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A professora universitária

Em 1991 voltei para o Brasil e recuperei uma parte de mim que havia ficado para trás, fiz concurso para a UFF, onde estou até hoje, e este é o último capítulo desta história banal. De certa maneira, estava resgatando a minha história pessoal, fazendo as pazes com meu pai ao entrar para a UFF, universidade que ele amou e trabalhou por toda sua vida.

A essa altura, o Brasil já tinha recuperado o status de país livre, depois de tanto tempo já éramos uma democracia plena, ainda que em processo de amadurecimento. Para mim, esse ano marca minha volta à universidade, que havia sido abandonada desde o fim do mestrado. Nos anos em que estive fora do Brasil, trabalhei em muitos lugares, tive a sorte de sempre ser profes- sora, mas nunca em universidade. A UFF, universidade onde meu pai trabalhou toda sua vida e onde eu não quis estudar, me recebeu de braços abertos, como quem recebe um filho que re- torna. Ou seja, retornei ao lugar onde nunca tinha estado, mas que, sem saber, sempre estive. Mesmo com a forte presença da UFF na minha família, ao longo de toda minha vida, eu não percebi que a UFF estava em mim, de uma forma inimaginável.

Entrei para língua espanhola e literaturas hispânicas e, desde o início, tive que estudar bastante para superar as dificuldades que tantas novas disciplinas apresentavam. Por outro lado, foi um momento de muitos encontros e reencontros. Tive a sorte de fazer parte de uma equipe que me ensinou muito e que, além dos predicados acadêmicos, construí um forte elo acadêmico/afetivo que nos impulsionava e nos motivava como professores, pesqui- sadores e amigos, sempre esbanjando alegria. Junto com Magnó- lia, que tinha sido minha professora desde os tempos do Centro Educacional, pessoa que me havia ensinado a ler García Lorca, André, meu amigo de colégio e de infância, e Marcia, minha nova

companheira, aqueles primeiros anos de trabalho na UFF foram os melhores e os mais produtivos que vivi.

Viajávamos para congressos, estudávamos, líamos os textos uns dos outros e nos criticávamos, tudo dentro de um clima de amizade verdadeira e de respeito mútuo. A alegria de estar jun- tos, de trabalhar em equipe, foi nosso principal ganho. Fomos felizes e sabíamos.

Nossa identidade ideológica e nosso engajamento acadêmi- co creio terem sido os fatores que mais contribuíram para o su- cesso de nosso trabalho. Mais uma vez, as opções e as escolhas traçam os roteiros de nossas vidas e de nossas relações.

O encantamento com a América Latina nos levou a percor- rer diferentes lugares e países em viagens acadêmicas que se transformavam em míticas, de pura descoberta. Viajamos e nos encantamos com o México, ancestral dos astecas e maias, com o Peru de Arguedas e a mágica Machu Pichu, os altos andinos, o Rio da Prata, a Resistência da Argentina e o belo Chile. No Chile, nossa história ganha mais um personagem. No país de Huidobro e Neruda, encontramos nossa mestra Ana Pizarro, cujos livros já tinham me entusiasmado desde os anos do mestrado. Meio sem saber, já tínhamos determinado que ela passaria a integrar o nosso mapa afetivo, cultural, acadêmico da América Latina.

O doutorado na USP consolidou minha carreia acadêmica e, mais uma vez, entendendo a literatura em profundo e inse- parável diálogo com a sociedade e o mundo. Trabalhei com li- teratura e história produzidas por autoras mulheres. Entender o feminismo como ponto de convergência do pensamento oci- dental, aberto às minorias, me levou aos textos de testemunho, tema sobre o qual me dediquei por alguns anos e que, de certa maneira, determina também uma maneira especial de se falar e de se pensar a literatura. Como disse em um texto publicado:

Consoante com os problemas inerentes à lite- ratura testemunho na América Latina, na sua maioria relatos da barbárie das ditaduras, na Eu- ropa, a literatura pós Auschiwitz incorpora di- mensões e intensidades semelhantes que colocam sob os holofotes as relações entre a linguagem e o real. Narrar o inenarrável, contar o inverossímil acarreta um complexo jogo entre o narrador/tes- temunha, seu texto e o público leitor, pois narrar implica em um engajamento moral e ético que tenta preencher os espaços deixados em branco pela historiografia oficial que, portanto, implica em um contar da margem, do não autorizado, tarefa árdua que coloca em confronto, a tragédia e o trauma que significam negação da memória, lado a lado com a tentativa de resgatar a história, por necessidade de sobrevivência e reconstru- ção de uma memória fragmentada pelo mesmo trauma que a gerou. Portanto, narrar, esquecer, lembrar, contar são procedimentos ambíguos em constante luta no interior do sujeito narrador e na exterioridade dos textos testemunho. A me- mória existe ao lado do esquecimento, um com- plementa e alimenta o outro. Para quem conta, a narração combina memória e esquecimento. (REIS, 2009, p. 22)

Da conversa nos corredores ao contato com os alunos, das salas de aulas ao cafezinho, das reuniões intermináveis aos no- vos amigos, das batalhas políticas aos chopes na Cantareira, a nova vida na UFF e o mundo acadêmico transformaram minha vida e ainda me deram um novo sentido de compromisso com a sociedade.

Por esses 23 anos como professora, sendo oito anos como di- retora do Instituto de Letras e, nos últimos quatro anos, à frente

da Diretoria Internacional, junto à outra amiga que a universi- dade me brindou, Adriana, o trabalho na universidade completa a vida sem deixar de lado a poesia. Hoje trabalho com os pro- gramas de internacionalização da universidade, que, no nosso caso, significam sempre projetos de inclusão, seja do ensino de línguas estrangeiras para alunos que nunca tiveram a chance de estar expostos à aprendizagem de língua estrangeira, seja na in- ternacionalização do corpo discente, ajudando a formar cida- dãos com uma formação mais aberta ao mundo atual. O novo papel de gestora pública veio ressalvar minhas escolhas de antes ao colocar em prática algumas ações que ajudam a tornar nossa universidade mais justa, e, por conseguinte, nossa sociedade, ampliando as oportunidades para todos.

Cresci e me formei no Brasil, estudei e trabalho na universi- dade pública. Fiz toda a minha formação, do curso primário ao mestrado, sob o peso da ditadura. Estudei o discurso dos ditado- res, das mulheres, dos presos políticos, das margens em geral.

O cânone e as margens se encontram neste texto, também permeado pela dificuldade e, contraditoriamente, pela vontade de escrever esse relato. Sempre soubemos que as autobiografias eram destinadas aos homens e aos poderosos, todos homens. Às mulheres estava destinada a fala menor, já que essas não ti- nham nada de extraordinário para contar, a partir de suas vidas simples, repletas de histórias sem importância. Não fui presa, não fui torturada. Não fui militante da luta armada. Fui vítima de um tempo que, ainda que sombrio, me permitiu a claridade de poder ler o mundo e a sociedade à minha volta.

Narrar a partir de um norte, neste caso a presença da di- tadura em nossa vida, não foi tarefa fácil, sobretudo porque esse momento de nossa história significou rupturas em todos, muitas dores e perdas. Acho que, passado o momento da di- ficuldade inicial, uma vez começada, a narrativa vem, nasce aos borbotões, como em um jorro. Ao escrever essas páginas,

me emocionei, tive raiva, lembrei de momentos lindos, ines- quecíveis e de outros que não gostaria de me lembrar. Ser ra- cional e tentar contar um tempo e aspectos de uma vida não foi simples, mas agora sinto que poderia começar tudo e con- tar outra vez e com mais detalhes o que contei. São incríveis os mecanismos da memória voluntária ou não, como já fala- va Benjamim. Tive filhos, plantei árvores e escrevi livros, sou professora, sou dona de minhas escolhas e de minhas opções.

Chego ao fim deste relato com a certeza de que a memória é falha e que, ao longo da história, muita coisa foi deixada de lado, outras tantas deveriam estar aqui, mas a memória não as recuperou. Esta é uma narrativa que, como na ficção, obedece a escolhas, voluntárias ou não, mas que tentam desenhar um sujeito que narra bastante próximo do que ele foi, do que ele é, do que ele viveu.

REFERÊNCIAS

HOLLANDA, C. B. Apesar de você. Intérprete: Chico Buarque. In: CHICO BUARQUE. Rio de Janeiro: Phillips, 1970. 1 disco sonoro (33 min 17 s). Lado B, faixa 6 (3 min 58 s).

HOLLANDA, C. B.; HIME, F. Meu caro amigo. Intérprete: Chico Buarque. In: CHICO BUARQUE. Meus caros amigos. Rio de Janeiro: Phonogram/Phillips, 1976. 1 disco sonoro (34 min 12 s). Lado B, faixa 5 (4 min 30s).

JÚNIOR GONZAGA, L. O que é o que é? Intérprete: Luiz Gonzaga Júnior. In: GONZAGA JÚNIOR. Caminhos do Coração. [S. l.]: Emi- Odeon Brasil, 1982. 1 disco sonoro. Lado A, Faixa 1 (4 min 19 s). REIS, L. Conversas ao sul: ensaios sobre literatura e cultura latino- americana. Niterói: EdUFF, 2009.

TEJADA, G. A.; ISELLA, C. Canción com todos. Intérprete: Mercedes Sosa. In: MERCEDES SOSA. El grito de la tierra. [S. l.]: Phillips, 1970. 1 disco sonoro. Lado B, faixa 9.