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A favela e a cidade (Nelson Pereira dos Santos)

GRUPO DE PESQUISA POR ÁREAS DE CONHECIMENTO

6. Um autor cinematográfico

6.8 A favela e a cidade (Nelson Pereira dos Santos)

Nelson Pereira dos Santos enfrentou problemas de fundo ideológico que interferiam, mais ou menos, na exibição de um filme no início de sua trajetória. Quando ele começou, nos anos 1950, os filmes recebiam um carimbo da censura. Se afrontassem diretamente o governo, talvez não recebessem o selo de aprovação. “Acho que tão importante quanto fazer um roteiro, é descobrir a fórmula de produção, e essa é uma sabedoria que nós temos”, afirma Nelson Pereira dos Santos, em entrevista à revista Cisco (s/d, p.11). O ambiente político motivava certa postura de combate em cineastas como Nelson Pereira dos Santos, que procurava no cinema um veículo de questionamento das injustiças sociais. Nessa entrevista, concedida a Hermano Penna, João Batista de Andrade, Helena Salem e Zelito Viana, o diretor de Rio 40 graus (1955) diz: “O filme que eu quero fazer é esse, porque estou pessoalmente empenhado. E aí vai a nossa megalomania de criador. Eu tenho de certeza de que você (se dirigindo a Hermano Penna, diretor de Fronteira das Almas) estava certo de que estaria contribuindo para a reforma agrária” (Ibidem, p.11). A contingência política era como um cenário para os cineastas do Cinema Novo. O perfil ideológico teria influenciado a estética cinemanovista que recebeu, de Glauber Rocha, o nome de Estética da Fome, justamente para reclamar e ser ouvido. Com Santos não teria sido muito diferente: “Eu fiquei apavorado vendo aquelas criancinhas comendo farinha, porque eu sou um paulista pobre, mas bem de vida. Fiquei emocionado e resolvi fazer um filme” (p.13). Essa maneira de agir e de ver o cinema, algo peculiar a este cineasta paulistano, é o que Santos chama “poder cinematográfico”, o que, segundo ele, é diferente de ser, por exemplo, presidente da Embrafilme. É esse o sentido de autoria para Santos. A história de cinco meninos que vendem amendoim modificou o cinema brasileiro. Com Rio 40

graus (1955), fortemente influenciado pela estética do cotidiano neo-realista, o

paulistano Nelson Pereira dos Santos, radicado desde 1951 no Rio de Janeiro, promoveu um encontro entre os diversos setores da sociedade brasileira, dos mais abastados aos mais pobres, da favela à burguesia de Copacabana. Essa característica não mudaria ao longo de sua trajetória. De Jean Renoir a Fritz Lang, o diretor-autor (expressão da Nouvelle-Vague) nunca parece ignorar o acaso envolvendo a realização de seus filmes, conforme entrevistas56. E mais: havia sempre, para eles, um sentimento de transpor para a tela uma visão pessoal e sensível de um determinado acontecimento, mesmo desviando-se, durante a filmagem, do que tinha imaginado previamente. Com Nelson Pereira dos Santos seria diferente? De alguma forma, um filme assinado por qualquer um deles apresenta uma razão sensível que o justifique, pois um cineasta autoral também reflete sobre o que faz. O pensamento, porém, vem a reboque da sensibilidade. Não existe, justamente por esse motivo, uma cartilha do cinema autoral que indique os passos na realização de um filme. A exemplo de Ruy Guerra, Nelson Pereira dos Santos também adaptou obras literárias, destacando-se Vidas secas (1966) e Memórias do

cárcere (1985), de Graciliano Ramos. Nelson integrou o Partido Comunista Brasileiro

(PCB). Hoje é imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL) e continua dirigindo filmes, entre documentários, no sentido estrito, e histórias de ficção.

Sua luta era retratar nas telas o povo brasileiro. Brasília 18% é o último longa- metragem de Nelson Pereira dos Santos, que, junto com Glauber Rocha e Cacá Diegues, foi um dos pioneiros do Cinema Novo. A história foi escrita em 1993, quando ele estava terminando de rodar, em Brasília, A terceira margem do rio (1994), e morava defronte à Casa da Dinda, no Lago Norte. Dessa lembrança surgiu a história do filme. Coisa antiga de quem viu dois golpes de Estado. Em 2003, voltando a Brasília para fazer um documentário sobre o governo Lula, que acabou não saindo, o cineasta lembrou: tem aquele roteiro. Retomou o projeto, após ter captado os recursos necessários, com o apoio do Programa Cultural da Petrobras e da Columbia Pictures. Apesar do cenário, não se trata de um filme com o objetivo de denunciar a corrupção em Brasília. Não há interesse nisso, e sim em uma simples história de amor. Não tão simples assim, pois seu herói, interpretado por Carlos Alberto Ricelli, é frágil. Poderíamos dizer que se trata de um herói trágico: divide-se entre o dever, a honra e a paixão. Não parece haver na narrativa uma linha de ação contínua que leve a um final conclusivo, muito menos feliz.

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É a história de um cientista que está, ao mesmo tempo, perdido e que se apaixona. Filmado em agosto, quando a umidade relativa do ar em Brasília é baixa, só de 18%, a estética do filme é impressionista. Se no Cinema Novo parece que os cineastas sentiam a obrigação de filmar conteúdo social em defesa das liberdades democráticas, agora não. Nelson Pereira dos Santos não opta, mas se obriga, por uma questão de fundo simbólico (simbolismo aqui, sempre é bom ressaltar, no sentido durandiano do termo), por um cinema umbilical, como se vê na filmografia que inaugura com Rio 40 graus, e que continua até hoje: 1955 - Rio 40 graus; 1957 - Rio zona norte; 1961 - Mandacaru

vermelho; 1962 - O boca de ouro; 1963 - Vidas secas; 1966 - El justiceiro; 1968 - Fome de amor; 1969 - Azyllo muito louco; 1970 - Como era gostoso meu francês; 1972 - Quem é beta?; 1974 - O amuleto de Ogum; 1977 - A tenda dos milagres; 1980 - A estrada da vida; 1983 - Memórias do cárcere; 1986 - Jubiabá; 1993 - A terceira margem do rio; 1995 - Cinema de lágrimas; 1998 - Guerra e liberdade - Castro Alves em São Paulo; 2000 - Casa-grande senzala; 2006 - Brasília 18%. Não é sem dor que o

cineasta autoral renega, por vezes, seus ideais mais caros. Para Morin, trata-se de um paradoxo: “A produção (industrial, capitalística, estatal) tem necessidade, simultaneamente, de excluir a criação (que é desvio, marginalidade, caos, desestandardização), mas também de incluir (porque é invenção, inovação, originalidade” (1997, p.18). O mesmo dilema aconteceu com os movimentos cinematográficos ao estilo do Cinema Novo, por exemplo. Glauber Rocha queria denunciar o sistema político brasileiro. Para fazê-lo, deveria ser popular. Porém, ter popularidade significava ser visto pelo maior número de pessoas possível, o que não aconteceria nos festivais em que participava e nos quais exibia seus filmes.

A autoria de Glauber Rocha tinha relação, apesar do caráter ideológico que dava aos seus filmes, com, simplesmente, o gosto pelo cinema. Glauber Rocha tinha entre 24 e 25 anos quando aconteceu o Golpe Militar de 1964. O acontecimento foi mais uma situação, entre outras, na trajetória dele, e serviu apenas de motivação para prosseguir seus questionamentos. A autoria nele é o fato de assumir suas escolhas e, a partir delas, organizar uma narrativa pessoal. Rocha tinha, assim como outros diretores autorais, uma capacidade de enfrentar a expectativa que se criava em torno de cineastas brasileiros, tanto no Brasil quanto no exterior. Ele dizia que o Cinema Novo não era um movimento de resistência política, e sim “um movimento cultural que se processou dentro de uma condição política adversa. (...) dialética de um movimento cultural criativo dentro de um processo ditatorial” (ROCHA, 1985, p.247). Aumont percebe que

Glauber tinha necessidade de tratar da política em seus filmes, a fim de sensibilizar as autoridades. Porém, é menos a política do que a força de sua expressão que acaba prevalecendo. “A responsabilidade social está então no auge, porque é redobrada por uma responsabilidade histórica” (AUMONT, 2004, p.119). Forma e conteúdo são uma coisa só, no cinema de Glauber Rocha. Para Aumont, esta característica de Glauber Rocha se direciona para a mudança social, o que não é o caso de, por exemplo, Serguei Eisenstein (1898-1948). Ele prefere teorizar, no início do século passado, sobre a questão da montagem de um filme, um estudo, até então, pioneiro na área do cinema e que, até hoje, serve de modelo para as novas gerações de cineastas.