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Do regime autoritário à democracia sem institucionalização militar

No documento Democracia e Forças Armadas no Cone Sul (páginas 155-159)

Imediatamente após o fim da Guerra do Chaco contra a Bolívia (1932-35), ocorreu um golpe de Estado, em 17 de fevereiro de 1936, que as- sinalou o súbito surgimento das Forças Armadas, como instituição, no cen- tro do sistema político. Já antes da guerra se fora gestando um descontenta- mento social com o Estado liberal oligárquico e um grupo de oficiais, ani- mado pela vitória na guerra, encabeçou uma sublevação que pretendia algo mais que uma mudança de guarda, pretendia uma transformação social. O “Exército em armas”, segundo a declaração do Exército Libertador de 17 de fevereiro, constituía-se no “porta-voz” e no “veículo das transformações de- sejadas pelas massas populares”.1 Esse processo durou apenas alguns me- ses e sucumbiu em meio a uma grande heterogeneidade ideológica (em seu interior coexistiam de fascistas a marxistas, passando por independentes) e à incapacidade de gerar uma base política própria. Mas assinalou o início de uma longa fase na história recente do Paraguai: de 1936 a 1989 (ano da der- rocada da ditadura do general Alfredo Stroessner), o país não conheceu sis-

1 Flecha, Martini & Silvero (1994:13). * Tradução de Alexandra Barbosa Silva.

tema democrático algum e apenas durante uns seis meses, em 1946, vigo- rou um clima de liberdades públicas.2

No princípio dos anos 1940, sob a presidência do general Higinio, tentou-se a construção de um regime corporativista. Esse oficial, integrante de um grupo de militares que rechaçava o liberalismo em sua versão tanto política quanto econômica, apoiou-se fundamentalmente nas Forças Arma- das. Tem início a etapa de expansão da presença do Estado na economia e nacionalizam-se empresas privadas de serviço público, no quadro de um Es- tado autoritário. O contexto normativo deixava de ser liberal para insistir na intervenção do Estado. Em um trecho da Constituição de 1940 — que não foi fruto de uma convenção democrática, mas da imposição do marechal Es- tigarribia, condutor da Guerra do Chaco — assinala-se que “o Estado mo- derno não pode ser um simples policial... Nos países de rudimentar desen- volvimento, em que a iniciativa privada é fraca e em que existem proble- mas superiores à capacidade do particular, o Estado não pode praticar, sem comprometer o progresso, a doutrina do deixar fazer”.

Sociedade civil fraca, de pouco dinamismo econômico, e Estado que começava a configurar-se como ator central da política e da economia. Era esta a tendência que despontava no princípio dos anos 1940. “Esses delinea- mentos, consignados como fundamentos da Constituição de 1940, estabele- ceram um modo de pensar constantemente reiterado até o presente. Mais que isso, ao se apresentar uma circunstância histórica excepcionalmente fa- vorável ao acesso a recursos públicos, efetivou-se um dos fatos mais mar- cantes no desenvolvimento socioeconômico e político paraguaio, ou seja, a expansão do Estado. (...) a crescente presença do Estado na economia nacio- nal, no quadro de uma concepção generalizada de intervencionismo esta- tal, aumentou sua capacidade clientelística/assistencialista e fortaleceu o aparato administrativo e de controle social, levando ao extremo o desequilí- brio entre Estado e sociedade civil.”3

Nesses anos 1940, o Partido Colorado foi recuperando espaços no Es- tado por intermédio do general Higinio Morínigo. Uma efêmera abertura po- lítica em 1946, produto em grande parte do contexto internacional posterior à derrota nazista na II Guerra Mundial, acabou gerando a guerra civil de 1947, acontecimento que constituiu outro marco-chave nas relações civis-mi-

2 Durante a República Liberal (1904-36), só em 1928 houve uma candidatura de oposição em elei- ções para a presidência da República. Além disso, dos 18 presidentes desse período, apenas oito chegaram ao poder por meio de eleições, e desses, três foram depostos. No Paraguai, desde a fun- dação de seus dois grandes partidos, em 1887, nunca houve alternância pacífica no governo. O Partido Liberal e a Associación Nacional Republicana (Partido Colorado) nasceram com uma face ideológica liberal. Mas o segundo foi adquirindo com mais e mais força, desde os anos 1930, uma variante nacionalista populista.

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litares. Se em 1936 o ator militar se tornou central no sistema político, a vitó- ria colorada em 1947 frente a uma aliança de liberais, fevereiristas e comu- nistas, delineou o início da partidarização militar no esquema do denomina- do pacto civil-militar, isto é, colorado-militar. Foram banidos das Forças Armadas oficiais, suboficiais e soldados do grupo perdedor e reorganizaram- se os quadros com militares simpatizantes do Partido Colorado. Essa aliança entre o Partido Colorado e as Forças Armadas constituiu-se, a partir de então, em eixo fundamental para se entender a evolução política paraguaia até o presente. No Paraguai de Stroessner não houve uma ditadura militar tradicional. O poder autoritário fundamentado nas Forças Armadas obteve legitimação social através de um partido de patronagem que administrou o sistema de benefícios e privilé- gios e assumiu a forma de um regime patrimonialista sultanista.

A instabilidade política, fruto da concorrência entre caudilhos colora- dos para chegar ao poder, se instalou entre 1947 e 1954, quando se sucede- ram sete presidentes, até que o golpe de 4 de maio de 1954 levou ao poder o general Stroessner, que, consciente do peso colorado na vida nacional, pac- tuou imediatamente com a cúpula golpista e conseguiu fazer-se nomear can- didato do partido às “eleições” desse ano, que se realizaram sem a participa- ção de qualquer oposição, proscrita desde 1947. “Stroessner capitalizou a he- rança do período 1947-54, incluindo a relação entre as Forças Armadas e o Partido Colorado, o Estado centralizado, o nacionalismo retórico do Partido Colorado e seu controle sobre a vida nacional.”4

Em 1955, o general Stroessner estabeleceu a afiliação obrigatória dos oficiais militares ao Partido Colorado. E foi realizando um expurgo gradual, nos anos 1950, dos militares que suspeitava poderem lhe impor alguma re- sistência. Assim, foi-se formando uma cúpula militar leal, que serviu de base ao que se denominou unidade granítica entre militares e colorados. Sob o manto de um férreo anticomunismo e o apoio constante e crescente de Washington em pleno auge da Guerra Fria, foi-se consolidando o regime au- toritário assistencialista (cunhar-se-ia anos depois a expressão “democracia sem comunismo” como fator auto-identificador do regime). Além do mais, com a cobertura ideológica da Doutrina da Segurança Nacional (DSN), com uma sociedade civil fraca e partidos de oposição inicialmente proscritos e depois tolerados, mas sem margem de liberdades civis, o regime stroessne- rista governou quase todo o seu período sob estado de sítio.

“Ambas as instituições (Partido Colorado e Forças Armadas) e seus prin- cipais dirigentes participaram do governo. Dos 11 ministros do Poder Executi- vo, nove eram membros da Junta de Governo (órgão máximo de poder no par- tido); o presidente do Poder Judiciário pertencia à cúpula partidária, e tam- bém os primeiros níveis decisórios das maiores empresas descentralizadas

eram ocupados por autoridades do Partido Colorado. Três ministérios esta- vam nas mãos de generais-de-divisão das Forças Armadas; das 12 empresas autárquicas, sete eram controladas por representantes das Forças Armadas, que, ademais, tinham funções de segurança nas demais unidades do Estado.”5

Uma combinação de fusão das Forças Armadas com o Partido Colora- do, controle da sociedade civil com desarticulação da sociedade política e regime patrimonialista com partido de patronagem compõem as caracterís- ticas centrais da longevidade da ditadura stroessnerista.6

A lealdade militar foi obtida por meio da cristalização, na cúpula, de um grupo de oficiais que acumularam oportunidades de negócios lícitos e ilí- citos (em particular o contrabando em grande escala), dos quais também par- ticipavam alguns membros dos escalões inferiores. Era o chamado “preço da paz”. Concediam-se-lhes grandes extensões de terra, tinham acesso a altos cargos nos monopólios públicos, posicionavam-se em zonas de fronteira pro- pícias a todo tipo de contrabando, inclusive o de drogas, e as promoções de- pendiam da absoluta lealdade ao general-presidente. Isso produziu um fe- chamento na carreira militar. Certos generais-de-divisão chegaram a ficar 15 anos no cargo. O alto grau de autonomia militar, sem nenhum tipo de con- trole civil, era um dos pilares de sustentação do chamado Estado Onívoro.7

O sultanismo autoritário que caracterizou o regime do general Stroess- ner teve dois aspectos fundamentais, segundo Marcial Riquelme:

W “O poder exercido pessoal e discricionariamente pelo chefe de Estado, cujas decisões eram implementadas pela aliança de um partido de patro- nagem (assistencialista) com um estamento militar partidarizado e pro- fundamente corrupto em sua cúpula. A lealdade dos funcionários civis e militares ao chefe de Estado era de caráter pessoal e se baseava no te- mor e nas recompensas materiais que este dispensava a seus colaborado- res incondicionais.”

W “A administração patrimonialista dos bens do Estado, que se traduzia na não-diferenciação entre a esfera política e a econômica e, sobretudo, na ausência de fronteiras bem nítidas entre o bem público e o patrimônio pri- vado. Por isso o chefe de Estado e seu entorno imediato dispuseram livre- mente dos fundos públicos e das propriedades fiscais, estabeleceram mo- nopólios estatais antieconômicos, instalaram seus familiares prediletos nas distintas dependências públicas, demandaram propinas para a criação de novas empresas etc. Em suma, o chefe de Estado e seu entorno civil e mi- litar dispunham dos bens públicos como se fossem seus.”8

5 Lezcano (1989).

6 Lezcano (1989) e Riquelme (1992). 7 Arditi (1992).

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Na equação de poder do regime político, se entre 1936 e 1947 houve uma presença militar maior no cenário político, entre 1947 e 1954 surge a partidarização militar, ainda com forte presença de caudilhos político-partidá- rios no pacto de poder. Com Stroessner, a partir de 1954, o peso maior nesse pacto fica com as Forças Armadas, e os caudilhos colorados se estabelecem como administradores do sistema assistencialista, mas com o importante pa- pel de legitimação do regime ditatorial. O Estado como agente empregador ante um setor privado endemicamente fraco; a repartição das terras fiscais nos anos 1960, que atenuou durante alguns anos a demanda de terras; a mi- gração para a Argentina, como válvula de escape ante insuficiência de fontes de trabalho, e a chegada da época dourada, com a construção de Itaipu nos anos 1970 marcaram mais de duas décadas em que a ditadura, apoiada sem- pre em seus pilares de controle e repressão, pôde obter sua consolidação, am- parada na lógica bipolar Leste-Oeste.

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