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Enquanto preparavam uma hipotética colagem de textos dos autores da época, relatando experiências de cárcere, uma se- gunda obra chegou às mãos de Analy e Izaías: o relato literário de Frei Betto — Batismo de Sangue: os dominicanos e a morte de Carlos Marighella —, atualmente em sua nona edição. Esse livro foi responsável pela determinação de alguns rumos a se- rem seguidos.

No livro de Frei Betto há uma personagem que saiu do plano real para adentrar o ficcional e, involuntariamente, tornar-se peça emblemática na construção da dramaturgia de Lembrar é Resistir. Frei Tito de Alencar Lima foi um dos vários religio- sos encarcerados e submetido a terríveis sevícias pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, um dos maiores carrascos da ditadura. Frei Tito foi libertado em troca do embaixador suíço Ehren- fried von Holleben, juntamente com outros presos políticos, em 11 de junho de 1970, vindo a se exilar na França. Frei Tito não conseguiu jamais superar as sequelas a ele impingidas, sui- cidando-se quatro anos depois.

À medida que Analy ia dando andamento à sua pesquisa, foi percebendo que as personagens com as quais iria compor o painel dramático da peça nasceriam dessas leituras e o seu tra- balho seria ajustá-las ao desenvolvimento da trama. Frei Tito virou um personagem e foi durante esse processo que Izaías lhe passou um livro de sua autoria intitulado Tiradentes: um pre- sídio da ditadura, escrito em parceria com Alípio Freire J. A. de Granville Ponce. Nessa obra, Analy encontrou um referencial

fabuloso de depoimentos testemunhais, como o de Rose No- gueira, que, logo após a primeira leitura, converteu-se igual- mente em personagem de Lembrar é Resistir.

Ainda de acordo com o relato de Analy Alvarez, essas per- sonagens começaram a “dançar” em sua mente, fazendo emer- gir um sem-número de situações e circunstâncias. A partir de Rose Nogueira, brotou-se a ideia de ter uma cela só com mu- lheres, representando o contingente feminino perseguido pela ditadura.

Ao lado da crueza exposta dessas experiências de vida, a au- tora adicionou a poesia de Thiago de Mello, principalmente no poema Iniciação do prisioneiro, em que, na primeira estrofe, ele diz:

É preciso que amor seja a primeira Palavra a ser gravada nesta cela Para servir-me agora de companheira Seja amanhã de quem precise dela [...]

Esse poema foi escrito no dia 21 de novembro de 1965, numa cela do Quartel da Polícia do Exército do Rio de Janeiro, ao qual Thiago de Mello foi recolhido por haver participado de uma manifestação contra a ditadura em frente ao Hotel Glória, no mesmo instante em que ali chegava o Presidente Castelo Bran- co, convidado a inaugurar uma conferência da Organização dos Estados Americanos (OEA). Desse protesto, participaram outros intelectuais de respeito, como Antônio Callado, Jayme de Azeve- do Rodrigues, Carlos Heytor Cony, Márcio Moreira Alves, Flávio Rangel, Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade e Mário Car- neiro, todos eles presos e aos quais foi dedicado o poema citado.

Izaías Almada contribuiu de forma notável, informando detalhes sobre quem eram aquelas pessoas e toda a experiên cia adquirida durante o tempo de convívio com elas. Nilda Maria, atriz convidada desde o início do processo, também tinha ou-

tras tantas histórias de vulto que em muito contribuí ram para a construção dos episódios que compuseram a edição final do texto.

Analy acredita que a primeira versão foi finalizada nos já mencionados 12 dias, mas, mesmo depois da estreia, sempre que se fez necessário, ou sempre que surgiram oportunidades interessantes, novas informações foram agregadas.

O elenco

Segundo Analy Alvarez, pensou-se inicialmente em convidar apenas atores que tinham estado na condição de presidiários, mas todos que possuíam essa passagem em sua história, por razões diversas, não aceitaram o convite. No princípio dos tra- balhos tiveram então que contar com apenas três atores que preenchiam esse requisito: Luiz Serra, Tin Urbinatti e a já cita- da Nilda Maria, perseguidos e encarcerados pelo regime militar da ditadura. A participação dessa última foi muito expressiva, porque, tendo passado muito tempo presa, ainda guardava na memória inacreditáveis recordações dessa época.

Durante o processo de ensaios, Nilda relatava aconteci- mentos significativos, e Analy, assistindo a esses testemunhos, transformava-os em material para construir a dramaturgia fi- nal do espetáculo. A autora faz questão de dizer que muito do texto foi finalizado pelos próprios atores, que colaboravam com sua experiência de vida, e assim foram surgindo vários episó- dios marcantes, como o da “jangada”.

Há uma música de autoria de Dorival Caymi, compositor baiano, muito famosa no repertório da música popular brasi- leira, intitulada Suíte dos Pescadores, que tem seu início di- zendo: “Minha jangada vai sair pro mar, vou trabalhar, meu bem querer [...]” — A música relata o cotidiano dos pescadores do Nordeste, mas, nas celas das prisões, ela era entoada em coro

todas as vezes em que um prisioneiro era solto. A música havia se tornado um hino à liberdade.

Nesses memoráveis 12 dias, atores, autores e diretor, tra- balhando juntos, produziram o material que serviu de matéria prima para a elaboração definitiva do espetáculo.

O elenco da primeira montagem de Lembrar é Resistir era composto por ordem de entrada em cena: Mauro de Almeida, Emerson Caperbat, Pedro Pianzo, Renato Modesto, Norival Ri- zzo, Ia Santos, Nilda Maria, Lourdes de Moraes, Tânia Sekler, Luiz Serra, Luti Angelelli, Tin Urbinatti, Renato Mursa, Fábio Grabarz.