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Do silenciamento à indiferença

Antes de chegarmos à análise do período mais cruento do re- gime que prevaleceu no Brasil entre março de 1964 e 1988, é preciso lembrar que ele resultou de uma poderosa aliança que extrapolava os limites das fronteiras nacionais. Os sujeitos mais visíveis dessa aliança foram os investidores americanos no Bra- sil, que se viam ameaçados pela onda de expropriações deter-

minadas pela pressão de setores nacionalistas nos últimos anos que antecederam à ditadura. Esses investidores contavam com o apoio irrestrito do governo dos Estados Unidos, que chegou a criar vários programas de intervenção e acompanhamento da situação política brasileira, como a Aliança para o Progresso, que se desdobrava em várias ações. Entre elas, estavam a distri- buição gratuita de alimentos, medicamentos e vestimentas às nossas populações mais carentes, sobretudo do Nordeste, com o nome de Alimentos para a Paz; apoio e estímulo a centros de estudos americanos especializados em produzir conhecimen- to sobre o Brasil para uso estratégico da Central de Inteligência Americana (CIA), programa de cooperação militar que previa inclusive o deslocamento de contingentes militares para o Bra- sil em caso de eclosão de uma nova revolução de caráter socia- lista. (SKIDMORE, 1982; 1988)

De triste memória, deve ainda ser lembrado, devido à sua extensão em todo território nacional, a presença do Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), que foi alvo de uma ampla investigação por parte do Congresso Nacional e, uma vez constatada a sua intromissão junto a vários setores da vida nacional, foi fechado nacionalmente por decreto do presidente João Goulart. Nos anos que se seguiram a 1964, essa relação es- tratégica dos Estados Unidos com o Brasil se aprofundou, como o evidenciam os acordos bilaterais em relação às nossas uni- versidades, que se tornaram conhecidos depois como o acordo Ministério da Educação−United States Agency for International Development (MEC-Usaid), presença ostensiva dos Voluntá- rios da Paz — Peace Corps, que se espalharam em larga escala pelo interior do Nordeste, além de outras ações ditas “humani- tárias”. (PAGE, 1972)

Do lado brasileiro, por sua vez, integravam e davam des- dobramento às ações da aliança dentro do país setores conser- vadores da política nacional ligados, sobretudo, às oligarquias

rurais, a exemplo de Magalhães Pinto, Bilac Pinto, Carlos Lacer- da e outros. Integrando também as hostes civis, estavam inte- lectuais conservadores, principalmente no campo da economia e da ciência política, tais como, entre muitos outros, Roberto Campos e Vamireh Chacon. No entanto, a parte mais efetiva no sentido de implementar o projeto de implosão da democracia nascente com a participação dos movimentos sociais, intelec- tuais alinhados ao pensamento crítico, estudantes, operários e trabalhadores de várias outras categorias (IANNI, 1975) foram os militares, que, através de suas ações de violência, tornaram- se mais visíveis na cena política brasileira, ao ponto de, muitas vezes, deixar na sombra da memória nacional a presença dos dois outros setores: os civis conservadores e os interesses norte -americanos — embora a ditadura dos anos 60 a 80 tenha sido ao mesmo tempo militar e civil.

Com a vigência do AI 5 e do 477, além das prisões e sumi- ços que já vinham ocorrendo desde que se instalou o governo militar, professores e intelectuais dentre os mais brilhantes da época foram postos para fora do convívio universitário. Toda- via, muitos deles foram acolhidos por universidades estrangei- ras, outros constituíram centros de estudos importantes, como foi o caso do Centro Brasileiro Análise Planejamento (CEBRAP), criado em 1969 e do qual fizeram parte, inicialmente, pesqui- sadores e estudiosos, como Boris Fausto, Cândido Procópio Ferreira de Camargo, Carlos Estevam Martins, Elza Berquó, Fernando Henrique Cardoso, Francisco Weffort, Francisco de Oliveira, José Arthur Giannotti, José Reginaldo Prandi, Juarez Brandão Lopes, Leôncio Martins Rodrigues, Luciano Martins, Octavio Ianni, Paul Singer e Roberto Schwarz.

Nesse período também surgiram várias revistas, tabloi- des — também chamados de “imprensa nanica” — e editoras que buscaram levantar a alma nacional e manter acesa, ainda que tenuamente, a esperança, pois, como disse mais uma vez o

poeta Chico Buarque, “apesar de você, amanhã há de ser outro dia”. A esse respeito, inicialmente, merece destaque a edição semanal do jornal Opinião, pela sua maior visibilidade no seio da juventude e dos setores ligados ao pensamento crítico. Ain- da no início da retomada da resistência, merecem também des- taque a Revista Argumento, o empreendimento editorial das editoras Paz e Terra, Civilização Brasileira, Brasiliense, Vozes e Zahar, sob liderança de Fernando Gasparian, Ênio da Silveira, Moacir Félix, que se nutriam da produção intelectual dos ex- poentes já mencionados acima, além de Celso Furtado, Flores- tan Fernandes, Antônio Callado, Octávio Ianni, Francisco de Oliveira, Carlos Nelson Coutinho, Caio Pardo Júnior, Werneck Sodré, Josué de Castro, Oscar Niemeyer e muitos outros, cujo elenco está a merecer um tratamento tanto memorialístico como analítico-interpretativo, pois eles, de fato, começaram a nos ajudar a conhecer o Brasil, rompendo com os paradigmas etnocêntricos. Se a memória não me falha, embora a censura política estivesse sempre fortemente ativa contra os espetácu- los, filmes e jornais desde o início da ditadura, em relação aos livros ela somente vai tornar-se mais ativa depois que a Junta Militar assumiu o governo, entre 1969 e 1971, recrudescendo ainda mais o regime, dando sequência ao que se costumou cha- mar de governo da Linha Dura, expressando, dessa forma, as contradições entre os próprios militares e seus aliados.

Outro aspecto a ser lembrado em relação à mutilação da vida acadêmica do país foi a implantação da disciplina Estudo dos Problemas Brasileiros, obrigatória para todos os cursos. Incial- mente era ministrada pelo rádio, pela televisão e pelos jornais nos finais de semana e, mais tarde, vencidas as resistências dos professores e estudantes no âmbito das universidades, passou a ser lecionada nas próprias salas de aula por professores e inte- lectuais que gozavam da confiança do regime. Ninguém se gra- duava sem a comprovação de aproveitamento nessa disciplina.

Na verdade, ela foi pensada com o propósito de substituir nos corações e mentes da juventude o conteúdo crítico transmitido pelos intelectuais cassados e punidos pelo Decreto-Lei n° 477.

Outra maneira de oferecer formação alternativa ou com- plementar àquela prestada pelas universidades públicas foi o Projeto Rondon, que consistia em promover estágios de férias para estudantes universitários supervisionados por agentes do regime em áreas críticas do país, marcadas pela pobreza, pelo isolamento geográfico e pelas precárias condições de vida da população. Esse silenciamento produzido nas hostes universi- tárias e letradas do país estendeu-se profundamente também à população, em geral através do reforço ostensivo por parte do governo às telecomunicações. Definitivamente, o país entrara na era dos satélites. Sob o comando do Conselho de Segurança Nacional, do Ministério das Comunicações e da Assessoria Es- pecial de Relações Públicas, criada em 1968 e particularmente destinada a produzir a propaganda da imagem da ditadura jun- to à opinião pública, montou-se um poderoso arsenal de pro- dução midiática e de contrainformação a serviço do regime.

Nesse sentido, foi desenvolvido um volume bastante expres- sivo de ações que iam desde a produção ideológica dos sentidos a serem disseminados através da propaganda em todos os meios de comunicação, inclusive no cinema, passando pela liberação de generosas contas publicitárias para os jornais, revistas e ca- deias de rádio e televisão adeptos do Regime e de maior alcance social, até o forte estímulo, em termos de concessões, inclusive financeiras, a cadeias de rádio e televisão, como foi o caso so- bejamente conhecido da Rede Globo. No entanto, aos Festivais de Música Popular da TV Record, com o suporte desse arsenal político-ideológico, foram opostos outros eventos e programas que conseguiram, aos poucos, dividir a atenção dos jovens.

Dentre as diversas perspectivas que se abriram para a juven- tude, destacaram-se duas, como a liderada pela Jovem Guarda,

cuja produção musical era mais descolada da realidade social e mais voltada para os novos costumes da época, inclusive com melodias e letras sentimentais; e a outra permaneceu nos festi- vais — a chamada esquerda festiva — e em outros eventos cul- turais, como os promovidos pelo Teatro de Arena, os debates do Teatro João Caetano e mesmo montagens das tragédias gre- gas por grandes expoentes das artes cênicas. Ainda à esquerda, uma perspectiva assumida por um seleto grupo de militantes foi a da luta armada, motivada pelos ventos revolucionários que ainda sopravam sobre a América Latina.

Todavia, tanto uns quanto outros, à direita e à esquerda, deram início a uma verdadeira revolução nos costumes, como bem registrou Zuenir Ventura em seu livro 1968: O ano que não terminou. Assim se expressa o autor:

Foi o ano em que experimentamos todos os li- mites — lembra-se Cesinha — em que as moças começaram a tomar pílula, que sentamos na Rio Branco, que fomos para as portas das fábricas, que redefinimos os padrões de comportamento. Parte dessa geração queria trazer a política para o comportamento, e parte queria levar o compor- tamento para a política. (VENTURA, 1988, p. 31) Para consumar o silenciamento imposto ao país, imprimiu- se uma ferrenha censura aos jornais, não apenas aos da impren- sa alternativa, mas inclusive aos jornais tradicionais. Alguns tabloides da imprensa nanica somente podiam ser impressos depois de terem passado pela censura da Polícia Federal, em Brasília, como foi o caso do Jornal Movimento. Os demais cor- riam o risco de serem apreendidos já nas bancas ou arrancados das mãos dos adeptos que se encarregavam da distribuição jun- to aos leitores. O caso do jornal O Estado de São Paulo foi em- blemático, pois os censores foram colocados dentro da própria

redação desde que a direção do jornal recusou-se a retirar da edição do 13 de dezembro de 1968 — o dia em que foi baixado o Ato Institucional n° 5 — o editorial intitulado “Instituições em Frangalhos” e a coluna “Notas e Informações”. Para que as pá- ginas não saíssem estampando o claro das matérias censuradas, o jornal passou a publicar nesses vagos, ao longo de sete anos, trechos de Os Lusíadas. A censura ao jornal somente foi sus- pensa em 1975 por ocasião da celebração do seu centenário.

Do mesmo modo, sofreu censura prévia o jornal O São Pau- lo, órgão da Arquidiocese de São Paulo entre os anos de 1971 a 1978, por haver denunciado torturas e prisões. Segundo depoi- mento de Dom Angélico à Comissão da Verdade, foram obri- gados a enviar semanalmente todos os textos, fotos e vinhetas. Também não podiam deixar em branco os espaços deixados va- gos pelos censores, os quais eram preenchidos com anúncios “Leia e divulgue O São Paulo”. Também chegaram a circular duas edições falsas de O São Paulo, uma delas com uma foto de Dom Paulo Evaristo Arns, na capa, pedindo perdão por haver denunciado prisões e torturas. Já no final da ditadura, também foi criado o jornal Grita Povo, entre 1978 e 1981, na comunidade de São Miguel Paulista.