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Muito tempo ainda haverá de passar para que o povo brasileiro e mesmo as modernas democracias do mundo que lhe são con- temporâneas, de modo especial as da América Latina, como nos casos do Uruguai, Argentina, Chile e Bolívia, possam ter des- veladas todas as dimensões do terror que se propaga, tanto na vida política, como no cotidiano dos cidadãos, em decorrência de assaltos ao poder, por frações sociais minoritárias e intole- rantes com a participação cidadã nos seus respectivos Estados nacionais. Tudo se passa nessas ex-colônias como se houvesse ainda latente um certo revanchismo monárquico no sentido de recuperar a ideia de que a lei deve coincidir com a vontade de um poder central.

Estribados em concepções autoritárias do campo da polí- tica, os assaltantes ao poder democrático tentam, a todo cus- to, estabelecer uma ordem excludente que alija da vida política nacional toda e qualquer expressão de autonomia, tanto dos cidadãos, como de suas organizações sociais, reprimindo seve- ramente tudo o que lhe parece ameaçador. Extingue-se a ideia de participação social e passam a prevalecer, como modo de convivência dos cidadãos entre si e deles com as estruturas de gestão da sociedade, as estratégias de controle político e ideo- lógico e de segurança nacional.

Daí em diante, uma vez consumada a tomada do poder, todas as atenções e investimentos do poder público voltam-se

para a defesa e incremento das elites que compõem o bloco do- minante. Todos os anseios dos setores populares e dos oprimi- dos passam a ser tratados como casos de polícia. Não são enca- minhadas medidas de soluções definitivas que possam permitir a superação das desigualdades sociais e muito menos mecanis- mos institucionais que impliquem em rompimento das estru- turas que asseguram a opressão que se abate sobre as grandes massas. A manutenção do estado de carência generalizada da maioria da população permite que ocorram, até certa altura, altos índices de acumulação, ou seja, o país poderá tornar-se rico graças à manutenção de uma população em estado perma- nente de pobreza, aliado a uma dependência crescente de in- vestimentos externos.

Consequentemente, quanto mais duradouro for o período ditatorial, mais profundas serão as marcas deixadas na alma nacional. Todos se tornam vítimas e, simultaneamente, agentes do medo. Assim, as pessoas não precisam necessariamente pas- sar pelos porões dos cárceres, sofrer torturas físicas e receber ameaças de morte para se alinharem à ordem ditatorial, basta apenas que ouçam os relatos sobre os casos que acontecem à sua volta para se precaverem, ainda que essa precaução lhes resulte em dano moral através da concordância silenciosa. As prisões, as torturas e os assassinatos constituem-se, portanto, na face mais visível do terror e, comumente, somente eles compare- cem nas páginas da história. Os atos de autopunição, realizados pelos cidadãos comuns, dificilmente serão tornados públicos e permanecem apenas latentes nos porões da memória dos in- divíduos. Mas são eles que asseguram a perpetuação do medo, que termina por produzir a indiferença aos outros, até que no- vas mobilizações ocorram, a democracia seja reconquistada e as bandeiras pelos ideais de justiça sejam novamente içadas.

No caso brasileiro, paralelamente à interdição dos proces- sos de ampliação da cidadania, através da contenção e mesmo

desmantelamento dos movimentos sociais, sobretudo aqueles constituídos a partir das parcelas mais oprimidas da popula- ção, como no caso das Ligas Camponesas, foi emergindo uma geração indiferente à vida política nacional e profundamente voltada para os seus próprios interesses. Assim, a preocupação com um mundo mais justo, a solidariedade com os mais po- bres, com os excluídos e marginalizados quase que se tornaram coisas do passado, de modo especial no meio das juventudes universitária e estudantil que, em outros tempos, situaram-se entre os setores de vanguarda que mais se destacavam na luta por transformações sociais. São os jovens de hoje e a população da faixa etária abaixo dos 50 anos, portanto, as vítimas tardias do terror que se abateu sobre o Brasil nas décadas de 1960, 1970 e ainda na de 1980, na medida em que se tornaram indiferentes e desmobilizados em relação aos problemas básicos do país.

De fato, considerando-se a grandeza da população brasi- leira, ainda são poucos os cidadãos que se mobilizam em defesa de causas justas, como se evidencia através do estranhamento que se estabelece entre os cidadãos e os que deveriam repre- sentá-los no exercício do poder público. Isso nos faz supor que, junto com a indiferença produzida pelo terror, ainda sobraram também estruturas em nossa ordem institucional capazes de assegurar privilégios das oligarquias e a facilidade de acesso de agentes da corrupção às instâncias legítimas do poder. Embora tenhamos celebrado a conquista de uma nova Constituição, não podemos esquecer que ela foi concebida sob o comando dos que mais se beneficiaram do poderio civil-militar que ainda esta- mos por desmontar. Precisamos aprofundar o nosso processo de democratização, quem sabe através da instauração de uma Assembleia Nacional Constituinte, sem a participação de ne- nhum dos atuais parlamentares.

Retomando as considerações sobre a desmobilização, deve- mos lembrar que as lideranças estudantis até que tentaram reto-

mar a participação nas lutas sociais, através da luta pela anistia dos cassados, presos políticos e exilados, pelas diretas já, con- tudo, não contaram tanto com as suas bases como outrora. Essa indiferença foi-se aprofundando drasticamente desde as cente- nas de prisões de estudantes, oriundos de todos os recantos do Brasil, efetuadas durante o XXX Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), em Ibiúna (SP), em 12 de outubro de 1968, precisamente, dois meses antes do endurecimento do regime com a edição do Ato Institucional (AI) n° 5, baixado em 13 de dezembro de 1968, por acaso ou não, uma sexta-feira. A seguir, ainda no início de 1969, 26 de fevereiro, sob a mesma fúria de caça às bruxas, editou-se o Decreto-Lei 477, também chamado o AI 5 das universidades. Com base nesse decreto, foram cassa- dos estudantes, professores e técnicos de universidades públicas acusados de atividades subversivas. O decreto n° 477 somente foi revogado 10 anos depois, com a Lei nº 6.680, de 1979, também chamada Lei da Anistia.

O 477, como era popularmente conhecido nos meus tempos de universitário, passou a ser como uma densa e ameaçadora sombra que pairava sobre todos nós, estudantes, professores e técnicos das universidades. Cada um de nós passou a temer por tudo que dizia em voz alta em qualquer ambiente públi- co. Várias pessoas passaram a selecionar até mesmo as pessoas com as quais se relacionar e, mesmo assim, nada de anotações em agendas de endereços, diários, correspondências confiden- ciais, que, aliás, caíram de moda, pois tudo isso poderia servir de libelo contra você caso viessem a cair nas mãos dos “tiras” — como eram chamados os agentes secretos do regime. Assim se estabeleceu um clima generalizado de medo, onde todos eram mutuamente suspeitos. Um ícone fiel dessa situação foi cons- truído por uma parceria entre Chico Buarque e Francis Hime, que resultou na canção Meu Caro Amigo:

Meu caro amigo me perdoe, por favor Se eu não lhe faço uma visita Mas como agora apareceu um portador Mando notícias nessa fita Aqui na terra tão jogando futebol Tem muito samba, muito choro e rock’n’roll Uns dias chove, noutros dias bate o sol Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta

Muita mutreta pra levar a situação Que a gente vai levando de teimoso e de pirraça E a gente vai tomando que também sem a cachaça Ninguém segura esse rojão

(BUARQUE, 1976)

Daí em diante, cada um de nós era informado, com rela- tiva frequência, que na sua faculdade alguém havia sido preso ou desaparecido e que talvez a próxima vítima poderia ser você próprio. Ter o seu nome e o seu endereço na agenda de alguém que “caíra”, como se dizia a respeito de alguém que tivesse sido preso, era, de fato, algo muito perigoso, pois isso poderia levar você a ser acompanhado de perto pelos agentes de segurança do regime e, eventualmente, até mesmo ser convocado a prestar declarações ou sofrer reveses mais pesados.

Assim, diante das notícias recebidas, todos nós nos vía- mos, ouvíamos e, premonitoriamente, já nos imaginávamos na própria câmara de tortura da qual costumeiramente ouvíamos falar. Todas essas pavorosas sensações eram constantemente retroalimentadas pelas notícias de que professores renomados pela sua visão crítica de país e de mundo, cujos escritos eram de leitura obrigatória por todos os que almejavam um país autôno- mo e independente, foram sumariamente cassados, compulso- riamente aposentados, presos ou submetidos a inquéritos poli- ciais militares, os populares IPMs, de triste memória, e muitos outros exilados.

Do mesmo modo, púnhamo-nos todos de quarentena, na contundente expressão de Chico Buarque, quando sabíamos das prisões arbitrárias e dos suplícios aos quais eram subme- tidos nossos colegas presos. As vítimas não tinham para quem apelar, todas as garantias cidadãs, conquistadas através de lutas heroicas ao longo da história, foram suprimidas. Familiares e amigos pouco podiam fazer pelos presos. Era comum, no en- tanto, ouvir-se a ponderação: “mas quem mandou ele ou ela envolver-se com essas coisas?” Desse modo, nos acostumamos com a ideia de que a culpa era da vítima, e não do regime que suprimiu a democracia do país.

Para mim, portanto, dentre as mais diversas expressões do terror instalado no país, duas delas me pareceram mais impres- sionantes e de profundas consequências sociais e políticas: a instalação da autocensura e a delação “voluntária”, aquela que não foi conseguida na tortura, mas por oportunismo, carreiris- mo e mesmo bajulação. Essas duas atitudes não foram resultan- tes de decretos, mas foram assumidas socialmente como se o tivessem sido, como estratégia de sobrevivência. Ninguém dis- se que era para ser assim, mas todos entendiam que o era. Por fim, uma vez que não houve a institucionalização formal delas, autocensura e a delação, também não houve a sua revogação. Restou, portanto, a cargo de cada sujeito, a elaboração interior da superação ou da assimilação permanente delas.