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Montagem dialética (Sergei Eisenstein)

GRUPO DE PESQUISA POR ÁREAS DE CONHECIMENTO

6. Um autor cinematográfico

6.7 Montagem dialética (Sergei Eisenstein)

Eisenstein inspira-se no construtivismo, movimento que procurava um artista operacional, a serviço do Estado. Apesar disso, o trabalho de Eisenstein, referência na técnica da montagem, supera um discurso laudatório. O cineasta prefere trabalhar com as noções de dialética, de contradição e de êxtase, “o grau mais alto de atividade intelectual e emocional do espectador” (AUMONT, 2004, p.102). Conforme a etimologia da palavra, êxtase significa “sair de si”, e é exatamente um estupor que Eisenstein deseja provocar no espectador por meio do semantismo fílmico. Aumont lembra que o êxtase eisteiniano vai além do pathos (no sentido de qualidade empática), realçado nos anos 1930 pelo socialismo real para influenciar o espectador, chegando à noção do dionisíaco: “Em muitos ensaios (reproduzidos principalmente em

Cinématisme), Eisenstein aponta explicitamente a relação entre êxtase, embriaguez,

droga, sonho, contemplação religiosa” (2004, p.103). No fundo, de acordo com Aumont, Eisenstein acredita no cinema como um veículo para a manifestação de uma emoção e de um pensamento. A montagem, na concepção de Eisenstein, é a técnica privilegiada do cineasta para o exercício desse binômio. “É uma idéia que nasce da colisão de planos independentes”, teoriza Eisenstein. Desse conflito emerge um sentido novo. Eisenstein mostra diversos exemplos do seu conceito de montagem nos seus próprios filmes em “A forma do filme”, publicado em 1949, um ano depois de sua morte.

Outro livro que expõe a teoria de Eisenstein sobre a montagem é “O sentido do filme”, de 1943. Aqui, o cineasta soviético retoma o conceito de montagem, uma forma “de apresentar não apenas uma narrativa logicamente coesa, mas uma narrativa que contenha o máximo de emoção e de vigor estimulante” (EISENSTEIN, 2002, p.14). A problemática da montagem no contexto fílmico é o tema de um trabalho dos professores Eduardo Leone e Maria Dora Mourão. Para eles, a montagem deve ser vista como um todo, relacionada à fotografia, por exemplo, ou a outros componentes de um filme, e não como um elemento isolado. “Uma bela montagem só é efetiva quando nos planos existem valores estéticos para que a transição de um plano para outro opere uma dinâmica na ação proposta” (1987, p.8). Leone e Mourão não encaram a montagem como um mistério, algo compreensível apenas para iniciados, e sim como um recurso próprio a todas as artes, como na montagem de um romance. No caso do cinema, uma arte da narração, a montagem não é considerada por eles como o fim de um processo,

“mas também a modalidade articulatória de um conjunto, do roteiro ao resultado do produto” (1987, p.15). Para os autores, a escolha artística do diretor passa, necessariamente, pela maneira com que ele articula os planos, ou seja, por traços estilísticos. Leone e Mourão observam que Eisenstein experimentou mudar o tamanho das letras de legendas para dar um maior impacto em determinados diálogos. Com o aprimoramento dos efeitos cinematográficos, os recursos de dramaticidade passam a ser outros, inclusive digitais.

Hitchcock, mais uma vez, é tido por eles como um dos mestres não só do suspense, como também da montagem, escolhida de acordo com o efeito dramático que procurava dar. As escolhas de montagem, porém, não são simples, afirmam Leone e Mourão, porque o filme é uma realidade complexa. Cineastas como Bergman, Fellini, Wim Wenders e Eisenstein, Chaplin e Willhem Murnau conseguiram, na opinião dos autores, “compreender a necessidade plástica do espaço cinematográfico da tela com rara sensibilidade” (1987, p.38). Leone e Mourão também observam que estes cineastas experimentaram o peso do sistema de produção em contraposição a uma certa autoria. “Todos esses encenadores citados, nas várias épocas do cinema, construíram possibilidades cênicas que nos permitiram entrar num universo cuja beleza reside exatamente nesse espaço plástico” (LEONE; MOURÃO, 1987, p.38). No plano teórico, o recurso conhecido como “plano-seqüência” surge como uma espécie de libelo contra a montagem fragmentada. Como a própria expressão indica, um plano seqüencial procura estender a ação, para evitar a decupagem e o corte de uma cena. Esse recurso foi amplamente utilizado pelos cineastas da Nouvelle Vague francesa. Através da montagem, ainda, percebe-se a intencionalidade do diretor. Godard é exemplar no que diz respeito às escolhas de montagem fragmentada e cortes abruptos. Ele também recorre, por outro lado, a diversos planos-seqüências, uma característica observável também no cinema de François Truffaut. Hitchcock, aliás, concebeu um filme rodado de uma só vez, Festim diabólico (1948), que só dividia alguma cena quando acabava o tempo de gravação nos rolos de celulóide.

Este filme é considerado um dos únicos na história do cinema feito inteiramente em um só plano-seqüência (outra tentativa, aqui no Rio Grande do Sul, é a de Ainda

orangotangos, de Gustavo Spolidoro). Além de Outros e Velinhas, do mesmo diretor,

recorda a professora Flávia Seligman. Enfim, o importante a ressaltar é que não se trata de um artifício usual, e que, por meio da montagem, um diretor pode optar por efeitos estéticos que são resultado antes de uma sensibilidade própria e pessoal do que da

própria técnica. Técnica que, para Eisenstein, “era a possibilidade de construção de conceitos abstratos através de recursos cinematográficos” (MACHADO, 1982, p.63). Machado relaciona a biografia de Eisenstein com a forma e o sentido do filme do cineasta. Quer dizer, o estilo de Eisenstein resulta do seu background, o de uma vida pequeno-burguesa quando eclodiu a Revolução de 1917, filho de um judeu alemão que circulava com autoridade junto às autoridades tzaristas. No entanto, aos 19 anos de idade, o jovem Eisenstein presenciara os conflitos políticos na sua terra natal e, em 1918, já se alistara como voluntário no Exército Vermelho dos bolcheviques. Porém, segundo Machado, pensar que Eisenstein representava os ideais da Rússia revolucionária não era correto. “Provavelmente, nenhum outro autor soviético manteve com o Estado uma relação tão tensa e ambígua quanto Eisenstein” (MACHADO, 1982, p.9). Além disso, continua Machado, a cúpula dirigente desconfiava dele, ora endeusando-o, ora criticando-o.

Um capítulo do livro de Arlindo Machado destaca os perfis racional e passional de Eisenstein. A formação dele era em engenharia, o que facilitava uma postura que aliava rigor e precisão no seu trabalho. Por outro lado, o objetivo do construtivismo eisensteiniano era o de causar impacto, expressar uma sensibilidade: “(...) um máximo de controle intelectual para um máximo de prazer afetivo. Essa tensa unidade da razão e da paixão vai perdurar ao longo de toda a sua obra e será mesmo, se esquematizarmos um pouco, o tema eisensteiniano por excelência” (1982, p.34). Essas duas características se juntam para dar coerência ao trabalho de Eisenstein, que defendia o que chamava de um pensamento sensorial. Ora, temos aí a mesma raiz de sensibilidade, o que, diferentemente do modelo cartesiano estrito, parte em outra direção, a da mistura, a da loucura, a do êxtase, conforme o próprio Eisenstein diria. Machado considera Eisenstein um pioneiro na definição de recursos de linguagem. Criou, por isso, junto com alunos do curso de pós-graduação da PUC-SP, um cd-rom sobre as contribuições do cineasta russo, Eisenstein multimídia. Reuniu o trabalho de um cineasta que não conheceu os recursos da digitalidade com o que havia de ponta no universo digital. “Utilizando o cd-rom como suporte para um novo tipo de reflexão, tornou-se possível incluir no texto de análise materiais não necessariamente verbais, como fragmentos de filmes e vídeos, trechos de música ou de depoimentos orais e animações produzidas em computador” (MACHADO, 2001, p.115). Conforme Machado, a escolha de Eisenstein se justifica porque o cineasta russo também era pintor, decorador, diretor de teatro,

escritor e político; isto é, era um intelectual multimídia avant la lettre que possibilitava juntar, no projeto, forma e conteúdo.

Com isso, Machado toca na questão da autoria cinematográfica ao realizar uma obra coletiva por meio do trabalho de um autor estrito, como Eisenstein. A idéia de autoria clássica na contemporaneidade, segundo Machado, parece não fazer mais sentido. “E se ela desaparecesse não sentiríamos a sua falta” (MACHADO, 2001, p. 12). Machado encara a autoria, hoje, como uma idéia renascentista, quando se instituiu o conceito de “autor”. Ele percebe na atualidade um grande número de trabalhos feitos em equipe, de forma coletiva, o que traria um problema conceitual para a definição de autoria. Isso, porém, não eliminaria a noção de autoria de cunho expressivo, estilístico e criativo. Em outras palavras, o autor de “Pré-cinemas & pós-cinemas” vê a autoria como uma idéia típica da modernidade, o da autonomia da arte. “Quem é o autor de um videoclipe ou de um programa de televisão? Talvez estejamos voltando à mesma situação das artes tribais, em que os produtos da cultura não são mais expressões de uma subjetividade particular, mas de uma sociedade, de um tempo” (Ibidem). Para Arlindo Machado, há quem lamentasse essa perda do sentido autoral clássico, como teria sido o caso de Barthes. Já Foucault, acrescenta Machado, estaria imbuído de outra idéia, a de que tudo é histórico e que, portanto, se preocuparia antes com os movimentos coletivos nos quais somos sujeitos ativos e passivos. Machado reconhece, porém, que o sentido tradicional do autor, o da Renascença, ainda está longe de ter morrido. Porém, “está morrendo de forma irreversível a cada dia e em cada obra” (Ibidem).

O crítico de arte afirma, no caso do cinema, que a fronteira entre o trabalho do autor-artesão e a lógica industrial é complexa. Para ele, esta é uma questão-chave na contemporaneidade, o de analisar a liberdade e a criação em uma época de automatismos e aplicativos de computador. “Não quero com isso dizer que o artista precisa conhecer a programação para não ser ele mesmo programado, mas ele deve, de alguma forma, resolver o problema de como continuar criando com máquinas que já lhe dão tudo pronto ou semipronto” (Ibidem, p.13). O autor de uma obra está longe de ser uma unanimidade. Em novelas, por exemplo, o sentido de autoria se desloca para o escritor, considerado o criador da história. Mesmo no cinema, é possível identificarmos filmes elaborados por roteiristas ou produtores, até. Em certos casos, um cineasta é contratado apenas para dirigir o filme, sem que imprima características pessoais na execução da tarefa. O filme não passaria de um trabalho a mais, dotado de impessoalidade. Portanto, não existe um paradigma autoral, considerando paradigma no

sentido de Thomas Kuhn, isto é, “um esquema modelar para a compreensão da realidade” (1996, p.13). O sentido que preferimos dar à autoria é o da expressão da criatividade através da tecnologia (mais como artefato do que recurso de ponta). Os autores nesta tese são os cineastas de cunho reflexivo. Se a Política dos Autores remete a uma ação específica, a uma tomada de posição e a um enfrentamento contra potenciais inimigos, ela não deixa de ter valor, por outro lado, ao romper com o cinema determinista, ou seja: dadas as condições do processo, o resultado será aquilo o que se espera dele.