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Lembrar de Lembrar é Resistir

A autora Analy Alvarez afirma que esse texto, assim como a sua montagem, representa uma das coisas mais importantes que já produziu enquanto artista. Ter entrado em contato com um tema assim tão delicado quanto terrível abriu-lhe novas possi- bilidades, dando início a uma pesquisa que 15 anos depois ainda não se extinguiu.

História dos Porões é um segundo texto teatral nascido a partir dos levantamentos dessa investigação. A história recen- te desse regime absolutista e seus reflexos na cultura brasileira apresentam-se como uma fonte inesgotável que acorda nos es- tudiosos o desejo de se aprofundar sempre mais.

Apesar de nunca ter sido publicado, Lembrar é Resistir ha- bita a memória daqueles que tiveram a oportunidade de vê-lo convertido em espetáculo como uma das experiências artísticas mais contundentes e marcantes de suas vidas.

Luiz Serra, ator do espetáculo, também aponta Lembrar é Resistir como um trabalho relevante em sua carreira. Serra, como é conhecido, ficou encarcerado apenas alguns poucos dias, incomparáveis perto dos longos períodos de detenção de outros tantos presos políticos. Ele também não chegou a ser submetido a torturas e o seu contato com as autoridades militares que se encarregavam das investigações não foi além de um interroga- tório formal. Ainda assim, mesmo tendo saído ileso, recuperar esses momentos por meio do espetáculo veio a se constituir em uma experiência artística das mais gratificantes.

Neusa Velasco, outra atriz da montagem, concorda com seus colegas e não hesita em declarar que ter participado dessa mon- tagem ganhou o significado de um divisor de águas, não apenas em sua carreira como profissional do teatro, como também na sua vida particular. Sua personagem, a esposa de Fiel Filho, exis- tia para dar corpo a todos aqueles que não resistiram às torturas e cederam diante do terror provocado pelos inquisidores. Ter en- tregue o marido se transforma em uma culpa da qual aquela mu- lher jamais se libertaria. São palavras de Neusa Velasco: “Depois de ter participado de Lembrar é Resistir, eu me reinventei como atriz e isso me levou a me reinventar como pessoa”.

Nilda Maria, a única atriz que esteve encarcerada, demons- trou extrema coragem ao aceitar esse trabalho. Ter voltado ao espaço onde passou mais de seis meses detida foi a maior prova desse seu destemor. Em um dos espetáculos, durante a repre- sentação, ela identificou no meio do público um pequeno grupo composto por quatro mulheres que haviam sido suas colegas de cela. A emoção foi tanta que quase a impediu de chegar ao fim do espetáculo.

Em depoimento à revista Isto é, Nilda Maria Toniolo afir- ma que foi muito difícil para seus filhos a verem encenar a peça Lembrar é Resistir: “Ficou uma marca, uma dor quase tão grande nos meus filhos, quanto a de quem passou por tudo aquilo. Ver que sua mãe foi espancada não é fácil. Houve um envolvimento brutal. Um passou mal. Cheguei até a pensar se tinha feito certo ou não”.

Um espetáculo teatral não tem força para modificar um pa- norama político que nos envergonha e rejeitamos determinan- temente. Mas por meio de cada um dos espectadores que recebe a mensagem de indignação e revolta, é possível construir uma escada de agentes multiplicadores que, devidamente conscien- tizados, transformam-se em uma legião em permanente estado de alerta, que se manifesta vibrante frente às hipotéticas amea- ças de que essa mesma história venha a se repetir.

O passado não se apaga, porque a história perpetuou-o na pele dos que lutaram para defender os princípios democráticos e assegurar um mínimo de liberdade para que se façam ouvir as vozes dissonantes. A arte não tem o poder de modificar um sistema político, mas pela sua óptica é possível torná-lo mais legível para os que não conseguem compreendê-lo em sua to- talidade. Quando uma manifestação artística traz luz aos olhos daqueles que ainda não haviam conseguido divisar a escura realidade, estamos certos de que, nesse instante, ela cumpriu a sua mais importante função.

Lembrar é Resistir recupera o passado cujo eco ainda as- sombra nossos ouvidos e atua como medida preventiva para que situações semelhantes não voltem a se repetir em nenhu- ma das instâncias deste país. Todos os que se envolveram com essa montagem tinham consciência de que o espetáculo não havia sido criado para apresentar soluções e nem mesmo apon- tar culpados individualmente, já que o grande monstro era, na

verdade, a própria ditadura, e os seus algozes haviam sido ape- nas seus macabros instrumentos.

Não temos dúvidas de que ainda há muito por fazer, mas ex- perimentos como Lembrar é Resistir mostram que vale a pena levantar os véus que cobrem as vergonhosas mazelas não tão distantes do presente. A maior recompensa que se pode obter por esse gesto de coragem e ousadia é fazer que sejam ouvidos, ainda que por um grupo de atores, os gritos de dor e sofrimento daqueles que percorreram essa sangrenta trajetória.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei n. 6.683, de 28 de agosto de 1979. Concede anistia, e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 28 ago. 1979. Seção 1, p. 12265. DARION, J.; LEIGHT, M. Sonho impossível. Intérpretes: Chico Buarque e Maria Bethânia. In. Chico Buarque e Maria Bethânia ao vivo. Rio de Janeiro: Phonogram/Philips, p1975. 1 disco sonoro (46 min). Lado A, faixa 2 (1 min 53 s).

MELLO, T. Faz escuro, mas eu canto. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965.

E ASSIM CHEGOU A DITADURA...