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O dia era 28 de agosto de 1999. Uma sexta-feira. Para a noi- te da estreia havia um público composto por convidados que não excedia o número de, aproximadamente, 25 pessoas. Além de Marcos Mendonça, Secretário de Estado da Cultura, e Beli- sário Santos Junior, Secretário de Estado da Justiça, estiveram presentes Eduardo Suplicy, Senador da República pelo Estado de São Paulo; José Genoíno, Deputado Federal; Lélia Abramo, atriz; Ruth Escobar, atriz e produtora teatral internacional, e

outras personalidades ilustres. Uma dessas celebridades, digna de nota, foi Don Paulo Evaristo Arns, Cardeal Arcebispo de São Paulo, que havia se destacado como um fervoroso defensor dos direitos humanos e especialmente preocupado com a causa dos presos políticos.

Durante a operação de limpeza que foi realizada no local, encontraram também alguns pequenos bancos individuais que foram separados para atender às pessoas de idade ou portado- ras de necessidades especiais. Um desses bancos foi reservado para Don Paulo, que, educadamente, recusou, preferindo per- manecer em pé como os demais convidados.

O espetáculo de abertura da temporada foi contundente e sensibilizou de forma notável todo o público presente. Ruth Escobar, que tinha participado intensamente na campanha de libertação de inúmeros presos políticos, principalmente os da classe teatral, sentiu-se mal e foi obrigada a retirar-se antes do final da representação.

Em seguida à apresentação da montagem foi servido um coquetel, mas o espetáculo era tão contundente que as pessoas não se sentiam à vontade para comer.

Nessa noite, em particular, não houve nenhum comentário de desaprovação e todos foram unânimes em afirmar o quanto o espetáculo era importante para o cenário artístico paulista e que, pela primeira vez, o teatro brasileiro emitia sua opinião a respeito das arbitrariedades praticadas pela ditadura militar.

A emoção estava presente e visível no semblante de cada um dos espectadores, que não pouparam elogios a toda a equipe, desde os autores, passando pelo diretor, detendo-se no cui- dadoso trabalho de construção das personagens realizado por cada um dos atores. Os aplausos estendiam-se também aos técnicos envolvidos com a produção, comprovando que para a execução daquela obra havia existido um espírito ímpar de co- laboração e solidariedade.

A temporada

A publicidade espalhou-se rapidamente por meio do boca a boca e, durante todo o tempo em que esteve em cartaz, Lem- brar é Resistir nunca teve menos do que casa lotada. O caráter itinerante do espetáculo, apoiado pela interatividade estabele- cida com o público, foi alguns dos fatores contribuintes para o êxito da representação.

Os espectadores, assim que chegavam, deviam preencher uma ficha cadastral com seus dados pessoais, como se estives- sem passando pela triagem de uma delegacia de polícia. Alguns reagiam negativamente, mas essa era uma condição irrefutável para que se pudesse assistir ao espetáculo. Impressões digitais eram colhidas e esses dois fatores pesavam de forma notável para colocar o público no clima da representação.

O espetáculo não recorria em nenhum momento à repre- sentação explícita da violência praticada contra os prisioneiros. Apenas os seus efeitos eram expostos de forma tocante. Nunca houve a intenção de sensibilizar o público valendo-se de uma reprodução teatral das atrocidades cometidas. O intuito maior era acordar nos espectadores a consciência de que conhecer a história é a forma mais eficaz de evitar que ela se repita.

Em princípio, as pessoas que compunham a plateia eram curiosos e interessados em teatro, mas, logo em seguida, o es- petáculo foi descoberto, espontaneamente, pelo público jovem, principalmente os alunos dos muitos cursos pré-vestibulares que existem na capital de São Paulo. Sem que isso fizesse parte dos planos da equipe de criação responsável por Lembrar é Re- sistir, a peça havia se tornado matéria discutida em sala de aula e recomendada pelos professores de História, Sociologia e Arte Contemporânea.

Os alunos vinham em grupos, e as escolas se responsabi- lizavam pela reserva dos ingressos, que deveria ser feita com bastante antecedência, já que a demanda era grande.

Quando do início dos trabalhos, Silnei Siqueira, o diretor, imaginou que naquele espaço não poderiam caber mais de 15 pessoas, mas como se tratava de um evento comemorativo e de curta duração, isso não representaria nenhum problema. Uma vez festejados os 20 anos da Lei da Anistia e tendo atingido o público-alvo interessado, o espetáculo seria retirado de cartaz após um prazo imaginário que girava em torno de um mês.

Ocorre que, logo na estreia, esse número foi excedido e a solicitação das escolas aumentou espantosamente, implican- do na permanência do espetáculo enquanto houvesse públi- co. Diante do interesse crescente, o limite de espectadores foi aumentado para 50 pessoas e, ainda assim, havia um número expressivo que voltava diariamente sem conseguir entrar. As escolas insistiam em mandar cada vez mais alunos e, mais uma vez, a quantidade de espectadores foi aumentada para 70, ten- do aí atingido o seu limite máximo.

Frei Beto, autor já citado do livro Batismo de Sangue, com- pareceu uma noite acompanhado da atriz Cássia Kiss, que, na- quele momento estava morando no estado de Minas Gerais. Frei Beto fez questão que sua amiga viesse, pois sabia que o assunto iria lhe interessar sobremaneira. Sábato Magaldi, importante crítico teatral de São Paulo e membro da Academia Brasileira de Letras, esteve presente e fez questão de divulgar o espetáculo junto aos seus amigos mais íntimos. Uma dessas pessoas foi o diretor Augusto Boal, preso e exilado pela ditadura. Boal, fun- dador do Teatro de Arena em São Paulo, criador do Sistema Co- ringa, autor de vários livros sobre o fazer teatral, sendo talvez o mais importante deles o Teatro do Oprimido, atendeu ao con- vite de Sábato, veio do Rio de Janeiro e conferiu a montagem do espetáculo. Luis Inácio Lula da Silva, na época Deputado Fede-

ral e, posteriormente, Presidente do Brasil de 2003 a 2011, com- pareceu para prestigiar a montagem. Marcou presença também o vice-governador do estado de São Paulo, Geraldo Alckmin, que, na ocasião, representava o governador Mário Covas, que já se encontrava enfermo, vindo a falecer posteriormente.

O espetáculo teve a sua temporada dividida em duas fases distintas: a primeira, com o elenco original que estreou a mon- tagem, e uma segunda, com as substituições que se fizeram ne- cessárias. Estreado em 1999 e permanecendo à disposição do público até 2001, sempre com ingressos gratuitos, realizando 6 sessões semanais, calcula-se que a encenação tenha sido assis- tida por aproximadamente 35 mil espectadores.

Quando se chegou ao final da primeira temporada, os en- volvidos perceberam que o espetáculo lhes pertencia por com- pleto e esse caráter de propriedade nunca foi contestado. Auto- ra, diretor, atores, técnicos e demais participantes sentiam-se como agentes criadores da encenação, que lhes conferia esse sentimento de propriedade em relação à obra final.

A Secretaria de Estado da Cultura nunca interferiu na rotina do espetáculo e só manifestou-se contrária à sua permanência quando priorizou uma reforma geral em todo o edifício, para que, posteriormente, abrigasse um centro cultural. Infeliz- mente, esse projeto não saiu do papel. Os arquitetos que assi- navam a transformação do edifício constataram que o mesmo não possuía fundações suficientemente fortes que sustentas- sem uma reforma desse nível.

A repercussão

Lembrar é Resistir, mesmo tendo ficado dois anos em cartaz, foi visto por poucos representantes da classe teatral paulis- tana. Razões para isso são difíceis de serem avaliadas. Alguns acreditam que o desinteresse se devia ao fato de que o tema era

desagradável e o assunto merecia ser esquecido. Há outros que entendem que a montagem deixou de ser vista porque, ofe- recendo ingressos gratuitos, havia sempre uma grande fila de interessados e, com isso, os colegas da classe sentiam-se des- motivados.

Existe também uma terceira vertente, que entende que o espetáculo não alcançou a devida repercussão porque havia sido idealizado e produzido sob a égide o Partido da Social De- mocracia Brasileira (PSDB). É necessário destacar que o PSDB havia perdido grande parte da sua força contestatória quando se tornou situação e passou a ter como opositor o Partido dos Trabalhadores (PT) no estado de São Paulo. Apesar do PSDB ter nascido do antigo Partido do Movimento Democrático Brasi- leiro (PMDB), único partido de oposição ao governo militar da ditadura, tendo como antagonista apenas a Aliança Renovadora Nacional (ARENA), o PT entendia que aquela era uma questão que só a ele dizia respeito, pois havia se filiado ao PT a grande maioria dos presos políticos e perseguidos pela repressão mili- tar. A classe teatral sempre fora simpática aos propósitos do PT desde a sua fundação, e daí, talvez, essa posição refratária em relação ao texto de Analy Alvarez e Izaías Almada e ao espetá- culo de Silnei Siqueira.

Como observador, entendo que o espetáculo tinha um al- cance muito mais vertical, mergulhando fundo no âmbito dos direitos humanos, sem levantar estandarte de nenhuma espé- cie. O que se discutia e se apresentava ao público como ponto para futuras reflexões era o que havia ocorrido nos subterrâneos dos quartéis e dos presídios, sem que, na época, isso pudesse ter sido levado ao conhecimento do público pela mídia. Divulgar o horror dos anos de chumbo e das atrocidades cometidas era o objetivo maior da equipe de produção do espetáculo, buscando, inclusive, que se mantivesse viva a memória desses tristes fatos, visando evitar que voltem a se repetir.

Até hoje se lamenta que o espetáculo tenha sido ignorado pelos companheiros da mesma categoria, mas nomes ilustres e significativos na cultura brasileira estiveram presentes e fi- zeram questão de hipotecar seu apoio, sublinhando a impor- tância da montagem e suas qualidades artísticas. Renata Pal- lottini (dramaturga), Maria Bonomi (artista plástica), Jefferson del Rios (crítico teatral) foram algumas dessas pessoas que se emocionaram com o discurso de Lembrar é Resistir.

Os idealizadores da proposta pensavam, no início da tem- porada, que a montagem despertaria as atenções das pessoas que tinham vivido naquela época e ainda possuíam, guarda- do na memória, o registro das passagens mais contundentes. Certamente esse público compareceu, assim como muitos dos que estiveram atrás das grades durante o regime militar, mas a grande surpresa foi descobrir que Lembrar é Resistir interes- sava sobremaneira ao público jovem, cuja faixa de idade variava entre os 18 e 25 anos.

A razão para esse interesse se deve consideravelmente ao fato de que o período mais terrível da ditadura militar ainda está sendo desvendado e, infelizmente, sabemos que muitas coisas abomináveis ainda estão para vir à tona. Os jovens não passa- ram por esses instantes, e as páginas da história estudadas nos livros escolares não se detêm o suficiente nesse triste capítulo da nossa trajetória política. Acreditamos que por ser um espe- táculo inovador, de caráter documentário, valendo-se de um local real como cenário, para falar de pessoas reais que haviam passado por lá e voltaram anos depois, como artistas, revivendo aquela monstruosa barbárie, Lembrar é Resistir cumpria junto aos jovens a função de esclarecer alguns aspectos do passado recente do país.

O deslocamento dos espectadores, o trânsito por entre as celas e a proximidade com os atores proporcionavam uma in- teratividade contundente. Luiz Serra, um dos atores que esteve

no elenco desde a primeira representação até a última, vivendo o papel de um velho comunista recolhido à prisão por sua ideo- logia contrária ao regime, recorda-se de uma passagem mar- cante ocorrida em uma das representações:

Houve um dia em que eu já estava chegando ao fim da minha cena e, obedecendo à marcação, me dirigi para o fundo da cela, junto à parede, e, exa- tamente como havia sido ensaiado, falei o meu texto final, acendi uma vela e comecei a assobiar A Internacional. Inesperadamente, algumas pes- soas do público começaram a cantar junto comi- go e, antes de chegar ao fim, tive a impressão de que todo o público cantava a uma só voz. (Infor- mação verbal)