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GRUPO DE PESQUISA POR ÁREAS DE CONHECIMENTO

3.2.2 Ana Taís Martins Portanova Barros

Em Estorvo, a luta do protagonista é a de compreender a si próprio, e não a de corrigir as possíveis imperfeições da sociedade, o que tem relação com o trabalho acadêmico da jornalista e também pesquisadora do imaginário, professora-adjunta da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Fabico-UFRGS), Ana Taís Martins Portanova Barros. Explica, em um artigo publicado pelo Jornal da USP, em 2003, que a ciência “normal” se desenvolveu ignorando o imaginário. A ressurgência do imaginário foi alavancada, justamente, por

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Professora-adjunta do Departamento de Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) na área de Fotografia, com doutorado em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP), desenvolve pesquisa sobre imaginário e fotografia. É autora de “Jornalismo, magia, cotidiano” (Editora da Ulbra, Canoas, 2001) e “Sob o nome de real - Imaginários no jornalismo e no cotidiano” (Armazém Digital, Porto Alegre, 2008) e co-organizadora de “Nós transdisciplinamos - Diálogos nas Ciências da Comunicação”, com Dinorá Fraga (Armazém Digital, Porto Alegre, 2007).

Gilbert Durand. Segundo ela, predominou, até hoje, a busca da clareza e da distinção valorizadas por uma lógica aristotélica. Conteúdos do imaginário como o mito, o sonho e o devaneio, entre outros, foram marginalizados. Daí a importância, para ela, dos estudos de Durand, que trouxe o imaginário para o meio acadêmico, algo que também é comentado por Maria Cecília. Ana Taís recupera no artigo “A pesquisa nos jardins do imaginário” (2003, Jornal da USP, p.12) a importância dos teóricos que contribuíram, mais tarde, para a noção de imaginário com que Durand trabalha. Sigmund Freud (1856-1961) traz o conceito do inconsciente como produtor de imagens simbólicas; Carl Gustav Jung (1875-1961) formula a tese do inconsciente coletivo e do arquétipo; Ernst Cassirer (1874-1945) reflete sobre formas simbólicas; Georg Gadamer (1900-2002) investe na teoria da hermenêutica, assim como Paul Ricouer (1913-2005); Roger Caillois (1939-1988) explora a dialética razão/imaginação; Georges Gusdorf (1912- 1991) valoriza a consciência mítica; Georg Simmel estuda o formismo, e Claude Lévi- Strauss cria a antropologia estrutural de cunho humanista (1908-).

Ana Taís ressalta o pioneirismo de Danielle Rocha Pitta, que, mesmo de origem francesa, abriu na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) um Ciclo de Estudos sobre o Imaginário, e de José Carlos de Paula Carvalho, que, na década de 80, iniciou os estudos do imaginário na Faculdade de Educação da USP, junto com Maria Cecília Sanchez Teixeira, resultando na criação do CICE, oficializado em 1994. Na esteira de Gilbert Durand, Ana Taís afirma que os estudos do imaginário são fundantes na instauração do pensamento transdisciplinar, uma demanda da contemporaneidade.

Se Platão, na sua “República”, recomenda que se expulsem os poetas da cidade, porque a imagem subverte, as demandas da contemporaneidade solicitam à ciência justamente o contrário: que dê voz à poética na pesquisa, permitindo que as luzes de Apolo dialoguem com as sombras de Dioniso (2003, p.12).

A professora da Fabico-UFRGS inclui imaginário nas suas pesquisas acadêmicas. Acaba de publicar sua tese de doutoramento, “Sob o nome de real, imaginário no jornalismo e no cotidiano”, enfocando o que chama de dicotomia entre o real e o imaginário no jornalismo, e lidera o Grupo de Estudos sobre Comunicação e Imaginário, o Imaginalis. Para ela, é preciso superar essa oposição, já que o imaginário “abarca o real, contendo também elementos imateriais, como arquétipos, mitologias, simbolismos” (2008, p.37). Para a autora, o iconoclasmo jornalístico é travestido pelo “amor à verdade” e pela “fidelidade aos fatos”. Sua averiguação se pautou em

entrevistas com jornalistas de veículos impressos publicados em Porto Alegre e em fontes populares. Ou seja, procurou contornos do imaginário sustentado por Zero Hora e Correio do Povo, confrontado com o imaginário cotidiano, o mesmo que pautou estes jornais. O eixo fundante é Gilbert Durand. Na orelha do livro, Cremilda Medina, que orientou a tese de Ana Taís, afirma que ela desmonta a falácia da objetividade. O que o imaginário valoriza, segundo Ana Taís e outros estudiosos do tema, é uma abordagem prismática dos elementos sociais. O prisma, aqui, pode ser traduzido por transdisciplinaridade, assunto que também é de interesse de Ana Taís. Em co-autoria com a professora do Programa de Pós-Graduação em Lingüística Aplicada da Unisinos Dinorá Fraga, publicou o e-book “Nós transdisciplinamos: diálogos nas Ciências da Comunicação”. “Hoje, depositamos na transdisciplinaridade a esperança de um salto sobre o abismo cavado entre a razão e a vida” (2007, p.9), afirma Ana Taís.

A dissociação entre razão e vida, como afirma a autora, é o mal da modernidade. Uma modernidade que pretendeu, e ainda pretende, separar o que está junto. No autor cinematográfico, nunca houve essa distinção. Ela só foi concebida por parte da crítica, para melhor (ou pior) analisar sua obra. É o caso, só para exemplificar, de um determinado crítico de cinema que foi ver um Godard na Casa de Cultura Mário Quintana (centro cultural no centro de Porto Alegre, que possui três salas de cinema). Em uma delas, a Norberto Lubisco, estava sendo exibido JLG por JLG, um média- metragem autobiográfico de Godard. Na crítica, estampada no mural da sala de exibição, o texto parecia se referir a outro filme. Estabeleceu-se uma crise de paradigma entre ele e o cineasta, cuja proposta não tinha relação alguma com o comentário do crítico. A questão do imaginário, portanto, é paradigmática, sim, conforme disse anteriormente Maria Cecília. Ana Taís conta que a partir do momento em que foi apresentada ao tema pelo então professor Teixeira Coelho, no mestrado em Comunicação na ECA-USP, já não conseguiu mais afastá-lo de sua existência. Para ela, imaginário é uma forma de integrar pesquisa à vida. Se fosse para definir imaginário, Ana Taís diria que “é um repositório humano de estratégias de construção e enfrentamento do mundo”. As estratégias, conforme ela, se constituem a partir de imagens com maior ou menor pregnância simbólica, mas que continuam sendo sempre e fundamentalmente imagens (não se trata, aqui, é bom lembrar, da imagem icônica). Por que os estudiosos do imaginário sempre o confrontam com o cartesianismo?

Segundo Ana Taís, o motivo é que o cartesianismo desmembra um problema para poder focar a atenção sobre uma parte de cada vez. Ao fazer isso, acaba

minimizando as relações entre as partes e privilegiando a abordagem fragmentadora. Por isso, do ponto de vista do imaginário, o cartesianismo é desequilibrado e desequilibrador, reprimindo a necessidade integradora que também faz parte da natureza humana. Neste ponto, a idéia fragmentadora também se contrapõe ao autor pós- moderno. De acordo com Ana Taís, o escamoteado retorna com tão mais violência quanto mais duramente foi excluído. Ela cita um exemplo dessa revolta na área médica: quantos pacientes, se sentindo invadidos e tratados como máquinas que funcionam mal não se lançam às terapias alternativas caindo, por vezes, nas mãos de charlatães que têm o mérito de tratar o doente como um ser total, com sentimentos e necessidade de expressão? Ana Taís observa que tais pacientes não alcançam a cura, mas se sentem gente. O que costuma ser visto como um equívoco provocado pela ignorância dos pacientes, afirma ela, pode ser compreendido como uma conseqüência da exacerbação cartesiana. O espírito cartesiano, no cinema, é o filme estruturado de uma forma simplista, resultando em uma experiência pobre e vazia para o espectador, sem um crescimento do ponto de vista intelectual que ultrapasse a via do entretenimento e da diversão. Para educar a sensibilidade, no entanto, um filme não precisa ser, necessariamente chato e pode divertir, que, mesmo assim, alcança um viés filosoficamente contundente.

“Aplicar“ o imaginário na pesquisa é outro problema de fundo paradigmático. Para Ana Taís, no entanto, é um caminho de descoberta e uma maneira de aproximação com seu estudo. Tanto a sua dissertação de mestrado quanto sua tese de doutorado foi desenvolvida através da teoria do imaginário, sendo na dissertação um modo mais fenomenológico e na tese conjugando a abordagem fenomenológica com a arquetipológica. Ela afirma que muitas pesquisas incluem o termo “imaginário” em seus títulos, temas, palavras-chave, mas sem dar a ele um “status heurístico”, sem levá-lo a sério como caminho de descobertas, sem nem mesmo defini-lo. “Nestes casos, diz ela, e não são raros, a pesquisa acadêmica usa imaginário como uma auto-evidência ou na acepção do senso comum, que separa imaginário de real”. Assim, Ana Taís acha que “perde a pesquisa que faz isso, por falta de rigor, perdem os estudos do imaginário que, mesmo desenvolvendo trabalhos sérios, acabam se desgastando por causa da desse uso pouco preciso que outros trabalhos fazem dos termos compartilhados”. Lembra a rejeição que os estudos do imaginário sofrem no meio acadêmico mais ortodoxo, rejeição esta advinda de questões epistemológicas, já que os estudos do imaginário levam em conta também conhecimentos e métodos não disciplinares ou

transdisciplinares - como o senso comum, a sabedoria tradicional, a intuição, lembra a pesquisadora. “Dizer que uma pesquisa é onerada por esse motivo é expor a dificuldade que a academia ainda tem em considerar a dignidade científica dos aspectos mais sutis da realidade, mesmo cem anos após a demonstração de que a massa é, afinal, uma forma de energia”.

E se o imaginário fosse, então, um termo aceito por todos no meio acadêmico, não perderia sua força? De fato, diz ela: “Gilbert Durand nos ensina que mesmo o mito mais agitador perde seu caráter revolucionário ao se institucionalizar”. Logo, analogamente, continua a professora, pode-se acreditar que no momento em que os estudos do imaginário forem aceitos pacificamente no meio acadêmico perderão seu potencial revelador, pois tudo o que está enquadrado está também enrijecido. Mas ela faz uma ressalva: é a de que se a aceitação se desse por causa de esquematismos reducionistas que a pesquisa sobre imaginário adotasse, sim, haveria a perda total das origens. O mesmo poderia ser dito em relação ao cinema autoral. Uma vez absorvido, tranqüilamente, pelo mercado, não seria mais autoral, porque, por essa definição, um autor é alguém ainda focado na diferença, e não na repetição formulista. No momento, Ana Taís acredita que estejamos em outro ponto dessa trajetória: a necessidade de os estudos do imaginário se afirmarem com rigor e arte, sem desprezar o conhecimento formal acumulado, mas também conduzindo à respeitabilidade outros caminhos de pensamento, em especial o pensamento por imagens, ou seja, o pensamento mítico. “Não se trata de um retorno ao alegado obscurantismo pré-Luzes, à indistinção entre ciência e senso comum, muito menos de uma historicização do mito, mas, isso sim, da produção de um conhecimento que seja também sabedoria”, afirma a professora. É a sabedoria da vida que, por sua vez, o autor experimenta na viagem da expressão que é o seu trabalho, umbilicalmente preso, à existência.

Ana Taís tem uma tese sobre autoria. Para ela, “ao fazer uma profunda viagem interior, afundando-se no subsolo arquetipal, o homem alcança sua origem, e, ao render- se à invariância humana, se esse homem for artista, produzirá as mais singulares obras e com elas tocará a coletividade”. A diferença entre uma de arte e uma obra artística está na criação. “Se o gesto criador não é criativo, não se consuma numa produção diferenciada, dita original, com as marcas de seu autor, ainda assim não deixa de ser um gesto criador e, portanto simbólico: contém significações de mundo”, afirma ela, na esteira de Durand e de Danielle Rocha Pitta. O que Ana Taís analisa reverbera na teoria autoral sob o enfoque de uma sensibilidade. Uma visão autoral, no cinema de Ruy

Guerra, não pode prescindir de uma maneira que o cineasta tem de enfrentar o mundo, e nesse enfrentamento suas armas podem adquirir diversas facetas. Se em Quarup percebe-se uma maneira heróica de enfrentamento da realidade, através do padre Nando, que se transforma em campesino para dar seguimento ao seu trabalho de luta por uma sociedade mais justa, já em Estorvo a estrutura narrativa é outra. O “eu”, protagonista da história, é um ser apolítico. Não existe uma preocupação em salvar o mundo e enfrentar, ideologicamente, a sociedade. O aspecto social em Estorvo tem a ver com a sua realidade pessoal, que, não esqueçamos, sempre tem relação com o coletivo. Só somos de um jeito porque as pessoas são de outro. O autor, se adotasse o que a professora chama de esquematismos reducionistas, talvez não conseguisse mais “autorar”.