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GRUPO DE PESQUISA POR ÁREAS DE CONHECIMENTO

6. Um autor cinematográfico

6.12 O imaginário do autor

Autoria, assim, é uma questão de sensibilidade. Não procuramos o autor onde ele não se encontra, e sim onde supomos que ele se manifeste, e essa manifestação diz respeito mais a um imaginário do que a uma cartilha autoral, algo nunca, até onde se sabe, postulado pelos diretores-autores dos anos 1950 e 1960. Para Alexandre Astruc, autor do manifesto “caméra-stylo”, o cineasta trabalha, ou deveria trabalhar, com a câmera da mesma forma que um escritor sério manuseia a caneta, ou seja, respeitando a expressão pessoal e a comunicação de idéias complexas, que passam, muitas vezes, pela experiência pessoal do diretor. Por exemplo: dentro do espaço fílmico, julgamos possível identificar, em alguns momentos, o que se convencionou chamar a “voz do autor”. É o momento em que o cineasta parece despido de convenções e da máscara de

um comportamento puramente profissional. No caso do cineasta Carlos Gerbase, o baterista e vocalista d’Os replicantes, é quando, por exemplo, reconhecemos o Bar Ocidente, reduto underground de bandas gaúchas - como a dele - nos anos 1980, localizado no bairro Bom Fim (lugar dos jovens alternativos porto-alegrenses), em uma das cenas de Tolerância. Outro filme dirigido por Gerbase, em co-autoria com Giba Assis Brasil, Verdes anos, problematiza a questão do autor pelo fato de ter passado por um processo no qual os dois diretores ficavam à mercê do produtor. A questão fica ainda mais complexa pelo fato de que a história é baseada em um conto de Luiz Fernando Emediato, que poderia reivindicar, de certa forma, participação na elaboração do filme. Portanto, Verdes anos nasceu de um conto de Emediato, conto esse “roteirizado” por Álvaro Teixeira, dirigido por Gerbase e Giba Assis Brasil, sob condições impostas pelo produtor, Sérgio Lerrer. Quem é, então, o autor do filme?

Para Gerbase, “o produtor, nesse filme, talvez seja, do ponto de vista estético, o maior autor de todos, no momento em que impõe regras e custos para a filmagem” (GERBASE apud BARROS, 2003, p.164). Na opinião de Gerbase, ser obrigado a fazer um filme sem panorâmica quase nenhuma, sem travelling, com zoom e câmera apoiada sobre um tripé influencia, sim, a estética do filme. Gerbase cita, também, o exemplo de

Ilha das Flores, filme escrito e dirigido por Jorge Furtado. Para Gerbase, o fato

interessante nesse filme, porém, é que as animações são de Fiapo Barth. “Eu o vi fazendo, e o quanto ele criou aquelas animações que transformam Ilha das Flores no filme que ele é. Fiapo é co-autor” (GERBASE apud BARROS, 2003, p.164). Aqui, não nos preocupamos em provar de quem é um filme, e sim realçar a figura de um diretor que faz do seu trabalho um instrumento de poesia, conforme Buñuel. Em uma conferência de 1958, o cineasta espanhol disse que o cinema, pelo fato de proporcionar ao espectador um “habitat psíquico”, é capaz, por isso, de “arrebatá-lo como nenhuma outra modalidade da expressão humana” (BUÑUEL, 1983, p.334). No entanto, para ele, a imitação na tela de um romance ou de uma peça teatral provoca um vazio moral no espectador. “Se queremos ver bom cinema, raramente o encontraremos nas grandes produções ou nas que são sucesso de crítica e de público”, afirma (BUÑUEL, 1983, p. 335). Buñuel considera que “nas mãos de um espírito livre, o cinema é uma arma magnífica e perigosa, e o melhor instrumento para exprimir o mundo dos sonhos, das emoções, do instinto” (1983, p.336), e espera que o autor preencha o “vazio moral” das telas e faça do cinema um instrumento de poesia.

Poesia que faltava ao neo-realismo, na opinião dele: “A realidade neo-realista é incompleta, oficial, sobretudo racional: as produções são absolutamente desprovidas do mistério, de tudo o que completa e amplia a realidade tangível” (BUÑUEL, 1983, p. 337). Um filme autoral, conforme os pressupostos apresentados nesta tese, é algo que perdura no tempo pelo fato de ter uma linguagem, retomando Eco, “aberta”, com múltiplos significados e uma estrutura que podemos caracterizar de paratática60; isto é, possibilita que os sentidos do filme possam ser preenchidos pela sensibilidade; neste caso, a do espectador. “Poucos filmes conseguem isso: atual antes e depois de ser feito”, afirmou Rogério Sganzerla (1946-2004) em 2003, para este autor, durante o ZoomCineEsquemaNovo (sic), na Usina do Gasômetro, em Porto Alegre. Como homenageado do festival, o falecido diretor catarinense citava O bandido da luz

vermelha, lançado em 1968, e considerado, por ele mesmo, profético. Em relação ao

tema da autoria, Sganzerla disse que preferia acreditar no cinema porque é, na opinião dele, “um fator de aprimoramento humano, de revelação e de fixação da própria identidade cultural, mais do que isso: é uma transfiguração da realidade” (2003, p.1). No entanto, em outro trecho da entrevista, Sganzerla afirmou que se aprende através do cinema, “mas sempre por meio dos grandes autores” (2003, p.2). Diretor, para ele, é a pessoa que sabe escrever a história e os diálogos. Não se pode, segundo ele, contentar- se com a mediocridade, algo que não seria culpa do governo brasileiro, mas da formação histórica da população. Sganzerla era um dos principais nomes do Cinema Marginal e se notabilizou por ter dirigido, no auge do regime militar e do Tropicalismo,

O bandido da luz vermelha, que violentava mulheres com uma lanterna de luz

vermelha, como o próprio título indica.

Diretor também identificado com o Cinema Marginal, Julio Bressane apresenta uma obra marcada por escolhas inteiramente pessoais. Ora investe em figuras históricas, como em Dias de Nietzsche em Turim (2001) e Cleópatra (2007)61, ora na banalidade

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Teixeira Coelho acredita que seja possível aplicar a idéia de parataxe, oriunda da teoria literária, ao estilo de Godard, por causa da disposição em blocos de seus filmes e o respectivo vazio que deixa entre as cenas. “O caso-Godard: os planos (blocos) são colocados lado a lado sem que exista uma perfeita continuidade entre eles” (COELHO, 1995, p.103).

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“Fazer alguma coisa é fazer mais do que pode ser feito”, disse César (Miguel Falabella), o imperador de Roma. Fazendo uma analogia com o princípio autoral, estabelecemos, a partir daí, uma dinâmica da intimidade. Não se trata de fazer um a mais, e sim o simples fazer, dentro dos limites e das possibilidades do tempo. A queda do império romano na visão de Bressane é, paradoxalmente, uma metáfora do cinema autoral, que procura se preservar, se resguardar junto ao claro-escuro de um ambiente claustrofóbico, como que iluminado só pelas labaredas dos seus archotes, preso ao que aprisiona e daquilo de que não consegue se libertar, o seu próprio ser. Talvez, por isso, Bressane tenha destacado as figuras tanto de Cleópatra (Alessandra Negrini) quanto de César, dois personagens intensos.