• Nenhum resultado encontrado

Um eixo contínuo: os direitos humanos

No documento Democracia e Forças Armadas no Cone Sul (páginas 137-140)

O tema dos direitos humanos constitui um elemento central em todo processo de transição para a democracia. A forma de resolvê-lo afetará de maneira decisiva o futuro do sistema político e as relações entre seus atores. Os regimes de segurança nacional estabelecidos nos países latino-americanos violaram de maneira sistemática e profunda os direitos humanos. A técnica de desaparecimento de pessoas afetou de maneira cruel milhares de famílias no continente. No Chile, esse tema constitui ponto crucial e de larga abran- gência, passados 10 anos da primeira eleição presidencial pós-autoritarismo.

No Chile, após o golpe militar, o terrorismo de Estado executado atra- vés de instituições oficiais foi responsável pelas maiores vítimas das viola- ções de direitos humanos e por mortos e desaparecidos. A principal respon- sável foi a Dirección Nacional de Inteligencia (Dina), criada pelo Decreto-Lei nº 521, de 18 de junho de 1974. Essa entidade ganhou grande autonomia no

Estado, ainda que mantendo vínculos diretos com a cúpula dirigente.

Com o intuito de estabelecer a verdade do Estado e assentar as bases de uma reparação, o governo do presidente Aylwin criou a Comisión Nacional de Verdad y Reconciliación, presidida pelo ex-senador Raúl Rettig, e que tinha por objetivo estabelecer a verdade e elaborar um relatório sobre as violações de di- reitos humanos cometidas durante o governo militar. As atribuições da comis- são eram reunir antecedentes, realizar investigações sobre os detidos e desapa- recidos, esclarecer as execuções sumárias e reconstituir os distintos casos que culminaram em morte, a fim de estabelecer a verdade sobre o ocorrido. A co- missão não tinha atribuições nem poderes para julgar e definir responsabilida- des penais ou judiciais, tarefa que ficou a cargo dos tribunais de justiça.

Em 8 de fevereiro de 1991, a comissão entregou seu relatório ao pre- sidente da República. O presidente o divulgou e fez um inflamado apelo aos chilenos para que aceitassem a verdade expressa no relatório. O presidente Aylwin reparou solenemente a dignidade das vítimas. “Atrevo-me, na quali- dade de presidente da República, a assumir a representação da nação intei- ra para, em seu nome, pedir perdão aos familiares das vítimas”.26

O Exército e as Forças Armadas em geral haviam manifestado apre- ensão quanto à comissão. O Exército e a Marinha entregaram ao Conselho

25 Varas & Fuentes (1994).

26 Aylwin, Discurso presidencial sobre el Informe de la Comisión Nacional de Verdad y Recon- ciliación. El Mercurio (Santiago, 5-3-1991).

de Segurança Nacional um parecer contrário ao Relatório Rettig. Em reu- nião realizada em 27 de março de 1991, o Conselho de Segurança consignou as opiniões oficiais das Forças Armadas. O Exército negou validade históri- ca e jurídica ao relatório. A Marinha assinalou que o documento continha recomendações interessantes, mas que “incorre em omissões e conclusões que não propiciam a integração harmônica de todos os setores da nação”.27

O relatório da Comissão Rettig estabeleceu a verdade do Estado; pas- sada quase uma década, esta foi aceita pela imensa maioria do país. Contu- do, a justiça não atingiu os níveis de satisfação que a sociedade chilena es- perava. Referindo-se à detenção do general Pinochet, o arcebispo de Santia- go declarou que ela era conseqüência, entre outras coisas, de não ter a justiça chilena feito tudo que era possível.

Na questão dos direitos humanos não existe consenso na sociedade e na elite política, em especial quando se trata de analisar o passado. Existem no Chile memórias históricas distintas, contraditórias e que dificilmente che- garão a acordo, o que é essencial para interpretar e avaliar os dramáticos acontecimentos que resultaram do golpe de Estado, seus antecedentes e suas conseqüências, particularmente no âmbito dos direitos humanos.

No governo de Patricio Aylwin, o tema dos direitos humanos ocupou lu- gar dominante. A reconciliação era o eixo em torno do qual se devia articular a redemocratização do país. Os progressos neste campo foram extraordinários. Conseguiu-se avançar de maneira significativa no conhecimento de parte im- portante da verdade. De igual forma, avançou-se no cumprimento das repara- ções. Contudo, promover a “justiça dentro do possível” foi um processo mais limitado. Daí a importância da decisão judicial no caso Letelier, que, ao punir com a prisão os responsáveis intelectuais por tais crimes, que por sua vez eram os responsáveis pela Dina, adquiriu um caráter simbólico mais geral so- bre as violações de direitos humanos.

No governo do presidente Frei, a questão dos direitos humanos foi abordada na perspectiva dos tribunais. Foi separada das “relações civis-mili- tares” e dos temas relativos à defesa. Tomaram-se diferentes medidas para solucionar a questão de maneira mais permanente, sem encontrar clima propício no Parlamento para avançar na temática. Ao segregar os temas do passado das definições da política de defesa e segurança, gerou-se uma mu- dança na perspectiva das relações civis-militares, orientando-as para o obje- tivo principal dessa área: estabelecer uma política explícita de defesa para o país e contribuir para a transparência no sistema de segurança internacio- nal. Mas o tema dos direitos humanos reapareceu com força, e ganhou ain- da mais força com a detenção do general Pinochet em Londres, em outubro desse mesmo ano de 1998. Para isso contribuiu a protelação de importantes decisões nos tribunais de justiça.

142

V DE M O C R A C I A E FO R Ç A S AR M A D A S N O CO N E SU L

Quando se observa a questão do ponto de vista da opinião pública, os números são bastante consistentes ao longo do tempo. Em uma pesquisa rea- lizada pela Flacso-Chile,28 73% dos entrevistados responderam que devia ha- ver algum tipo de sanção; 40%, que devia haver castigo incondicional; 19%, perdão e 33%, castigo condicional. No contexto do julgamento do general Contreras em julho de 1995, em sondagem realizada pelo Centro de Estudios de la Realidad Contemporánea (Cerc),29 68,9% dos entrevistados achavam que os chilenos não estavam reconciliados. Consultados sobre como solucio- nar os problemas das violações de direitos humanos ocorridas durante o go- verno militar, 43% declararam ser partidários de que se esclarecesse a verda- de e se julgassem todos os responsáveis; 18,7% inclinaram-se para o esclareci- mento da verdade e o julgamento dos responsáveis pelos casos mais graves. Em entrevista publicada por Qué Pasa,30 em dezembro de 1998, no contexto da detenção do general Pinochet em Londres, foi feita uma pesquisa sobre quanto contribuiria o fato de que Pinochet fosse julgado na Espanha, ou de que se fizesse justiça nos casos de violações de direitos humanos ocorridas em seu governo: 52,8% dos entrevistados responderam que contribuiria mui- to ou alguma coisa; 16%, que pouco, e 28%, que em nada contribuiria.

Durante o governo da Concertación, a partir de 1990, foram propos- tos diversos projetos para solucionar questões de direitos humanos, em di- versas perspectivas. Entre eles destacam-se oito iniciativas:31

Todos esses projetos procuravam dar algum tipo de solução à ques- tão dos direitos humanos, mas nenhum conseguiu ir adiante no Legislativo. A Lei de Anistia e o modo de os tribunais interpretá-la mudaram ao longo

28 Flacso-Chile, Informe de encuesta. Percepciones y opiniones sobre las Fuerzas Armadas en Chile (Santiago, jun. 1992).

29 Pesquisa Cerc. El Mercurio (Santiago, 21-7-1995). 30 Qué Pasa. Santiago (1446), 19 dec. 1998.

1. 1992 Projeto de reinterpretação da Lei de Anistia.

2. 1993 Propostas presidenciais conhecidas como Lei Aylwin. 3. 1995 Projeto de anistia do senador Sebastián Piñera. 4. 1995 Projeto de aplicação imediata da Lei de Anistia. 5. 1995 Projeto de reinterpretação da Lei de Anistia.

6. 1995 Proposta Frei para avançar nos temas de direitos humanos.

7. 1995 Fusão de diversos projetos.

8. 1995 Projeto governo oposição.

desses anos. Não houve nenhuma iniciativa de caráter global capaz de con- ciliar o senso de justiça com o de estabilidade, num quadro ético. Com a de- tenção do general Pinochet, surgiram iniciativas que procuraram possibili- tar gestos de aproximação, mas não haverá avanços significativos se não se conseguir estruturar uma perspectiva que atenda aos reclamos por justiça.

A principal conclusão de todas as pesquisas de opinião pública é que, para a maioria do país, há necessidade de se fazer justiça, mantendo a esta- bilidade e a governabilidade. O caso Contreras mostrou que isso é possível.

No documento Democracia e Forças Armadas no Cone Sul (páginas 137-140)

Documentos relacionados