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GRUPO DE PESQUISA POR ÁREAS DE CONHECIMENTO

4. O jogo da pós-modernidade

4.11 Michel Maffesol

4.11.1 Vitalismo nietzschiano

Com Nietzsche, ainda, Maffesoli descobre os aspectos vitalista e mágico do homem banal. Remetendo ao campo cinematográfico, poderíamos ter a mesma percepção na obra de Ruy Guerra. O trágico, que remete ao presente (carpe diem), sustenta o pensamento maffesoliano, e inspira um cinema autoral (pós-)Retomada de alguns cineastas brasileiros. Oriundo do Cinema Novo, Ruy Guerra dá importância ao

sentido proveniente antes de um sentir do que de um significado. Um diretor com

características autorais não mais se enclausura em um “eu” homogêneo, mas procura, antes, uma empatia com o universo coletivo em que ele, artista e ainda autor, está inserido, particular e coletivamente falando. Para Nietzsche, “(...) o indivíduo que quer e persegue os seus desígnios egoístas não pode ser considerado senão adversário da arte, e, de maneira nenhuma, artista” (Ibidem, p.65). Não querendo dar um status conceitual ao termo, Maffesoli caracterizou pós-modernidade como uma sensibilidade alternativa aos valores sustentados pela lógica de cunho racionalista47. Isso significa dizer que, na atualidade, já é possível observar aspectos como as emoções, os sentimentos e as intuições de um artista na representação de um imaginário. E é esse o objetivo desta tese, ou seja: observar as idéias obsessivas ou recorrentes - sob o ponto de vista do imaginário que se situa na linhagem de Gaston Bachelard, Durand e Maffesoli - de Ruy Guerra, cineasta que filmou tanto no contexto da ditadura quanto no da pós- modernidade (dois períodos distintos).

De acordo com John Tagg, foi o cinema que, por causa da socialização da indústria, acabou produzindo, também, a socialização do sujeito-criador. Ou seja, a aquisição de material de origem literária, entre outros, e, através desse critério privilegiado como instrumento do capitalismo que é o contrato, “tanto a matéria-prima intelectual como a força trabalho intelectual do cinema foram monopolizadas produtor”

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“Estes dois instintos impulsivos [os espíritos apolíneo/dramático e dionisíaco/trágico] andam lado a lado e na maior parte do tempo em guerra aberta, mutuamente se desafiando e excitando para darem origem a criações novas” (NIETZSCHE, 2002, p.39).

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(2005, p.148). Assim, conforme ele, o produtor se tornou um mecenas, transformando- se, ao mesmo tempo, em dono de toda produção envolvendo aspectos relacionados à criação. Para Tagg, o verdadeiro criador estaria dependente, nesse caso, a uma relação contratual, e a essência do filme, se é que podemos encontrá-la, passa a ser o próprio capital. Dessa influência dependeria, pois, a criatividade. Trata-se de uma preocupação importante, mas que, do ponto de vista autoral, não chegaria a prejudicar o trabalho de um cineasta. Um cineasta autoral pode até sofrer alguma pressão, depender de mais ou menos verba para a execução do filme, mas não deixaria de carregar consigo uma maneira pessoal de filmar, estando ou não preso ao mercado. Um diretor autoral pode até se beneficiar em termos criativos se houver pouco investimento no seu trabalho. É trabalhar com o que se tem, lema de Godard. Para diretores com esse perfil, a câmera nunca será um instrumento frio, distante, maquinístico, e sim uma aliada para o processo de criação de significado.

Na pós-modernidade, a questão mercadológica ganha outra conotação. As limitações não servem de empecilho para o cinema. O cinema se faz com ou sem dinheiro. Esta mudança de mentalidade nos remete à observação de Maffesoli sobre o que se pensava na modernidade e o que se pensa hoje. A crítica da modernidade em Maffesoli aponta para o monoteísmo (a redução da polissemia do real a um único valor), o longínquo (a verdadeira vida está em outro lugar) e à separação das coisas (a natureza é uma coisa diferente da cultura). Em contraposição a essas três correntes, Maffesoli aposta em uma sociologia compreensiva (tomar aquilo que fora separado). Na perspectiva compreensiva, como se viu antes, verdade é pôr em relação. É um novo laço social de que fala Maffesoli. A noção de novo, porém, não é a mesma da modernidade, e sim a de “outro”, que não exclui, necessariamente, o instituído. Este novo laço social é uma concepção trágica da existência, que, para Nietzsche, seria o niilismo, a ausência de fundamento na vida e a verdade morta. Como trágico, entende-se: gozar o melhor possível do que se pode gozar; acomodar-se às contradições; não agir desnecessariamente sobre algo a respeito do qual não se pode mesmo nada; usufruir o aqui-e-agora (carpe diem); tolerar o outro, sobretudo quando suas práticas sociais não correspondem ao seu estilo de vida; esperar para ver. Ao contrário, uma concepção dramática da existência valoriza antes a necessidade de superação dialética das contradições, a crença no ideal democrático, na moral imposta de cima, instituída, no princípio explicativo da sociedade pela via econômica, na funcionalidade dos serviços, na identidade única (e não sucessivas, como observa Maffesoli e os teóricos dos

Estudos Culturais, referindo-se ao oportunismo nas relações, isto é, ora sou isto, ora aquilo) e, finalmente, na ideologia egocêntrica (ponto que, nesta tese, ganha em importância na medida em que se verifica na sensibilidade do cineasta autoral um perfil alterado, mais plural, na relação com a vida). Conforme Maffesoli:

(...) ao colocar em relação, o relativismo leva em conta o policulturalismo e a polissemia. Retomando um termo da Sociologia Compreensiva, é o que se chama politeísmo de valores (expressão weberiana). A reacentuação das formas leva ao relativismo. Insisto na necessidade de ´pôr em relação´. É uma outra maneira de pensar o equilíbrio e a harmonia48.

A analogia e a metáfora são as duas maneiras que mais se aproximariam da verbalização de uma nova sensibilidade. Maffesoli usa, com maestria, a semântica e a coexistência de termos antagônicos, como razão sensível, enraizamento dinâmico,

resistência flexível. São forças do imaginário. Imaginário, para Maffesoli, é a realidade.

Não existiria diferença entre o palpável e o impalpável, o líquido e o concreto. Maffesoli absorveu a idéia de trajeto antropológico, que é quando se constrói uma bacia

semântica (metáfora de autoria de Durand) inundada por uma força emocional que

também é racionalizadora. O ser humano vive, portanto, uma constante necessidade de equilíbrio entre as imposições do meio social e a sua própria subjetividade. Imaginário é sempre social, por mais que se manifeste em um indivíduo. Se o imaginário é sempre social, não se pode mais falar em um eu único, soberbo e todo-poderoso. É preciso se colocar no lugar do outro. “Eu é outro”, insiste Maffesoli49, inspirando-se em Rimbaud. Esse “eu” pode assumir contornos trágicos ou dramáticos. Em relação ao que o autor entende por “hedonismo cotidiano”, Ana Taís Martins Portanova Barros reflete:

A atitude é a de sair de si: o indivíduo assume sua vida pessoal enganchado ao instinto vital que o leva a perder-se num conjunto mais vasto do qual, com os outros, ele participa. Há um querer-viver teimoso que dá coerência a esse nosso mundo sobre o qual operam tantas forças centrífugas - agressividade, violência, egoísmo, indiferença. A aceitação do presente, a sabedoria dos limites manda desfrutar aqui e agora das banalidades que dão sentido à vida (2002, p.14).

O drama é empunhar a bandeira da política e acreditar na mudança. O trágico é o aqui-e-agora. A complexidade é real. Não é mais possível separar o que está junto,

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Seminário Sociologia Compreensiva, PUCRS/maio de 2006. 49

O sociólogo francês contextualiza as palavras de Rimbaud: “[A expressão] lembra que o indivíduo, longe de ser um átomo isolado, só pode existir e crescer quando assume um papel em um ambiente de comunhão” (1995, p.79).

como os pensamentos dramático e trágico50. A separação põe de lado a subjetividade. Edgar Morin, ao lado de Maffesoli, defende, como vimos antes, um pensamento complexo, não mais preocupado com um esquema causativo, mas sim sistêmico, de ação e retroação. Um sistema não mais dialético, mas sim dialógico, no qual as partes são ao mesmo tempo complementares e antagônicas. É preciso distinguir separação e compreensão. O sentido, numa, se projeta, como na modernidade; noutra, se introjeta, como na pós-modernidade. Durand caracterizou essas variações como sendo os sentidos diurno e noturno do imaginário. O procedimento explicativo pertence ao primeiro caso, dominado pela razão, que é a grande característica da tradição ocidental. A figura própria desse modo de sentir é a espada, que corta e separa. É também o falo elevado. No outro sentido, temos o acolhimento representado pela vagina. Para Maffesoli, que fala de uma envaginação do mundo, a idéia de compreensão está ligada ao regime noturno do imaginário.

Como que costurando as idéias, Maffesoli não acredita em método. Um conceito, caro ao academicismo metódico e burocrático, destruiria a força e a explosão de uma prática “relacional”. Conceito, para Maffesoli, reduz o pensamento a uma idéia única. Ele prefere, pois, pensar em noções, que produziriam um olhar mais vagabundo e menos fechado em relação às categorias sociais. É assim que Maffesoli percebe um novo laço social. Nessa nova perspectiva, é preciso se voltar para uma orientalização do universo, caso contrário, estaríamos reforçando uma prática que tem levado o ser humano a enrijecer o que tem de mais plural, a potência do imaginário. No limite, o imaginário é fundador de qualquer ação humana, que, no caso dos cineastas apresentados aqui, resulta na ilusão concreta de um filme. A obra de Michel Maffesoli tem se destacado por tentar compreender o homem dito comum sem menosprezá-lo como algo insignificante se comparado ao pesquisador de formação acadêmica. E isso está longe de ser desprezado, principalmente pelo histórico de Maffesoli: é professor da sisuda Sorbonne e tem escrito livros, corajosos, nos quais questiona o que chama de moralismo judaico-cristão (de forte inspiração nietzschiana) da sociedade ocidental. Este “ocidentalismo” como suporte identitário é o que está na base do pensamento maffesoliano. Que jeito ocidental de pensar é esse, na opinião de Maffesoli? Por esse viés poderemos discutir um tema que, para ele, tem merecido várias reflexões: a passagem de uma forma de identidade (conotação ideológica) a uma forma de

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“A evolução progressiva da arte resulta do duplo caráter do espírito apolíneo e do espírito dionisíaco” (NIETZSCHE, 2002, p.39).

identificação (conotação imaginal, que diz respeito ao imaginário). A identidade seria

uma característica da modernidade, ao passo que a identificação da pós-modernidade. Vejamos por quê.

Maffesoli investe na tese de uma sensibilidade pós-moderna, e, assim, vê novas maneiras de ser da pessoa. É um raciocínio, a exemplo de Nietzsche, prospectivo. O que Maffesoli diz do filósofo alemão - “era não-contemporâneo do seu tempo” - tem a ver com ele mesmo, porque, entre os teóricos de filiação pós-moderna, Maffesoli é um dos únicos que procura incluir o imaginário, sob inspiração durandiana, na sua forma de pensar. E é esta, precisamente, a peculiaridade de sua obra, uma reflexão sobre a nova “dinâmica social” (título de sua tese de doutoramento em Letras e Ciências Humanas, defendida em junho de 1978 e orientada por Gilbert Durand): das identidades às identificações. Para ele, a diferença é clara. Se antes nós podíamos, seguramente, ter um perfil delineado, uma profissão segura, um projeto de vida, isso já não acontece mais. Agora, o perfil é mutante, a profissão (quase) não existe, o projeto é ocasional e o futuro incerto. O que vale é o presente (presenteísmo). A questão da identidade merece uma longa reflexão por parte de Maffesoli. Este tema também é discutido por teóricos filiados aos Estudos Culturais, como Stuart Hall. Para ele, Hall, as concepções de identidade se dividem em a) sujeito do Iluminismo, b) sujeito sociológico e c) sujeito pós-moderno (1999, p.10). Hall apresenta a tese dos cinco descentramentos do sujeito moderno: a rejeição do mito do homo economicus; a lógica oriunda também do inconsciente; a autoria sem individualidade; o “poder disciplinar” foucaultiano, e, por fim, a abertura promovida pelo feminismo.

Sustenta a tese, ainda, com base nesses postulados, de que as culturas nacionais não são homogêneas: “Em vez de pensá-las como unificadas, deveríamos pensá-las como constituindo um dispositivo discursivo que representa a diferença como unidade ou identidade” (1999, p.61). Maffesoli argumenta, aproximando-se de Hall, e vice- versa, que pode haver uma saturação nessa lógica clássica da identidade. O que Maffesoli põe no lugar é uma lógica da identificação (1996, p.301), conforme a tese da existência de um processo, um deslize da identidade rumo à identificação, sem que aquela desapareça para ceder lugar, totalmente, a esta. A possível substituição, porém, não é o ponto do argumento maffesoliano, e sim o de que estamos vivendo outra disposição (tanto em termos de vontade quanto de arranjo), e que isso pode ser uma das marcas da pós-modernidade. “O eu é apenas uma ilusão ou, antes, uma busca um pouco iniciática; não é nunca dado, definitivamente, mas conta-se progressivamente, sem que

haja, para ser exato, unidade de suas diversas expressões” (MAFFESOLI, 1996, p.303). O sujeito, para ele, cede lugar à pessoa. Uma pessoa que, conforme a raiz etimológica da palavra, veste máscaras: ou seja, uma hora é estudante universitário; noutra, baterista de uma banda punk. Duas facetas que, apesar de distintas, são incorporadas por uma mesma individualidade. Assim, a pós-autoria poderia ser considerada uma prática individualista ou seria uma subversão pós-moderna?

Uma lista de palavras pinçadas da leitura dos livros de Maffesoli (vários deles, como “Sobre o nomadismo”, “O tempo das tribos” e “A contemplação do mundo”, entre outros) representam uma nova sensibilidade, chamada por muitos de pós-moderna. Assim, sem querer ser demasiado esquemático, teríamos na pós-modernidade expressões como: pluralidade, ambivalência, imperfeição, tremor, sedução, impermanência, holismo, gasto (e também gosto), onírico, lúdico, ambigüidade e sombra. Na modernidade, prevalecem a assepsia, o indivíduo, o poder, a ordem e o progresso, o moralismo, a verdade, a autonomia, o ascetismo, a utilidade e o racionalismo. Esta sensibilidade alternativa à da modernidade é que pode fazer com que nos reconciliemos com o cotidiano, um cotidiano rico de imagens. Já o pensamento estruturado sob a lógica hegeliana, segundo a qual todo o racional é real e todo o real é racional ou que o objetivo de toda educação é garantir que o indivíduo cesse de ser puramente subjetivo, é castrador. Hoje, após um período de latência, os valores pós- modernos retornam, aos poucos. Nem sempre é fácil vê-los, obcecados que estamos, desde nossa formação, em acreditar que a sociedade é justa, perfeita, eficaz e racional.