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O homem vulnerável (François Truffaut)

GRUPO DE PESQUISA POR ÁREAS DE CONHECIMENTO

6. Um autor cinematográfico

6.6 O homem vulnerável (François Truffaut)

O novo cinema da Política dos Autores, a Nouvelle Vague,55 combatia as regras do classicismo francês de Claude Autant-Lara (1901-2000), Pierre Bost, Yves Allégret (1907-1987) e René Clair (1898-1981). No outro extremo, Truffaut destacava Jean Renoir, Ernst Lubitsch (1892-1947), Ingmar Bergman, Jean Cocteau, Sacha Guitry, Max Ophüls, Robert Bresson, Charlie Chaplin (1889-1977), Marcel Pagnol e Alfred Hitchcock, entre outros. “A Política dos Autores foi, antes de mais nada, uma política, isto é, a escolha de certas personalidades mais importantes e mais poderosas do que outras” (2005, p.152). Em cada um daqueles cineastas Truffaut via qualidades, como a precisão de Guitry, a visualidade de Cocteau, o realismo de Jean Vigo (1905-1934), a seriedade de Rossellini, a culpabilidade de Hitchcock ou a malícia de Lubitsch. Truffaut gostava de dirigir com rigor, mas sem negligenciar o improviso, como em uma cena do filme A noite americana (1973) em que ele, de última hora, antes de dormir, escreve alguns diálogos para o dia seguinte. O que Truffaut não gostava nas adaptações do chamado Cinema da Qualidade Francesa era um profissionalismo exagerado que se exercia em detrimento de uma fidelidade verdadeira em relação ao espírito da obra. Truffaut via a adaptação - procedimento que adotou diversas vezes ao longo de sua trajetória - como uma recriação do cineasta. A adaptação literária, portanto, não consistia em ser uma tradução literal do que estava no livro, e sim uma ponte, uma travessia para outra linguagem, própria do universo cinematográfico. E isso, segundo ele, era uma questão de estilo.

Continuamos esta análise centrada em Truffaut - um rebelde integrado, no sentido de Umberto Eco - por ser ele o nome de ponta de uma política autoral que, no terreno fílmico, poderia ser lida como uma poética. Ela envolvia, por exemplo, um cenário, de preferência natural, e uma fotografia em preto-e-branco. Truffaut não deixava de filmar em estúdios, como em A noite americana, mas era para servir de contraponto às locações. Tampouco Truffaut deixou de filmar em cores. Porém, em termos de carga dramática e de visualidade, o preto-e-branco, para criar a atmosfera de determinados filmes, sobretudo os de estilo “noir”, como Atirem no pianista (1960), era

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Conforme Antonio Costa (1989, p.120), a Nouvelle Vague se baseava em quatro pontos básicos: estrutura narrativa (abandona o enredo romanesco tradicional e a construção da personagem acabada, adotando-se soluções mais próximas das novas tendências literárias), linguagem fílmica (evidencia a subjetividade do autor), ideologia (formas fluidas e indiretas) e estruturas de produção (variam os projetos e os circuitos de exibição).

insuperável, na opinião dele. Esse gosto pelo preto-e-branco pode ter sido adquirido por causa de sua fascinação pelos filmes mudos de Charlie Chaplin. O ensaísta português Carlos Melo Ferreira salienta, em “Truffaut e o cinema”, o fato de ele saber “criar e manter, com base em uma escrita cinematográfica de raiz clássica, uma visão pessoal do mundo e uma visão pessoal do cinema” (1990, p.13). Ferreira repassa os principais temas da filmografia de Truffaut: as perseguições inacabáveis, as paixões tormentosas, o triângulo amoroso, a crise do casal, a mulher entre homens e o homem entre as mulheres, o lado de dentro do espetáculo, as crianças na visão dos adultos, a série Antoine Doinel, Fahrenheit (1966), filme-síntese, e o homem-cinema. Segundo Ferreira, só Jean Vigo é comparável a Truffaut no que diz respeito à sensibilidade da criação cinematográfica. “Para ele, fazer cinema era algo de tão natural como respirar ou dizer ‘bom dia’” (1990, p.149).

Autor de 25 filmes, de 1954 a 1983, François Truffaut foi, além de cineasta, crítico, produtor e ator. Era um indivíduo múltiplo. Tinha uma obra variada e considerada, por muitos críticos, irregular (com altos e baixos em termos de qualidade artística, um ponto altamente subjetivo). Apesar dessa pretensa irregularidade, havia um trabalho coerente na sua filmografia. A coerência, no entanto, para o novo autor já não é o que o identifica como autoral. O profissionalismo de Truffaut interferia na sua vida pessoal, e vice-versa. Uma coisa não se separava da outra, pois havia um fio condutor: a infância. É a partir da infância que Truffaut se vê adulto. O prazer pela leitura dos romances balzaquianos é estendido para o seu trabalho profissional, tanto nas referências fílmicas como por um estilo de retratar o homem comum, identificado pela vida do seu alter ego, o personagem Antoine Doinel, interpretado por Jean-Pierre Léaud. Outro marcante na sua infância foi a Ocupação, em 1942, quando Truffaut tinha 10 anos de idade. Dos dez aos 19 anos, de acordo com Dalmais, Truffaut mergulhava nos filmes. A primeira lembrança de cinema foi a da sessão no Gaieté Rochechouart de

Paradis perdu, um filme de Abel Gance, com Micheline Presle e Fernand Gravey.

Truffaut se angustiava com a possibilidade de, durante a projeção do filme, soar o alerta e ser obrigado, nesse caso, a sair da sala com um tíquete para só poder retornar ao fim da sirene.

Foi uma infância, por causa deste e de outros episódios, quase clandestina, como ele retrata em O último metrô, filme no qual o ator Heinz Bennet interpreta um diretor de teatro que é judeu e que, para não ser capturado pelos soldados alemães, se esconde no porão do teatro, na tentativa de, futuramente, conseguir escapar para o que era

conhecida como “zona livre”. Também se observa a clandestinidade no seu longa- metragem de estréia, Os incompreendidos. O protagonista de 13 anos de idade, Antoine Doinel, costumava faltar às aulas para ir ao cinema. Truffaut dizia que era através do cinema que passavam suas idéias sobre a vida. Ele também repetia que havia nele - e aqui salientamos o aspecto mais importante da autoria cinematográfica ou da sensibilidade autoral - uma solidariedade em relação às pessoas que tinham feito os filmes. Truffaut era sempre solidário ao diretor. A tensão entre novas e velhas cinematografias não carrega, hoje, o mesmo peso de antes, na época do Neo-realismo italiano, da Nouvelle Vague, do Cinema Novo ou do Cinema Marginal. Porém, esse tensionamento indica uma característica do cinema autoral que se estende na contemporaneidade. Essa relação tensa é valorizada por Ismail Xavier. Para ele, “desde o Cinema Novo, a produção de maior valor tem resultado de um esforço de realização em que, de diferentes modos e acoplando-se a diferentes agentes, podemos encontrar a figura do diretor” (XAVIER, 2001, p.62).

Esta observação de Ismail Xavier nos remete ao binômio criador/produto, problematizado por Edgar Morin. Existiria uma predominância da padronização sobre a criação? “A relação padronização-invenção nunca é estável nem parada; ela se modifica a cada obra nova, segundo relações de forças singulares e detalhadas”, afirma Morin (1997, p.33). O pensador francês exemplifica com a Nouvelle Vague, que, segundo ele, teria provocado um retrocesso, que ele prefere chamar de “recuo”, na mesmice das obras de cunho acentuadamente comercial, mas que não se saberia até que ponto e por quanto tempo. Morin diz que foi a racionalização do sistema industrial que corresponderia à padronização. No entanto, essa divisão do trabalho não seria incompatível com a individualização da obra. Isso se daria pelo fato de, conforme Morin, “a criatividade não ser mais compreendida no sentido elitista, rebuscado, restrito, soberbo, mas como uma potencialidade espalhada no gênero humano” (1999, p. 72). Apesar de ser uma reflexão antiga, que data dos anos 1960, ela não deixa de ser pertinente por ser uma realidade para os cineastas contemporâneos, a de produzir em determinados contextos, para o melhor ou o pior. Assim, dirigir um filme na época do Cinema Novo não seria a mesma coisa que dirigi-lo na contemporaneidade. As motivações do diretor, para dizer o mínimo, seriam outras, pois o componente ideológico, a luta da esquerda, os movimentos estudantis e as campanhas eleitorais tomaram outro rumo hoje em dia, e essa nova roupagem atingiria o criador.