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1.4 Raiz etérea

2. Lógica contraditorial

2.3 Entrevista compreensiva

A entrevista com Ruy Guerra foi concebida como um diálogo intuitivo (Juremir Machado da Silva), e teve a finalidade de compreender o binômio sujeito-objeto. Segundo ele, “a intuição conta muito nesse trabalho de coleta. Como passar da intuição ao conhecimento? Como sistematizar o disperso, examinar o desconexo, condensar a repetição, capturar a diferença, decantar o objeto?” (MACHADO DA SILVA, 2003, p. 73). Na entrevista, o cineasta pôde falar de aspectos variados do seu cotidiano, e não simplesmente sobre filmes de uma forma absolutista e, portanto, reducionista. Usualmente vista como uma técnica de coleta de dados para a pesquisa, a entrevista, aqui, por outro lado, não desempenhou esse papel diretamente, pois não forneceu, de modo imediato, o que queríamos interpretar. A fala de Ruy Guerra constituiu, pois, um corpo empírico no qual trabalhamos buscando as imagens que falam dos “campos de referência” eleitos (imaginário, autoria e pós-modernidade). Procuramos fazer uma entrevista dialogada, que, conforme Cremilda de Araújo Medina, possibilita uma relação de construção mútua entre entrevistador e entrevistado. O entrevistador, no caso, não procura direcionar as respostas do entrevistado para tentar adequá-las ao cumprimento de uma tarefa (ou pauta, no jargão jornalístico). A preferência é por um “estímulo à abertura” (MEDINA, 1990, p.45). Em outros termos, trata-se de uma entrevista não-diretiva e não-impositiva, baseada em uma interação de viés humanístico, e nessa interrelação simbólica em que se dá a entrevista, não se pode omitir o real/imaginário.

“Por mais distanciamento que se imponha ao lidar com outro ser humano - o entrevistado - não se evitará nunca a interferência do eu subjetivo do entrevistador” (MEDINA, 1990, p.44). Referência na área da Comunicação, Cremilda Medina procura no Outro sua riqueza interior, e não uma fonte para preencher os requisitos da entrevista. Inquieta em relação ao saber jornalístico, em “Entrevista: o diálogo

possível”, a professora, que é livre-docente pela Escola de Comunicações e Artes da USP (ECA-USP), pautou sua carreira por uma visão complexa do jornalismo, aliando sua experiência de mercado ao trabalho acadêmico, que inspira parte desta tese. A proposta de Cremilda Medina, e foi nesse ponto que a utilizamos, é aproximar o(a) entrevistador(a) do(a) entrevistado(a), e vice-versa, a partir da relação EU-TU, e não em termos da relação EU-ISTO. Assim, teoricamente, a notícia seria melhor explorada quanto à informação. Este livro de Cremilda Medina, pois, que foi sua tese de doutoramento, possibilita uma reflexão sobre a complexidade da entrevista, uma das tarefas mais importantes e árduas - que se refletiu na conversa com Ruy Guerra - entre jornalista e fonte ou entre o pesquisador e seus informantes. O assunto é pertinente nesta tese, e por isso o destacamos, pois a figura do pesquisador não deveria intimidar a de sua fonte, o cineasta Ruy Guerra. Segundo Medina, a entrevista pode ser uma técnica eficaz para a obtenção de respostas pré-pautadas por um questionário, por exemplo. Mas, em sendo apenas isso, continua ela, não será um braço da comunicação humana. A entrevista também teve por base a teoria da Entrevista Compreensiva, de Jean-Claude Kaufmann, que explicita no livro homônimo (L´entretien compréhensif), de 1996 (Ed. Nathan), um procedimento não-diretivo, proposta semelhante à de Cremilda Medina.

Esta explicação sobre a entrevista é necessária para sublinhar a relação Eu- Outro, buscada tanto no trabalho empírico quanto no de cunho estritamente teórico, envolvendo outros entrevistados, além de Ruy Guerra. Assim, o qualificativo compreensivo, explica Kaufmann, é já uma indicação do tipo de entrevista sugerida. O autor remete, estritamente, ao termo weberiano, ou seja, quando a “intropatia” não é um fim em si mesmo, mas um instrumento, e apenas isso, para determinadas explicações ou uma compreensão intuitiva que basta em si mesma. Para Kaufmann, o objetivo principal do método é a produção de teoria, de acordo com a formulação de Norbert Elias: uma formulação de hipóteses tão mais criativa porque enraizada nos fatos. Trata-se de uma formulação de “baixo”, acrescenta Kaufmann. O modelo ideal, segundo ele, é o “intelectual-artesão”, aquele que constrói, a partir de si mesmo, uma teoria. Em outras palavras, o “intelectual-artesão” é quem personaliza os instrumentos de seu método e de sua teoria. Nós poderíamos utilizar a mesma expressão para caracterizar o cinema de cunho autoral: diretores com esse perfil são artesãos de seus filmes, por causa da

ambivalência entre uma sensibilidade própria e o uso de recursos técnicos disponíveis

para a elaboração do filme. Não nos interessa julgá-lo se é bom ou ruim: à luz do imaginário, qualquer tipo de questionamento crítico perde sentido. Os franceses da

Nouvelle Vague sabiam, intuitivamente, disso. Truffaut não se importava que seus inimigos o criticassem quando o filme de determinado cineasta, admirado por ele, era considerado ruim, por causa - e este era o parâmetro do público e de alguma parte da crítica especializada - do fracasso de bilheteria. Para Truffaut, o que importava era o que

ele, Truffaut, via como constitutivo no filme que refletisse a personalidade de seu autor.

Nada mais.

Um modelo de postura a-crítica foi a entrevista que o próprio Truffaut fez com o então marginalizado (na condição de artista, e não de cineasta) Alfred Hitchcock. É obra de um admirador, não há dúvida. Mas também é obra de um raro entrevistador, cuja dinâmica assemelha-se à Entrevista Compreensiva, que propõe o engajamento do(a) entrevistador(a) em relação à fonte. Se as perguntas são distantes da realidade da fonte, as respostas também terão estas mesmas características. Se a construção do “objeto” no modelo teórico clássico propõe a elaboração de uma hipótese (ela mesma já consolidada e depois refutada), já na Entrevista Compreensiva a problematização começa no corpo empírico. De acordo com Kaufmann, esse procedimento inverte a lógica da maioria das técnicas de pesquisa utilizadas no sentido da entrevista tradicional. Outra característica desse método é a construção do assunto progressivamente, por meio de uma elaboração teórica em constante movimento, sem a perda, no entanto, dos referenciais de base. Kaufmann lembra que, para Max Weber, a proposta “compreensiva” se apóia na convicção segundo a qual as pessoas não são apenas agentes portadores de estruturas, mas sim produtores ativos, depositários de um conhecimento importante. A meta é uma explicação compreensiva do social. O que importa é a história de vida da fonte, e não a história congelada no tempo, nostálgica, passada. O passado, o presente e o futuro misturam-se. É uma entrevista que leva em conta o cineasta Ruy Guerra como - também - uma pessoa comum.

Muitas vezes, principalmente nas técnicas de entrevistas utilizadas no jornalismo, a fonte é tratada de forma superficial. O que isso quer dizer? Significa um modo de rotular determinada fonte que parece não dar margem para nenhuma outra forma de abordagem. No jornalismo tradicional, uma entrevista com Ruy Guerra, por exemplo, não passaria de uma série de perguntas-clichê, cujas respostas o próprio repórter já saberia de antemão e esperaria ouvir dele exatamente o que imaginava. Caso contrário, a pauta fura. Procuramos nos afastar desse procedimento. Na história do cineasta, o tempo é uma questão subjetiva, e não linear. Daí a importância de observarmos, portanto, aspectos como suas obsessões, suas intuições, seu modo de se

relacionar com os outros e com o trabalho, suas manias, seu processo de criação, sua inserção no sistema. As contradições também são importantes, porque nelas seria possível observar um modo de pensar relevante para o estudo do imaginário, o da ordem do contraditorial como normalidade. Diferentemente do jornalismo, a contradição no discurso de um(a) entrevistado(a) é reveladora. Com isso, procuramos um autor não mais enclausurado em um ideal político, mas antes movido por um ideal expressivo, empático com o universo coletivo no qual ele, artista-autor, se insere como individualidade. A inspiração vem de um dos aspectos da sociologia compreensiva mais sublinhados por Maffesoli: a reflexão sobre motivações e identificações sem produzir julgamentos.