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O cotidiano porto-alegrense (Carlos Gerbase)

GRUPO DE PESQUISA POR ÁREAS DE CONHECIMENTO

6. Um autor cinematográfico

6.10 O cotidiano porto-alegrense (Carlos Gerbase)

Gerbase, a respeito do qual nos referimos antes, cuja noção de autoria ilustra a idéia de sensibilidade nesta tese, reside na “sua” gremista Porto Alegre. E isso faz toda diferença na sua obra. É na capital gaúcha que o cineasta se reconhece. O fato de ter nascido em Porto Alegre incorpora-se nele: música, aulas, torcida (pelo Grêmio) e cinema. O cineasta gaúcho recusou um convite da colega Sandra Werneck para escrever o roteiro do filme Cazuza por ser gaúcho, e não carioca como o cantor e compositor de “Bete Balanço”. “Ser um autor é querer construir uma obra que só tem sentido ao expressar questões de interesse para o próprio autor. É pensar no que se quer dizer, em vez de pensar no que o espectador quer ouvir”, afirma Gerbase, em entrevista para a tese. Essa postura não tem qualquer traço de individualismo. A autoria gerbasiana, se é que podemos nos referir deste modo, tem relação com a idéia de coletividade na

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Literalmente, “nova onda”. Expressão utilizada por jornalistas para caracterizar filmes que significavam uma reação contra a tradição acadêmica.

elaboração de um filme, mesmo que a última palavra, no momento de alguma decisão, seja a dele, o diretor. No livro “Cinema, Direção de Atores”, Gerbase explica seu método de trabalho ou o que Truffaut denomina “segredos de fabricação”. Um dos fundamentos gerbasianos é o de que um cineasta não filma sozinho, mas, ainda assim, tem o poder de decidir, porque a assinatura do filme é dele. O perfil de um cineasta como ele é o de uma pessoa cujos conhecimentos (não estritamente cinematográficos, mas também isso) são limitados, da mesma forma que em todo ser humano, e que, justamente por isso, deve ouvir os outros. Mas há limites.

A escolha do elenco, por exemplo, desde que não exista alguma imposição explícita dos produtores, acaba sendo uma decisão pessoal do diretor do filme. Gerbase cita duplas famosas de diretores e protagonistas, como, entre outros, Truffaut-Léaud, Scorsese-DeNiro, Kurosawa-Mifune, Hartley-Donovan, Chabrol-Huppert e Arraes- Nanini. A identificação de Gerbase com o cinema autoral, nesta lista, é explícita. Por exemplo: para protagonizar Tolerância, Gerbase convidou a atriz paulista - e hoje escritora - Maitê Proença, que teve de falar “tu” no filme. O diretor fez questão disso porque o filme se passa em Porto Alegre, e é assim - usando a segunda pessoa do singular - que as pessoas falam no Rio Grande do Sul. O cineasta, se quiser, deixa transparecer características pessoais na sua obra, afirma Gerbase: “Mas há cineastas que, em nome do sucesso, trabalham em cima dos sentimentos do público (ou das expectativas do público), a fim de conseguir o que querem (bilheteria, principalmente)”. Na televisão, porém, Gerbase diz que o que importa é sempre o sentimento do público, e que talvez esteja aí, na opinião dele, a grande diferença para o cinema, arte na qual ainda haveria espaço para a manifestação interior do cineasta. Em “O homem na era da televisão”, Jean-Jacques Wunenburger apresenta o imaginário da estética televisiva para ver até que ponto o cinema tem sido afetado por ela. Em uma das partes do livro, Wunenburger afirma que “a televisão, retirando acontecimentos de seu contexto, de seus códigos de recepção, de seus valores culturais intrínsecos, marca o conjunto do que mostra com o selo intercambiável universal, da anomia generalizada” (2005, p.38).

Um pouco depois, o mesmo autor diz: “Em resumo, a televisão nivela as obras em produtos e abole toda diferenciação”. Logo, um filme seu na tevê não é diferente de um filme no cinema? Não há uma perda da substancialidade de uma obra ao ser transmitida pela tevê, conforme as afirmações desse autor? Para Gerbase, se Wunenburger estiver falando de televisão aberta, com horários comerciais durante o filme, dublagem, com eventuais cortes para adequar tempo ou censura, sim: “Faz

muitos anos que não vejo um filme inteiro desse jeito. Aliás, quase não vejo TV aberta. Mas se o filme está passando num canal fechado, sem intervalos comerciais, com legendas, ou, melhor ainda, a partir de um DVD, não vejo problema algum. A substância é a mesma”. O que muda, na opinião de Gerbase, é a circunstância do espetáculo: “E algumas salas de cinema têm projeção e som piores do que a sala da minha casa”. Para Gerbase, em suma, “obras audiovisuais são esforços coletivos coordenados pelo diretor” (2007, p.67). Esforço, inclusive, de profissionais cujo interesse está voltado para o lado mais financeiro do que estético de um filme. E o lado financeiro tem a ver, diretamente, com recursos técnicos. O aparato técnico, na opinião de Gerbase, é um limite significativo para o cineasta, da mesma forma que o orçamento, dois aspectos entrelaçados um ao outro. Na opinião dele, se há muito dinheiro envolvido na produção de um filme, o aparato técnico é ilimitado (graças às tecnologias digitais). Porém, quanto menor for o investimento no filme, maior é o limite para realizá-lo.

Como lidar com isso? Neste caso, diz Gerbase, depende de cada cineasta. Há quem consiga trabalhar bem com certos limites, mas outros não, e outros mais até se sentem melhor com eles, afirma o professor. Em entrevista na PUCRS, Peter Greenaway, que dispensa maiores apresentações, deslumbrado com o desenvolvimento da tecnologia digital, afirmou que o trabalho de um cineasta acabou facilitado: basta colocar a câmera no ombro e dirigir um filme. Estaríamos retornando ao lema do Cinema Novo, imortalizado por Glauber Rocha, o da “câmera na mão e uma idéia na cabeça”? A idéia na cabeça, para além do aparato técnico, se constitui, no caso de um diretor com o estilo autoral de Gerbase, de forma imaginativa ou racional? “As duas coisas. Creio que a base da narrativa (o tema, a fábula) é mais intuitiva do que racional. Mas o seu desenvolvimento (a trama) é mais racional”, afirma Gerbase. Segundo ele, a indústria cinematográfica gostaria de aumentar a racionalidade de tudo, começando pelos roteiros, até a recepção do filme pelo público. Mas Gerbase vê um problema nisso. Para ele, não se leva em conta o que chama de “espaço nebuloso”, o da criação que escapa às fórmulas e fica atrelada ao sujeito criador. E criar não tem a ver com um estilo, algo que se postula na definição tradicional de autor. Só depois, ao se lançar um olhar crítico sobre a obra, é que se poderia definir, dentro de certos limites, um estilo.

Gerbase diz que nunca pensou sobre seu estilo e sobre um projeto estético pessoal: “Se eu fosse analisar meus filmes retrospectivamente diria que eu tenho algumas temáticas recorrentes: relações familiares e afetivas, imaginação e sexo”. Geralmente, Gerbase diz trabalhar com histórias do cotidiano, em vez de desenvolver

“grandes temas”, e afirma que seu estilo de filmar, agora ele pensou em um, é mais clássico do que experimental, embora goste de experimentar na construção da trama: “Sou um ficcionista”. O cinema, na opinião dele, é um artesanato, construído passo a passo, de forma coletiva, ao contrário da música e da literatura, duas manifestações artísticas nas quais Gerbase também se expressa: “É uma obra que exige constante esforço, atenção, certa dose de obsessão. Se isso não acontecer, o filme não é feito, ou vira uma obra falhada”. Um filme, para Gerbase, nasce com a necessidade da expressão, ou, melhor dizendo, da auto-expressão. Por outro lado, e aqui fazemos questão de salientar este aspecto, porque toca no cerne desta tese, há uma dependência de aspectos pragmáticos, como o tempo e o dinheiro, ao lado de outros não tão pragmáticos assim, como a vontade e a energia. Gerbase diz que, para ele fazer um filme, precisa, em primeiro lugar, acreditar MUITO na história; em segundo, que a história também agrade - pelo menos um pouco - outras pessoas que leram o roteiro; e, em terceiro lugar, que aconteça um esforço coletivo - traduzido por entusiasmo - das pessoas destacadas para a construção do projeto.

O cineasta confessa que gostaria de filmar muito mais do que filma atualmente (foram quatro longas: Inverno, Verdes Anos, este em co-autoria, Tolerância e 3 efes). O problema é que, mesmo quando ele tem entusiasmo por um determinado roteiro, acaba esbarrando no segundo e no terceiro itens mencionados acima. Porém, opina Gerbase, uma vez concretizado, um filme nunca é deficitário em relação ao que se imaginou, porque acaba sendo visto - e imaginado - por outras pessoas. Diz, ainda, que, a partir do seu lançamento, o filme está disponível para a interpretação de um público com diferentes imaginários em relação ao do autor do filme. Esse aspecto serviria como um exercício de humildade por parte do diretor, afirma Gerbase, justificando que cada pessoa vê sua obra de modo distinto daquele imaginado pelo cineasta. Filmes considerados fracassos de bilheteria podem ser importantes para um espectador desinteressado pela matemática do guichê. E sucessos podem envelhecer rapidamente, afirma Gerbase. Foi o caso do Cinema Novo, segundo ele: “Como projeto estético e político envelheceu, o que é ótimo. O novo sempre vem, inclusive depois do Cinema Novo. Mas, quando devidamente revista e atualizada, aquela estética ainda rende grandes filmes, como Linha de passe”. Gerbase é um cineasta gaúho que marca seu percurso a partir de uma ligação umbilical com Porto Alegre. Ele é um porto-alegrense antes de ser um gaúcho. É com Porto Alegre que Gerbase tem uma relação apaixonada: paixão pelo Bom Fim, pela Redenção, pelos Replicantes e pela vida. E outras...

6.11 Primeira pessoa

A noção de autoria com que trabalhamos é a da expressão poética do “eu”. Isso quer dizer que um cineasta, com aquela característica, procura respeitar sua motivações profundas, sutis, sem que consiga, muitas vezes, explicar o porquê delas. É uma espécie de instinto. No imaginário desse autor cinematográfico, que também encontramos em outras manifestações artísticas, acontece sempre uma ambivalência entre um estilo (não racionalizado, semelhante à noção de símbolo, em Durand, cuja relação com alguma coisa não é arbitrada de modo racional) e as questões de ordem moral e material: devo ou não agir dessa forma e em quais condições. Em “A política dos autores”, uma compilação portuguesa de entrevistas com Jean Renoir, Roberto Rossellini, Howard Hawks (1896-1977), Alfred Hitchcock, Luis Buñuel (1900-1983), Orson Welles, Carl Dreyer (1889-1968), Robert Bresson e Michelangelo Antonioni, estes cineastas revelam sua paixão natural pelo cinema. Todo diretor-autor, portanto, seria, acima de tudo, um artista e não apenas um realizador de filmes. Um estilo só pode ser identificado no trabalho de natureza poética. No caso dos cineastas da Nouvelle Vague, era possível percebê-lo na mise-en-scène, a organização dentro de uma narrativa, o mesmo que o trabalho de direção como filtro dos elementos constitutivos de um filme (Tarkovski). Em entrevista a Jacques Rivette e François Truffaut, o cineasta Jean Renoir (filho do pintor impressionista Auguste Renoir, um dado não negligenciável) diz que se pergunta sobre a validade de uma obra de arte, e se a idéia que fica dela não seria até mais importante do que ela mesma.

Esta idéia só poderia ser transmitida por um autor. “Toda obra de arte que dá um passo, ainda pequeno, alguns milímetros, para o contato com o espiritual, é uma obra de arte que tem o seu interesse”, afirma Renoir (s/d, p.11). Os filmes considerados autorais são os que o diretor imprime sua mundivisão aos filmes, o que não se trata, porém, de uma evidência. A identificação com a autoria em um filme é uma questão que nos remete à sensibilidade do cineasta e à do pesquisador. Podemos observar neste comentário do diretor de A grande ilusão (1937) a importância do trabalho que não se justifica apenas pela sua plasticidade, mas que faz da plástica um instrumento para a criação de uma aura. Para Renoir, era mais importante criar, para seu trabalho ter alguma relevância artística, do que fazer uma cópia de alguma coisa. “O que ficará de um artista não é a cópia da natureza, já que essa natureza é mutável, é provisória: o que

é eterno é a sua maneira de absorver essa natureza e, como o dizíamos no princípio, é o que ela poderá dar aos homens” (RENOIR, s/d, p.16). Os diretores-autores com vocação poética (o que é uma redundância nos próprios termos, já que a expressão “diretor- autor”, oriunda da Nouvelle Vague, pressupõe um trabalho de cunho artístico) atuam atraídos por seu projeto. Uma história, para eles, apresenta um argumento simples. Renoir lembra que o tema de A grande ilusão chega a ser ingênuo: “(...) é um argumento infantil: a história de pessoas que querem se evadir: conseguirão ou não?” (s/d, p.44)58. Em A noite americana, Truffaut mostrou o cinema como se estivéssemos dentro do estúdio, levando ao extremo os “segredos de fabricação” ao exibi-los quando ainda não se fazia o já institucionalizado making-of59.

Truffaut considera Renoir uma “inteligência livre” (2000, p.147) e diz que o filme aborda a ilusão de cada um sobre a sua própria vida, assim como, na primeira Guerra Mundial, época em que se passa a história, seria a última. Outro aspecto que Truffaut salienta na abordagem de Renoir, agora em termos de estilo do cineasta, é o fato de se interessar em filmar não diretamente idéias - mesmo que elas sejam importantes para ele, como vimos antes -, mas homens e mulheres que têm idéias, para o melhor ou o pior, e idéias que devem ser respeitadas (2000, p. 148). Também Roberto Rossellini “escava de uma maneira que julga pessoal” (s/d, 88). Um dos precursores do neo-realismo italiano, Rossellini, que concedeu a entrevista para Truffaut, novamente, e Maurice Schérer, admira o cotidiano. Questionado sobre a questão do estilo, que os entrevistadores observam como sendo o oposto do que chamam “efeitos de cinema”, isto é, um cinema impassível, o diretor de Roma, cidade aberta (1945), esclarece que se trata de humildade com que observa os grandes gestos ou grandes fatos produzidos pelos homens. “(...) com a mesma retumbância que os pequenos fatos normais da vida. Há nisso uma fonte de interesse dramático” (s/d, p.89). O problema que Rossellini apresenta em suas histórias é, como ele próprio diz, o dos homens com ou sem esperança, o que ele considera uma questão até ingênua. O autor, para ele, é distinto conforme a personalidade de cada cineasta. “A Nouvelle Vague serviu para agrupar cineastas de tendências diversas e que permaneciam o que eram, com suas idéias, sua personalidade, sua estética” (ROSSELLINI, s/d, p.102).

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Trata-se de uma história, baseada em fatos reais, de pilotos franceses capturados por oficiais alemães. Um desses pilotos, o general Pinsard, relatou o episódio para o próprio Renoir, que também esteve na aviação e fora atacado por alemães, o que só aumentava o respeito que o cineasta tinha pela personagem real/fictícia de Pinsard.

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É a gravação da gravação de um filme, geralmente intercalada com entrevistas do diretor, do roteirista, do elenco principal e dos técnicos, oferecida como bônus no filme em dvd.

Já Howard Hawks, diretor norte-americano cultuado pela geração Nouvelle Vague, e cuja característica era posicionar “a câmera à altura do homem”, conforme Rivette, via na comédia o “mesmo que uma narrativa de aventuras, uma reação humorística perante o fato de ser posto em uma situação embaraçosa” (s/d, p.158). Peter Bogdanovich conta que foi Hawks quem o ajudou a dar o título do seu livro “Afinal, quem faz os filmes”, quando lhe perguntou quais eram os cineastas que ele, Hawks, admirava: “Gosto de quase todo mundo que faz a gente perceber quem diabos fez o filme... Não gosto daqueles que pegam filmes já preparados e não têm nenhuma individualidade” (BOGDANOVICH, 2000, p.23). Hawks complementa, ainda, afirmando que o diretor é que deve contar a história, e que deve ter um método próprio de contá-la. A entrevista de Carl Dreyer, ainda, dada a Michel Delayhe, toca em um ponto sensível à autoria. Para ele, o interessante é, antes da técnica, reproduzir os sentimentos das personagens em seus filmes. “O importante, para mim, não é só agarrar as palavras que eles dizem, mas também os pensamentos que estão atrás das palavras” (DREYER, s/d, p.283). Dreyer valoriza a expressão, pois, de acordo com ele, é uma maneira de “revelar o caráter das personagens, os seus sentimentos inconscientes, os segredos que repousam no fundo da sua alma” (DREYER, s/d, p.283). Ele exemplifica com Gertrud (1964), filme que teria sido feito com o coração (e sabemos que, para os diretores autores, agir com coração é o mesmo que agir, etimologicamente falando, com coragem). Na leitura subjetiva da autoria no cinema, procuramos observar nos diretores mencionados uma linha comum, a do estilo pessoal.