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Meus anos de exílio foram doces, com uma trava amarga, era uma moça alegre sobre um fundo de angústia. Tive vagas ideias de suicídio. A incerteza em relação ao futuro, como ia ganhar minha vida, me deixava insegura. Uma ideia obsessi- va me atravessava o espírito: se meus pais adoecessem, mor- ressem, não poderia vir. Eles não eram velhos, não sei por que temia tanto que isso acontecesse. Minhas irmãs já estavam ca- sadas, antes de minha partida; meus irmãos se casaram, vários sobrinhos nasceram, um deles recebeu o nome de Flávio, em homenagem àquele que era, à época, oficialmente, meu noivo. Escrevia uma carta por semana, não telefonava nunca, era caro demais para o meu orçamento. Nem sempre respondiam às mi- nhas cartas com a presteza desejada. Quando viajava, mandava cartões postais. Às vezes, fotografias. Recebia, também, fotos dos bebês que nasciam ou faziam aniversário.

Ao mesmo tempo, aos 23 anos tudo é possível, o mundo está aberto para você, é fácil fazer amigos, passear, rir. O Instituto tinha uns 30 estudantes, na maioria rapazes, vindos dos quatro cantos do mundo. As meninas eram em número pequeno: Pat (americana), Karola (alemã), Roberta (italiana), Dorte (dina- marquesa), Younghee (coreana) e eu. Com Pat e Roberta fui a Roma no Natal, na Fiat cinquecento da Roberta, um carro mi- núsculo. As malas iam no teto do carro. Na volta, nevava muito, elas ficaram cobertas de neve.

Minha melhor amiga foi a Younghee. Ela cozinhava arroz e enrolava em algas. Foi a primeira vez que vi algas, comi e es- tranhei um pouco, acabei gostando. A família dela tinha dei- xado a Coreia por problemas políticos também, o cunhado fora condenado à morte; o pai dela, com muito dinheiro, conseguira a liberdade para o genro e o exílio para todos. Younghee tinha ido para os Estados Unidos, adolescente. Em Nice, ela namorava

um francês, embora soubesse que sua família só aceitaria que ela se casasse com um asiático, jamais com um ocidental. Ao voltar para os Estados Unidos, casou-se com um chinês, com quem se comunicava em inglês. Ela considerava que ter um ma- rido coreano seria insuportável, porque na língua coreana ficava patente a subalternidade da mulher, até no uso dos pronomes pessoais. Mantivemos uma correspondência até o início dos anos 1980. Quando meu filho nasceu em 1979, ela mandou uma jardineira OshKosh, de jeans listrado. Outro dia me emocionei vendo meu neto com uma jardineira parecida, da mesma marca.

O Instituto pregava a ideologia federalista, em defesa da união da Europa. Ele tinha sido criado por Alexandre Marc, um judeu russo, nascido em Odessa, que emigrou para a França após a Revolução e se converteu ao cristianismo. Atualmente, esse Instituto tem um programa de Master em Estudos Interna- cionais. Nós, alunos, fomos levados a conhecer Berlim, Estras- burgo (sede do Parlamento Europeu) e Aosta, na Itália, onde funciona o Collège d’Etudes Fédéralistes. Nessas viagens havia seminários, debates, visitas guiadas. Não faltavam passeios e diversões também. Creio que aproveitei muito bem todas essas oportunidades.

A bolsa do Instituto cobria o alojamento na Cidade Univer- sitária, os tíquetes para as refeições e algum argent de poche. Acho que eram 40 francos. Tinha uma pequena poupança com o que havia amealhado com familiares e amigos antes de par- tir. Gastava pouco dinheiro, no máximo tomava um café depois do almoço, sentada no terraço com os amigos. Alguns rapazes europeus tinham carro e nos levavam nos fins de semana para Ventimiglia e San Remo para tomar capuccino, passear ao longo da costa e nas montanhas. Visitávamos as cidadezinhas da re- gião, Eze Village, Vence, Saint-Paul de Vence, Vallauris, Grasse (a capital do perfume), Les Baux de Provence. Durante o Fes- tival de Cannes de 1971 fui de carona com Dorte, várias vezes,

assistir às sessões da tarde. O filme Love Story era um grande sucesso de bilheteria. Vi o ator principal do filme ser barrado na porta do Palais des Festivals porque não apresentou ingresso. Ele se saiu com a clássica frase “Sabe com quem está falando?”. Disse simplesmente: My name is Ryan O’Neal. É claro que en- trou na hora.

Quando acabou o ano escolar 1970-71, trabalhei durante dois meses como garçonete em um restaurante do centro da cidade, morando na mansarda do prédio do restaurante. No fi- nal do primeiro dia tinha os pés em pandarecos, não imaginava que garçom andasse tanto. Aos poucos, eles se acostumaram. O menu fixe custava 8 francos. Almoçávamos e jantávamos no próprio restaurante. Uma das sobremesas era torta de morango. Viciei. Até hoje é minha sobremesa predileta. Entre o almoço e o jantar, nas horas de descanso, ia para a praia. O bronzeado só reforçou minha imagem de typée, ou seja, exótica. Os fregueses me perguntavam se eu era originária das Antilhas. Na época, eu tinha uma vaga ideia do que eram as ilhas da Martinica e da Guadalupe, minha origem presumida pelos franceses. De volta ao Brasil, acabei estudando os autores antilhanos, minha dis- sertação de mestrado na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) foi sobre Aimé Césaire, criador da negritude, ao lado de L.S.Senghor e L.G.Damas. Meu interesse, ainda inconsciente, pelas questões de etnicidade e alteridade, certamente tem sua origem ali, porque senti na pele o que é ser o “Outro”.

Com parte do dinheiro ganho no restaurante, passei duas semanas de férias na Grécia, a última semana na ilha de My- konos. Tudo barato, morando, como se dizia na França, chez l’habitant. Uma boa perspectiva se abria para o novo ano esco- lar: os dirigentes de uma organização de juventude federalista, que eu conhecera no Instituto, decidiram abrir um escritório em Nice. Younghee e eu fomos contratadas para administrar a

filial. Com o pouco que ganhava, dava para tocar a vida. Através desses contatos, viajei para a Holanda e para a Dinamarca.

Nesse meu segundo ano em Nice, fiz uma Maîtrise de Li- teratura Francesa na Universidade de Nice, o que me permitia morar na Cidade Universitária e voltar para o campo da Litera- tura. Escrevi uma dissertação sobre Albert Camus, sob a orien- tação do professor Jean Onimus. Curiosamente, ao longo desses 40 anos, nada publiquei sobre Camus e volto a ele justamente agora, enquanto escrevo este texto; estudo sua obra jornalística no imediato pós-guerra.

Quando terminava minha dissertação, em 1972, recebi uma carta do Flávio, já fora da prisão, com a notícia de que tínhamos sido absolvidos por falta de provas. Eu fora julgada à revelia. Perguntei-lhe se queria ir me encontrar na França. Não quis ou não pôde, não sei, teve de se submeter a tratamentos por cau- sa da tortura. Decidimos, então, de comum acordo, romper. Já tinha licença para pensar em voltar e, no entanto, não voltei. Decidi ir para a Inglaterra morar com o Eric, um inglês de mãe francesa que havia conhecido em Nice e que viria a se tornar meu primeiro marido. Ele conhecia melhor a música brasilei- ra do que eu, inclusive o violão clássico de Turíbio Santos, que se apresentou em Nice em 1972. Sua avó francesa morava em Nice e se tomou de amores por mim, achava que eu tinha os pés no chão. Como ele tinha oferta de emprego na Universida- de de Oxford, como assistente de pesquisa, fui para lá depois da defesa de minha dissertação. Estudei inglês, dei umas aulas particulares de francês para um estudante americano. Li muito. Os dias de inverno eram curtos demais, havia pouco sol. Além de não me adaptar ao clima, não via muitas perspectivas de tra- balho para mim na Inglaterra. Quis voltar, o Eric também esta- va curioso em conhecer o Brasil. A decisão foi tomada.

Fim do exílio, retorno ao país natal, país imaginado, quase mítico, depois dessa longa ausência. Alto risco de decepção de- pois de ter sonhado tanto com a volta.