An- drés Rodríguez na madrugada de 3 de fevereiro de 1989 delineava uma agenda de cinco pontos:

1. Recuperação da dignidade das Forças Armadas. 2. Reunificação total do coloradismo no governo. 3. Início de um processo de democratização. 4. Respeito aos direitos humanos.

5. Respeito à religião católica.

Os dois primeiros pontos — e a ordem não é casual — remetem ao pac- to militar-colorado que sustentou o regime do general Alfredo Stroessner. A mensagem era clara: o golpe militar não alterava a vinculação. Um setor das Forças Armadas deslocava o outro e permitia que uma linha colorada mais afi- nada com a direção tradicional colorada voltasse ao governo, substituindo a li- nha mais dura do stroessnerismo. Ou seja, com o golpe, mudavam os nomes, mas não a articulação militar-colorada. A queda do general Stroessner foi pro- duto de uma ruptura na aliança de poder, em virtude do enfrentamento entre linhas partidárias e militares pela sucessão do ditador. Nesse sentido, não constituiu uma exceção à regra de que não há transição cujo início não seja a conseqüência direta ou indireta de importantes divisões no interior do pró-

prio regime.9 Ademais, na nova agenda internacional que estabelecia a carti- lha democrática, o combate ao narcotráfico e a abertura econômica foram fa- tores importantes para que o golpe de fevereiro de 1989 se convertesse em um processo de transição, mas sem a ruptura do eixo de poder do regime derrota- do. Outro fator importante, no plano interno, foi o fato de que nenhuma pes- soa ou grupo era capaz de concentrar um grau considerável de coerção para impor um regime como o de Alfredo Stroessner. A natureza do regime havia tornado impossível qualquer espaço de poder não mediado pelo chefe.10

O golpe de fevereiro de 1989 instituiu uma dinâmica de abertura que estabeleceu de imediato um amplo cenário de liberdades civis. Embora seja certo que a transição se originou de um golpe a partir de cima e de den- tro11 e que não provocou a dissolução do casamento colorado-militar, não é menos certo que, primeiro com pactos implícitos e, posteriormente, duran- te a administração Wasmosy (1993-98), com alguns acordos explícitos, hou- ve a gradual construção de uma institucionalidade democrática, inédita na história paraguaia.

No plano das relações civis-militares, uma primeira ruptura com o passado ditatorial foi a maior transparência informativa. O tema militar e o funcionamento interno das instituições militares se converteram — pratica- mente desde o início do processo de abertura política — em objeto de análi- se, tendo grande destaque nos meios de comunicação social. Essa é uma das principais mudanças em relação ao regime anterior. O clima de liberdades civis permitiu uma abordagem cada vez mais ampla da questão militar.

As primeiras eleições pós-autoritárias, em 1º de maio de 1989, tiveram

como principal finalidade a legitimação nacional e internacional do novo po- der surgido do golpe. A oposição concorreu a elas, aceitando regras que a tor- navam pouco competitiva: registro eleitoral ainda não saneado, maioria de autoridades eleitorais coloradas e falta de tempo real para preparação da má- quina eleitoral por parte de uma oposição que até semanas antes sofria seve- ras restrições de movimentação.

Durante o período Rodríguez (1989-93) assentaram-se as bases do que seria um dos aspectos da transição — uma apertada agenda eleitoral, com a manutenção de liberdades civis e uma incipiente democratização. A questão militar praticamente não foi abordada a fundo nem no plano legislativo nem no político, impondo-se uma espécie de pacto implícito entre a situação e a oposição. Esta última tinha como estratégia uma série de mudanças jurídico- políticas — como o novo Código Eleitoral (1990) e a Constituição Nacional (1992) —, além da expectativa de desgaste governamental, para tentar triun- far nas eleições de 1993.

9 O’Donnell, Schmitter & Whitehead (1988:56). 10 Abente (1989:38) e Martini (1997:167-8). 11 Simón (1999).

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V DE M O C R A C I A E FO R Ç A S AR M A D A S N O CO N E SU L

As eleições municipais de 26 de maio de 1991 pareceram dar razão a essa estratégia de gradualismo eleitoral. A oposição saiu vitoriosa em mais de 40 dos 200 municípios, sobretudo em alguns mais densamente povoados, mas o êxito emblemático foi em Assunção, a capital, onde um movimento inde- pendente obteve a vitória.

Até esse momento, a retórica dos principais chefes militares era a insti- tucionalização e a despartidarização militar. Contudo, essa derrota municipal acendeu uma luz de alerta na aliança de poder: as eleições podiam ser perdi- das. A partir de então reapareceram publicamente os sinais que, em privado, nunca haviam desaparecido: a vinculação colorado-militar. Um dos marcos é uma reunião em um clube de futebol, o Cerro Corá, fortemente ligado à Ca- valaria, arma preponderante e dominante nas Forças Armadas nos últimos 70 anos. Nessa reunião, o general Andrés Rodríguez, em companhia de outros generais, entre eles o ascendente general Lino Oviedo, depois de muito tem- po voltou a referir-se à “unidade granítica entre as Forças Armadas e o Parti- do Colorado”, lembrando que foi um “San Blas colorado” (em alusão ao santo padroeiro paraguaio, celebrado em 3 de fevereiro, data do golpe) que o ilumi- nara em fevereiro de 1989 e fazendo menção inclusive às milícias coloradas da guerra civil de 1947.

A partir desse momento reatava-se publicamente o pacto colorado- militar que, com o passar do tempo, teria no general Lino Oviedo sua estre- la ascendente e seu vértice de poder, com o projeto de manter o acordo ci- vil-militar em condições de liberdades civis e de concorrência eleitoral.

Cabe assinalar que esse tipo de abertura, a partir de cima e de dentro e com a manutenção do eixo colorado-militar, condicionou em grande medi- da a forma assumida pelas relações civis-militares durante a transição, e o gradualismo prudente e pragmático da oposição teve como contrapartida o não-questionamento dessa vinculação militar-colorada que impôs claros li- mites ao avanço de uma institucionalidade mais democrática e a um regi- me de real competição partidária. Nem o Estado mudou sua lógica assisten- cialista nem as Forças Armadas concretizaram efetivamente sua despartida- rização e adaptação às regras da democracia representativa. Inclusive, desde meados de 1991, de forma cada vez mais evidente, estruturou-se um projeto de manutenção da aliança colorado-militar que teve o general Lino Oviedo como ator central e cujo desenlace era imprevisível.

No documento Democracia e Forças Armadas no Cone Sul (páginas 159-161)

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