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GRUPO DE PESQUISA POR ÁREAS DE CONHECIMENTO

3.2.5 Marcos Ferreira Santos

Marcos Ferreira Santos, livre-docente da FEUSP (Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo), aprofundou seus estudos no imaginário bachelardiano da materialidade. Lembra que se interessou por imaginário aos exatos nove anos de idade, quando começou a ler Sócrates e, por extensão, chegou à filosofia e à mitologia gregas. A partir daí, diz ele em entrevista, se descortinou o interesse pela mitologia hindu e por toda a mitologia oriental ao tomar contato com o universo sonoro védico: “Curiosamente, a partir do concerto de Bangladesh com George Harrison e as ousadas investidas dos Beatles com as ragas e mantras”. Na adolescência, o interesse se voltou à cultura, ao folklore e à mitologia latino-americana, tendo participado, inclusive, dos atos musicais de protesto contra o golpe militar chileno. No início dos anos 80, o interesse agregou também o panteão africano... e, mais recentemente, conta ele, o universo mítico basco, a partir dos anos 90. Autor de “Crepusculário”, Ferreira Santos define o imaginário como “o universo das constelações de imagens que regem a existência humana; a gramática das experiências corporais que modulam nossa sensibilidade e engendram tanto a possibilidade de organização mítica como de organização racional de nossa vida, buscando uma equilibração antropológica e sentidos para a existência”. A definição de Ferreira Santos se contrapõe à filosofia cartesiana, um modelo de pesquisa comum no âmbito acadêmico (o que não quer dizer menos importante). Estudiosos do imaginário costumam estabelecer esta diferença - com o cartesianismo - por ser este o modelo oposto ao do imaginário, conforme se percebe na definição de Ferreira Santos.

O problema do cartesianismo, na opinião do autor de “Crepusculário”, é a sua redução ao “racionalismo estreito” (cogito ergo sum) e seu dualismo psicofísico, que, junto à lógica aristotélica - os pilares da cultura ocidental e do academicismo, para ele -,

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Livre-docente em Cultura & Educação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP). Colaborador do Centro de Estudos do Imaginário, Cultura e Educação (USP/CR/França). Professor de Mitologia Comparada, professor-visitante de Mitohermenêutica nas universidades de Deusto (Bilbao), Complutense de Madrid e Ramón Llull (Barcelona). Conferencista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica (SBPA) e da Sociedad Española de Psicologia Analítica (SEPA). Autor de “Crepusculário - Conferências sobre mitohermenêutica & educação em Euskadi” (Zouk, São Paulo, 2005).

faz (a redução) com que se tenha dificuldade de abandonar seu etnocentrismo e de dialogar com outras formas lógicas, tão válidas como o aristotelismo e o cartesianismo. “Prefiro a fórmula “sinto, logo existo... depois posso pensar sobre”. Tanto na tese de doutoramento, na tese de pós-doutoramento e na tese de livre-docência, e na grande maioria de seus livros e publicações, Ferreira Santos “aplica” a idéia de imaginário. Porém, esclarece ele, isso não se trata de uma metodologia aplicável a um estudo, e sim de um “estilo” de reflexão. Para ele, o imaginário representa uma mudança epistemológica e de atitude existencial.

Podemos pensar em termos de uma corrente de pesquisa acadêmica que tenha os estudos do imaginário como horizonte epistêmico, mas depende muito mais de um diálogo profundo do investigador com o seu próprio universo de buscas. Por isso, tenho cunhado o termo “jornada interpretativa” para tentar evidenciar o quanto este estilo não se dá como método ou técnica, mas como forma de busca de centramento, plenitude existencial, coerência entre o pensar e o agir, entre a mão e o olho.

Usar ou não usar o imaginário em dissertação ou tese se torna, em algumas circunstâncias, como testemunha-se em relatos de colegas nos grupos de pesquisa e nas apresentações de seminários, um verdadeiro tormento, pois o imaginário não simplifica as coisas. Pode torná-las, conforme comentário de um professor em Mostra de Pesquisa de Pós-Graduação na PUCRS, em 2008, um trabalho “oneroso”. Entende-se por isso complicar o que é simples. Porém, o imaginário pode não ser complicado. Conforme Ferreira Santos, é preciso ter cuidado com o fato de que uma busca empírica em campo não se faz de um dia para o outro sem envolvimento e vínculo afetivo com os colaboradores (duramente construído ao longo do tempo). O problema, segundo ele, é simplificar uma tese, seja ela tratando de imaginário ou não. “É preciso, como diz Gilbert Durand, ‘uma modéstia culta’, sem a qual não se consegue penetrar no universo criativo humano e tentar desvelar seus múltiplos sentidos.” Ferreira Santos observa que, atualmente, as ciências de ponta hoje dialogam muito mais com a perspectiva antropológica (Prigogine, Morin, Maturana & Varela, etc...). Ele diz não querer justificar as dificuldades que um pesquisador tenha em comunicar suas reflexões e descobertas, revestindo-as de verbalismo, e sim “que o próprio exercício de síntese para comunicar a reflexão e a investigação depende do momento mítico de leitura em nossa jornada interpretativa - aquilo que nos garante uma determinada leitura de mundo, sempre provisória”. O professor da FEUSP recorda um velho provérbio zen chinês, segundo o qual “é preferível o homem esperar pelo arroz, do que o arroz esperar pelo

homem”.

E se o imaginário fosse aceito no meio acadêmico, não perderia a força que tem e o seu sentido original (pluralismo, pluridisciplinaridade, epifania etc.)? Ou seja, a condição marginal não é sua maior riqueza? Esta é tese de Ferreira Santos, embora pareça, inicialmente, contraditória. Para ele, tem a ver com uma provocação de Marcuse: “quanto mais prazer se encontrar no seu trabalho, mais podemos explodir as estruturas unidimensionais por dentro”. É isso que Ferreira diz tentar fazer no seu “raio de ação possível”, tanto nas aulas de graduação (licenciatura e pedagogia) quanto na orientação de novos pesquisadores e nos espaços de extensão universitária, tendo a arte- educação como “aliada empírica dos estudos sobre o imaginário e como forma de intervenção (vide as produções do lab_arte em meu próprio site ou da FEUSP)”. Ferreira Santos usa a expressão “criar bolhas de respiro poético, de exercício de autoria, de desafio existencial ao religar a reflexão à atitude”. Assim, continua ele, permanecemos marginais, embora, dentro da universidade. O que vale, na opinião dele, é “aceitar a sugestão libertária de tentar as transformações e mudanças sem ocupar o poder: há sempre que se negar o poder”. Essa filosofia estrutura, segundo ele, a “nossa condição de sobrevivência e disseminação do conhecimento e da busca”. Isto é: “Vínculo recursivo entre a abelha e a flor, entrega e êxtase; sem reduzir a magnitude desta relação a uma simples relação produtiva”. Citando Bachelard, o professor da FEUSP lembra que o espírito humano não cabe nas fórmulas matemáticas de produtividade e racionalização...

Os estudiosos do imaginário, para ele, não são “excluídos da ciência” porque também fazem ciência, “embora os cientificistas não aceitem esta premissa”. Tudo depende, segundo ele, do entendimento de ciência. Em “Ciência e tradição”, recorda Ferreira, Durand exemplifica sua corrente epistemológica. “Trata-se de uma herança gnóstica, ou seja, conhecer-se através do conhecimento do mundo, conhecer o nosso mundo interior através do interior do mundo.” Assim, não é o caso de entrar em “rotas de colisão, duelos heróicos, combates, batalhas acadêmicas”. Em geral, afirma Ferreira, as pessoas que chamam os pesquisadores do imaginário de marginais e heréticos não estariam preocupadas com um purismo científico, mas com questões de poder que envolvem a destinação de verba para as pesquisas, validação de grupos de pesquisa, oligarquias e feudos acadêmicos: “É nesta esfera medíocre que circulam as necessidades de demarcação científica, as eternas querelas conceituais, as avaliações quantitativas, etc... Na pós-modernidade, o espírito parece ser outro. A pós-modernidade, na opinião

dele, é o sintoma deste período de transição do mito prometeico (“já derivado do purismo filantrópico de Prometeu, para a ousadia orgulhosa de Frankenstein e, finalmente, para o narcisismo de Fausto vendendo sua alma para sua vaidade”) para o de Hermes, passando pela contraposição dos mitos dionisíacos (“sobretudo, na ecologia e seus desdobramentos de sacralização”). Segundo ele, há uma corrente antiga e consolidada destes estudos, remontando a Idade Média no Ocidente e muito mais antiga no mundo oriental (tanto no Extremo Oriente como no Oriente Médio).

“Hoje, no Ocidente, temos uma maior divulgação (graças aos fenômenos da internet e similares) dos estudos que começam, na Europa, no círculo de Eranos e no ambiente libertário de Monte Veritá (1933 a 1988).” Para Santos, a sensação de que esta tradição ganhou espaço é ilusória, assim como, diz ele, a maioria dos simulacros virtuais. “Continuamos no trabalho cotidiano de formiga e cigarra na formação das pessoas... virá ainda o momento da banalização dos estudos e, então, este trabalho cotidiano será mais necessário ainda...”, afirma ele. O professor assemelha esse período com o de um filme de Truffault, Fahrehneit 45133, no sentido de que “é preciso manter a comunidade de homens-livros até que a próxima era das trevas chegue e sejamos necessários mais uma vez”. Assim, a questão da autoria cinematográfica (aquela alavancada pelos franceses da Nouvelle Vague, como Truffaut, aliás, e que valorizava a expressão pessoal dos cineastas antes que suas qualificações técnicas, teria, para Marcos Ferreira Santos, relação com o imaginário? De que modo? Evidentemente que sim, diz ele. “Sou também cinéfilo e acompanho de perto esta relação, além de utilizar uma filmografia extensa em minhas aulas (sempre fragmentos para que se possa discutir em sala de aula.” O cineasta hoje, de acordo com ele, tem a mesma função que o griot, o bardo ou o menestral medieval. “Com seu canto, constrói poeticamente as imagens que serão usufruídas pelas novas gerações e, assim, assume seu endividamento com os ancestrais (o desafio de tornar-se ele próprio)”.

Por isso, afirma Santos, este cineasta autoral só pode contar com a matéria-prima de sua própria vivência. Para ele, a sintaxe das imagens e das metáforas é o fio narrativo do mito que comunica, só que alguns são mais felizes que outros nesta tarefa: “Quanto mais simples e mais profunda a imagem, mais comunica o trágico da existência e nos

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Quinto longa-metragem (feito em 1966) de Truffaut. Trata-se de uma adaptação do romance homônimo de Ray Bradbury. Em um determinado país, os bombeiros não apagam incêndios: queimam os livros. A leitura é proibida. Montag, interpretado por Oskar Werner, é um dos bombeiros que, após encontrar uma moça, começa a questionar sua própria vida. Traumatizado, ainda, pelo fato de uma senhora preferir ser queimada viva junto com seus livros, Montag começa a ler escondido e se refugia junto aos “homens- livros”. Cada um deles decora um livro, a fim de preservar a memória, que passa de geração em geração.

comunga em nossa pertença humana com os coloridos de cada lugar, cada época, de cada espírito do tempo. Logo, para o professor da USP, não faria sentido partir de algo que não seja sua expressão pessoal. “Meu dileto, Kryzysztof Kieslowsky, mergulhou nisso... quando decidiu parar de filmar, nos deixou.” Santos conta que ainda ouve os temas de Van Budenmayer, “revestindo o sol matinal que me impele para o dia enquanto uma velha senhora arcada pelo peso dos anos tenta colocar sua garrafa de vinho vazia no coletor, muito mais alto que ela”. Haverá, questiona ele, conjugação mais bela deste trágico, este trágico na liberdade, como dizia Nikolay Berdyaev? Logo, se não diferenciarmos um autor de um não-autor (dentro dos pressuspostos da produção cultural, ou seja, considerando “autor” um cineasta como Ingmar Bergman ou Federico Fellini ou Jean-Luc Godard, que não são os mesmos - profissionalmente falando - dos diretores de blockbusters americanos, por exemplo, cujo empenho é conseguir bilheteria), não correríamos o risco de cair na barbárie da indistinção? Santos concorda, mas faz uma ressalva de que a relação não seja assim tão simples... “Existe barbárie também no circuito chamado cult, que pretende um cinema de autoria, mas não consegue nada mais que arremedo, simulacro de si mesmo, vazio de propostas, inexpressividade travestida de criação”.

Para Marcos Ferreira Santos, os blockbusters são facilmente reconhecíveis e, por isso, acha que não se deve perder muito tempo “chutando cachorro morto (como gostavam de dizer os vanguardistas)”. Diferentemente de um cinema autoral, Santos opina que sempre haverá espaço para a distração e o prazer descompromissado, “sem refinamento estético e sem profundidade”. A distinção que merece reflexão apurada, na opinião dele, é o processo de criação neste cinema de autoria, porque, por desdobramento, se fará, quase naturalmente, a distinção entre a “cinelândia norte- americana e o cinema (o kino-olho) de autoria onde ele se dê, seja na China, no Japão, no Brasil, na velha Europa, no Irã etc.”. A imagem icônica de um filme não oblitera sua imagem simbólica? Como distingui-las para depois juntá-las como resultado da criação e da personalidade de um cineasta? Para Ferreira Santos, a imagem icônica não oblitera a imagem simbólica. A imagem icônica (superfície da imagem) que se constela com o cenário, os personagens, a trilha sonora, o ângulo, a fala ou o silêncio constitui a matéria-prima que dialogará com o momento mítico de leitura dos espectadores, de acordo com o professor. “É neste processo que se constitui a imagem simbólica, polissêmica, transversal, carnal, visceral, epifânica... para cada um, uma leitura própria e independente da intenção do autor”, opina o professor. Ele cita Merleau-Ponty,

segundo o qual uma obra não se explica pela biografia de seu autor... ao contrário, esta

obra exigia esta vida. Ferreira Santos faz questão, ainda, de dar um lembrete: misturar seu ser ao que faz não é apenas um privilégio do cineasta autoral, mas um compromisso

de todo ser humano...