• Nenhum resultado encontrado

Ser estudante universitário nos anos

Em 1973, já nos corredores do prédio de Letras, na Avenida Chile, outra vez a ditadura cortou o meu caminho, mais do que isso, eu, afinal, tinha saído da redoma utópica ideal em que me tornei adulta, o Centro Educacional. Agora eu já era estudan- te universitária e a história era outra. A sensação de proteção desaparecera junto com a vida de menina sonhadora que dava lugar a uma outra pessoa, de uma certa maneira despreparada para a vida cá fora.

Nos anos anteriores, enquanto eu ainda estava no colégio, a ditadura tinha destruído e acabado com os movimentos estu- dantis, que naqueles momentos se encontravam débeis e deso- rientados. Também já havia declarado guerra aos movimentos clandestinos e à luta armada. A maioria dos líderes estudantis estava presa, exilada ou, pior, desaparecida.

Na UFRJ e em todas as universidades do país, os Diretórios Acadêmicos estavam fechados por lei. A única forma de ex- pressão estudantil era através da arte, que driblava a ditadura. Na Faculdade de Letras da Avenida Chile, fundamos o Seminá- rio Mario de Andrade (SEMA), que, como diz o nome, prestava homenagem a nosso genial escritor. O SEMA tinha existência informal como grêmio cultural e literário. O nome do autor de Macunaíma evocava a liberdade de expressão e a criatividade

naquele momento suspensas e sob controle. Naqueles anos, a censura era absoluta. O famoso Departamento de Censura, em Brasília, cortava trechos de peças de teatro, censurava músi- cas, filmes, jornais e revistas. Na universidade havia um index, ao estilo da Inquisição, que limitava as obras que poderiam ou não ser lidas nos cursos.

Em uma pequena salinha envidraçada no subsolo do Pavi- lhão Lusitano,2 nos reuníamos, discutíamos política e poesia,

organizávamos greves contra a comida do restaurante e man- tínhamos viva, por mais tênue que fosse, a chama da política e das rebeliões estudantis. O espaço da arte e o espaço da política, juntos como em comunhão. Aqui, os jovens estudantes univer- sitários usaram a arte da mesma forma como já vinham fazendo os artistas consagrados e os militantes, ou seja, para burlar a ditadura.

Na década anterior tínhamos assistido a um verdadeiro ter- remoto comportamental, histórico e cultural, que se refletiu na mudança dos hábitos sociais, da música e da política em todo o mundo. Refiro-me aos jovens que naquele momento saíram às ruas de Paris, Nova Iorque, São Francisco e Rio de Janeiro para protestos com motivações muito diferentes entre si. Traziam demandas de origem política de esquerda, bandeiras feministas e de liberdade de opção sexual. Minha geração não tinha vivido nada disso. Fomos formados, durante toda a vida escolar, na ditadura. Estar na universidade trazia o desejo de participação, de ser protagonista, finalmente!

As marchas e passeatas no Rio de Janeiro já não existiam mais, o movimento estudantil estava aplastado, totalmente ar- rasado pela repressão, e o que nos restava era o medo e a imo-

2 O prédio que por décadas abrigou a Faculdade de Letras da UFRJ havia sido o Pavilhão Lusitano, na exposição de Portugal no Rio de Janeiro. Em uma instalação improvisada, a Faculdade de Letras esteve instalada desde 1968 até sua mudan- ça para o Campus do Fundão, em 1985.

bilidade. A aridez de vida política e cultural e a censura fizeram com que proliferassem os grupos de estudo dedicados aos tex- tos marxistas, opção à clandestinidade de um lado e à imobi- lidade por outro. E foi a minha opção. Ler, estudar e conhecer melhor algo que, aparentemente, não parecia ter muito uso di- reto e imediato, mas que ajudaria, sem dúvida, a nos preparar para quando o momento chegasse.

Embora estivesse matriculada no curso de português-li- teraturas, cujo corpus são as literaturas de língua portugue- sa, o que me arrebatou naqueles anos foi a literatura hispano- americana. O terremoto mundial se traduziu no campo literá- rio a partir de inovação da linguagem literária, que surgia quase que simultaneamente em diferentes lugares do subcontinente, concretizado na escrita de jovens escritores como o peruano Mario Vargas Llosa, o argentino Julio Cortázar, o colombiano Gabriel García Márquez, e o mexicano Carlos Fuentes, apenas para citar alguns que me trouxeram a certeza de minha opção. Nos anos de 1967 e 1968 foram lançados os livros que trariam uma onda que fez com que a literatura hispano-americana passasse a ser lida não apenas no próprio continente, fato que também era inédito, mas se transformasse em um fenômeno li- terário sem precedente, que se espalhou pelo mundo inteiro, fenômeno que, posteriormente, seria batizado com o nome de boom da literatura hispano-americana. Em 1967, Gabriel Gar- cía Márquez lançaria Cem anos de solidão, obra emblemática que impulsionou de forma definitiva a literatura produzida ao sul do equador.

A narrativa dos anos 60 propunha opções utópicas e cons- truíram uma imagem também utópica da América. Utopia do desenvolvimento autossuficiente, do socialismo e da revolu- ção, da vontade histórica de desenvolvimento. Um universo autossustentável e desenvolvido. Território de pertencimento e de valores solidários. A literatura que reivindicou voz e ação

contra as ditaduras, contra o capitalismo e pela construção de um espaço utópico ideal. Com Cortázar, García Márquez, Rul- fo, Fuentes, Donoso, Vargas Llosa e muitos outros, a literatura assumiu o papel de instrumento da ação na construção de um espaço utópico e ideal.

Era isso que eu queria fazer, eram esses os textos que eu queria estudar. Nesses primeiros anos da década de 70, a lite- ratura hispano-americana entrava no Brasil e, dessa forma, nos acostumamos a acompanhar as obras dos grandes autores da época, que líamos com sofreguidão, apesar da dificuldade de se conseguir os livros. Tive a sorte de ser de uma geração que leu essa literatura desde suas obras iniciais nos anos 70. Naqueles anos de ditadura, minha geração de jovens estudantes de letras, interessados em literatura latino-americana, se encantava com aquela escrita nova, diferente, fantástica e revolucionária, que tínhamos acesso através dos poucos livros traduzidos no Brasil e, principalmente, através de edições que chegavam da Argen- tina, que fazíamos cópias em xérox, aquelas xeroxes antigas, meio grudentas e caras, para poder ler e usufruir com liberda- de e prazer os mundos extraordinariamente fantásticos que as obras nos abriam.

Naquela década, vivíamos o auge da escrita fantástica de Córtazar e também do realismo mágico, proposto por Carpen- tier, levado ao grau máximo com as obras de García Márquez. Fomos apresentados a Borges, cuja complexidade e fascínio in- trigavam e provocavam aqueles leitores ainda iniciantes, sem a bagagem necessária para compreender aqueles textos, enten- dimento, compreensão que só o tempo seria capaz de nos ofe- recer. Estou falando sobre o momento conhecido por boom da literatura hispano-americana. A literatura dos 70 e a explosão de criatividade na literatura hispânica da época contrastam, contraditoriamente, com um continente que vivia o cotidiano de ditaduras que se alastravam de norte a sul.

Política, medo, resistência, poesia, ditadura, prisões e exí- lio, esses foram os vocábulos que me acompanharam naqueles anos de vida universitária, navegando entre a Avenida Chile e as diversas escolas em que dava aulas em Niterói. Lembro-me da barca todos os dias, a caminhada pela Rua São José na com- panhia do meu amigo inseparável, André Trouche. Resistir era acreditar que era possível ser mais cidadão, mais digno, mudar o Brasil a partir do cotidiano das salas de aula, não ser preso, não ser torturado, sobreviver na corda bamba. As primeiras viagens aos países vizinhos foram nessa época. Conhecer lugares onde ainda havia democracia, como a Venezuela de 1975, era outra experiência nova, que nos levava à utopia de uma América mais livre e mais justa, utopia que vinha embalada nos sonhos do so- cialismo, alentado desde os primeiros anos da década de 1960, com o triunfo da revolução cubana.

A imagem e o som de um show de Mercedes Sosa, em Cara- cas, em 1976, onde, ao final, toda a plateia entoava as palavras de ordem “el Pueblo, unido , jamás será vencido”, ainda me enchem de emoção. Eu nunca tinha tido a chance de gritar esse slogan e esse desejo sempre me acompanhou. E cantei, pela primeira vez, em alto e bom tom, com uma multidão de desco- nhecidos, Canción con todos, imortalizada na voz de Mercedes Sosa:(TEJADA; ISELLA, 1970)

Todas las voces, todas Todas las manos, todas Toda la sangre puede Ser canción en el viento.

¡Canta conmigo, canta Hermano americano Libera tu esperanza Con un grito en la voz!

Terminada a graduação, fui embora do Brasil. Fiz mestrado na Inglaterra, tendo sido aceita no Kings College, o que foi uma vitória e tanto. Mestrado em literatura hispano-americana, vi- ver com pouco dinheiro, dando muitas aulas de português para complementar a renda e, quando possível, viajar pela Europa, conhecer o mundo, voar, como eu havia planejado desde que fui para a UFRJ, atravessando a Baía da Guanabara e me jogando no mundo. A vida de estudante na Europa apresentava mui- to mais dificuldade do que parecia. Nada correspondia ao que o meu imaginário havia forjado nos mais remotos sonhos. Não tínhamos um quarto romântico, com teto de vidro dos artistas do século 19, mas a experiência era incomparável e se tornou inesquecível.