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1.4 Raiz etérea

2. Lógica contraditorial

2.4 A construção de sentido

É assim que poderemos pensar nesses autores como pessoas sensíveis a uma estrutura imaginal (produto do imaginário) complexa. O método da Entrevista Compreensiva, conforme destaca Kaufmann, é um instrumento variável e evolutivo. Quer dizer, e este ponto Kaufmann deixa bem claro: a Entrevista Compreensiva, assim como outros métodos qualitativos, não pretende ter o mesmo grau de validade dos resultados que os das metodologias quantificáveis. São duas naturezas diversas. Por exemplo: na Entrevista Compreensiva, as hipóteses são obtidas com base na observação, e, por isso, uma prova da validade dos resultados é difícil oferecer de maneira imediata, além de ser questionável por ela, a prova, não se enquadrar nos estudos do imaginário. É preciso liberdade na interpretação, outra forma distante da entrevista jornalística, que nos serve apenas para uma comparação esclarecedora do nosso método. Para Kaufmann, enfim, mais do que um levantamento de conceitos acabados, a entrevista compreensiva pode ser considerada antes como uma “fábrica de utensílios provisórios”. Do ponto de vista da leitura cinematográfica (termo que difere da análise fílmica), não iremos nos prender só aos aspectos icônicos de um filme. No entanto, determinada técnica pode ser indício de um imaginário mais ou menos diurno ou noturno, conforme classificação de Gilbert Durand. Diurno ao enfrentar o mundo de espada em punho. Noturno, quando se quer o recolhimento cavernoso em contraposição ao êxtase fálico. Por isso, questões como plano, panorâmica, travelling só, eventualmente, aparecem na parte teórica, mas nunca como prova.

A técnica está a serviço da pessoa, e nunca o contrário. Optamos, pois, pela pesquisa qualitativa por meio de uma leitura cinematográfica de Estorvo. Partimos de uma leitura que não considera - apenas - o “filme como discurso significante (AUMONT et alli, 1995, p.201). Esta escolha nos permitirá enfatizar detalhes que, no campo diegético, dão significado ao filme, mas fora desse discurso também. O procedimento escolhido privilegia não só a “pertinência de códigos potenciais sugeridos por elementos [significantes]...” (AUMONT; MARIE, 1993, p.103). Assim, não temos a pretensão da certeza. Nosso devaneio, e é disso que se trata, não passa de um ponto de vista do que se mostra visível para o observador. Após essa leitura, é hora do cruzamento das informações em uma proposta dialógica, que abre espaço para antagonismos que se complementam. Ruy Guerra é considerado pessoa plural, e se há essa pluralidade não se pode desmembrá-lo de uma existência sensível, e não puramente mecanicista (em que o homem é visto como máquina e produtor de obra discursiva desmembrada de aspectos emocionais). Nossa visão de pluralidade remete aos (pelo menos) três componentes inseparáveis no homem, de acordo com estudo de Morin: o caráter humano (que diz respeito a uma afetividade), o caráter biológico (que diz respeito a uma pulsão) e o caráter cultural (que diz respeito à razão).

Segundo Morin, essa tríade forma um todo singular. Cada base do tripé pode ser distinta, se partirmos para uma análise cartesiana, mas, por outro lado, se vista de uma maneira global, não pode ser separada uma da outra. Portanto, a expressão do “eu” passa por esses três componentes. Segundo Morin, e aqui fazemos uma aproximação com o perfil do cineasta autoral, a qualidade de vida comporta, além de escolhas racionais, aspectos como a emoção, a paixão e o gozo. O homo sapiens também é

demens, ludicus, mitologicus e poeticus. Vale lembrar que o que se quer aqui é mostrar

como se dá o equilíbrio entre as intimações do meio e a subjetividade de e em Ruy Guerra. Elegemos o que poderíamos chamar de “campos de referência”: imaginário, cinema e técnica (nos quais está embutida a arte e seus aportes no campo da estética, da criação e do estilo). Os campos de referência se justificam porque, em primeiro lugar, têm uma relação direta com uma obra de cunho poético. Não poderíamos encontrar um trabalho poético, pelo menos da forma com que se trabalha aqui - e que já foi definida antes - desconsiderando uma reflexão sobre a Arte. Em segundo lugar, cada uma dessas “categorias”, apesar das diferenças “nocionais”25, podem convergir na figura de um

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“Nocional” se refere à noção, que se distingue do “conceito”. Noção permitiria uma leitura menos fechada de um determinado tema do que o conceito. Idéia inspirada em Maffesoli: “Conceito unifica,

diretor. Para nós, que investigamos o imaginário autoral contemporâneo, um autor se define pela criação, pelo estilo e pela estética. Segue o que se entende, resumidamente, por cada um desses tópicos.

Como se dá, pois, a inserção do autor na indústria cinematográfica se, por um lado, o artista sente a urgência da expressão e, por outro, irá se deparar com uma série de problemas (concretos) em termos de produção? A sociedade reclama uma produção artística autoral. Uma publicação portuguesa com entrevistas dadas por diretores como Jean Renoir (1894-1979), Fritz Lang (1890-1976) e Michelangelo Antonioni (1912- 2007), entre outros, apresenta-os como pessoas sensíveis e, até mesmo, por que não dizer, ingênuas26. Logo, o estudo de uma sensibilidade pós-moderna autoral no cinema de Ruy Guerra só poderia se justificar a partir do caráter plural na relação de uma individualidade com o mundo. É a lei da reciprocidade. Para o imaginário, este aspecto recíproco é o solo fértil (Maffesoli) na pessoa. Imaginário que não é sinônimo de ilusório ou fantasioso. O imaginário é, isto sim, a relação entre o fato de estarmos sitiados por determinantes materiais que, nem por isso, nos impedem de sonhar, e esse sonho pode adquirir diversas facetas, inclusive contraditoriais. Enfim, o corpo, que é materialidade, pensa (subjetivamente), e é disso que tratamos nesta tese. Procuramos destacar o nosso entendimento sobre a relação entre imaginário e pós-modernidade. É só a partir desta noção que poderemos traçar um perfil entre o autor contemporâneo e a sua obra, tomando como exemplo Ruy Guerra, escolha justificada acima. A nova

relação insere-se em um novo tempo, no qual, conforme Carlos Gerbase (2003, p.18),

“o paradigma estruturalista está quebrado ou pelo menos rachou nas bordas, permitindo olhares menos totalizantes (ou mais descentrados)”.

Assim, Gerbase também percebe que a verdade é divisível, refratária, prismática e, nas palavras dele, “fugidia, quase etérea” (Ibidem). Trata-se, pois, de ver o cinema (tanto do ponto de vista técnico quanto humano) sob uma perspectiva pós-moderna, que aceita a pluralidade inerente ao imaginário. Poderíamos chamar este outro link entre autor e obra de pós-autoral, conforme sugestão do professor Carlos Gadea, sem querer eliminar o que veio antes. Ao tratarmos, aliás, do imaginário focado em Ruy Guerra, consideramos que o nosso autor pós-autoral, seguindo os passos de Bachelard (2001, p.112), saberia imaginar e saberia que “à imaginação que ilumina a vontade se une uma

simplifica, reduz, mas a vida eclode, rebentando todas as coleiras que lhe tentam (im)pôr, donde, talvez, o interesse da noção que exprime o desejo e a preocupação intelectual sem que, com isso, coaja (...)” (1988, p.71).

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vontade de imaginar, de viver o que se imagina”. Estamos falando da organicidade entre a pessoa-cineasta e o cinema-poesia. Os dois pólos não se desgrudam um do outro. Ao contrário, é nessa relação umbilical e gêmea que se encontra o que há de fecundo na existência, e é ela que fortalece o sentimento da nossa presença no mundo. Guerra é visto como paradigma da pós-autoria e, por isso, seu imaginário pessoal (que sempre remete ao “eu coletivo”, cabe esclarecer) é o desenho desta tese. Logo, o sentido dado por nós ao imaginário, um termo que, em virtude de seu caráter polissêmico, percorre uma infinidade de sentidos, fundamenta-se na teoria de Gilbert Durand. Para ele, o imaginário pode ser considerado a essência do espírito: o ato de criar é a raiz de tudo.