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GRUPO DE PESQUISA POR ÁREAS DE CONHECIMENTO

6. Um autor cinematográfico

6.2 Sentir com as tripas

O cineasta argumenta que é extremamente aberto a modificações, mas que, no entanto, determinadas coisas estragam o filme e, por isso, procura defendê-lo. O preço por ceder foi alto, diz ele: “Cortei certas cenas, tentei acomodar um pouco a um formato menor e, quando cheguei na montagem final, o filme tinha duas horas e vinte minutos”. O problema, segundo ele, é que deixou de filmar certas coisas, teve dificuldade de passar informações básicas e algumas cenas ficaram “sem respiração própria”. “Eu devia ter mantido a minha posição, mas assumi a angústia dos produtores. Foi um erro”

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(p. 11). A noção autoral de Ruy Guerra é a de uma intuição sobre o filme. Um produtor - e vários filmes retratam essa “guerra” - não enxerga o mesmo que o diretor de cinema. A cena clássica de um autor em crise é a de Marcello Mastroianni, interpretando Guido, em 8 e Meio, de Federico Fellini, e que ganhou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, em 1963. Nos primeiros quinze minutos de filme, surge a questão: “Perguntamo-nos o que os autores realmente querem. Querem nos fazer pensar? Querem nos meter medo?”. Em seguida, uma atriz francesa reclama ao produtor do filme que não tinha entendido a sua personagem, mas que precisava senti-la dentro de sua carne. “E o maestro ainda não explicou?”, perguntou-lhe, em tom debochado, o produtor, referindo-se a Guido. “Não”, respondeu ela. O produtor lamenta, e afirma que não poderia lhe explicar por se tratar apenas do produtor do filme e que, por isso, não sabia de nada; o que Guido, por sua vez, confirma, dizendo-lhe que, naturalmente, não poderia saber mesmo.

Este diálogo, cheio de ironias entre o produtor e o cineasta, leva Guido a pensar: “Minhas idéias pareciam tão claras... Eu queria fazer um filme honesto, sem nenhuma mentira. Achava que tinha algo tão simples a dizer! O meu filme seria um pouco útil para todos e ajudaria a enterrar o que de morto carregamos”. Era essa, pelo menos, a intenção do autor, que, porém, não se reconhecia na história e acaba revelando que é o primeiro a não ter coragem de enterrar nada. “Em que ponto errei o caminho?”, pergunta-se. É o momento de entrar em cena o Crítico, alter-ego de Fellini. “Para ele, o produtor, um filme fracassado é só um fato econômico, mas, para o senhor, ao ponto em que chegou, podia ser o fim.” O crítico-Fellini continua, dizendo que “estamos sufocados por palavras, por imagens, por sons que não têm razão de ser, que saem do nada e se dirigem para o nada”. Conforme ele, ainda, “a um artista que realmente seja digno de tal nome só se devia pedir a lealdade de educar-se para o silêncio”. Quer dizer, educar-se para a reflexão, para tudo aquilo que Guido disse pretender fazer e que, ao contrário do que pensa, não consegue. O pensamento de Fellini é autoral, porque, nele, um filme é a projeção do autor. Para finalizar, o crítico-Fellini comenta, justificando tanta filosofia: “É que a nossa verdadeira missão é varrer os milhares de abortos que todo dia tentam, obscenamente, vir ao mundo”. A noção de autoria em Fellini tornou-se referência para uma série de realizadores cinematográficos. Muitos diretores contemporâneos (Gabriele Salvatores, Julio Medem, Rebecca Miller, Hal Hartley, Wim Wenders, Silvio Soldini), que não só os franceses oriundos da Cahiers du Cinéma, refletem no seu trabalho a mesma idéia de sensibilidade que a de um Fellini (1920- 1991): uma sensibilidade autoral. O diretor, hoje, vive o dilema de ser ele mesmo em

um mercado que procura padronizar, a fim de não correr riscos (ou fracassos de bilheteria). A teoria do autor não foi algo imposto, mas sentido. Um sentir com as tripas.

Por mais autoral que seja a obra, o que já é discutível de per si, o filme tem que atingir algum tipo de público para se tornar vendável, caso contrário não fica em cartaz, ou, quando fica, é pouco tempo - não mais do que uma semana. Conforme Badiou, um filme de autor “estabelece alguma idéia a seu respeito” (2002, p.109). É o oposto do juízo indistinto: “(...) filme situável na pasmaceira entre prazer e esquecimento” (BADIOU, 2002, p.109). A visitação do sensível é, para Badiou, a “poética do cinema”. Visitação porque é passagem e movimento. O cinema, para ele, é uma arte impura e, por isso, o “mais-um” das artes. Outro argumento considera o filme como estilo, que Badiou chama de juízo diacrítico. Estilo e autor são o contrário da indistinção porque se diferenciam da cópia. Esse estilo diacrítico é resultado da crítica, que julga o que é ou não filme de qualidade. Para Badiou, no entanto, “a arte é infinitamente mais rara do que a melhor crítica pode supor” (Ibidem, p.110). Ao se falar de um filme, ainda conforme Badiou, não se deveria dar privilégio às questões puramente técnicas, como o plano, o corte e os demais efeitos com a câmera, a não ser que contribuam para uma reflexão avançada ou o “toque” da Idéia (que ele escreve com letra maiúscula), inata à impureza do filme. Segundo Badiou, um filme mostra o que não há nele, ou o que está

além dele. A tese é semelhante ao cinema praticado por um Ruy Guerra. Ele mostra

para não mostrar. Guerra prefere trabalhar com a noção do tempo, por causa de uma pluralidade do imaginário, que transita, livremente, entre o passado, o presente e o futuro.

Em determinados filmes, parece haver como que uma fusão entre a personalidade do cineasta autoral e a sua obra. Um determinado tipo de análise pode levar em conta o autor como uma instância abstrata (separada da sua obra), mas outro pode considerá-lo como uma personalidade que se expressa por meio da câmera, e é disso que se trata aqui. Não é o caso de desvendar o que o cineasta pensa através do filme, mas o fato de que esse filme é a forma de expressão da pessoa (artista e artesão), com toda a pluralidade que ela comporta. Pode ser, também, a representação de uma individualidade sensível a um certo modo de se dirigir ao mundo. Ao definir Terra em

transe (1967), Glauber Rocha afirmou que se tratava de um filme mais “poemático do

que ficcional” (1997, p.274). Nos estudos de cinema, Jean-Claude Bernardet revisita o tema da autoria cinematográfica em “O autor no cinema - A Política dos Autores: França-Brasil, anos 50 e 60”, enfocando-a sob o ponto de vista da crítica especializada,

no Brasil e no exterior. Teixeira Coelho, apesar de não se filiar aos estudos cinematográficos, mas em ação cultural, aponta para uma sensibilidade pós-moderna ao se referir ao trabalho de Jean-Luc Godard, e reflete sobre a autoria no ensaio “A morte moderna do autor”, revendo os postulados estruturalistas de Michel Foucault, para concluir que “depois de um período de ostracismo, o autor volta à cena (...)” (1995, p. 147).