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No início de 1970 recomecei a vida normal e legal em São Paulo, dando aulas num cursinho pré-vestibular e dividindo um apar- tamento com a Isabel, a amiga que tinha sido presa em Ibiúna. Morava na Rua dos Pinheiros. Em junho, aconteceu a Copa do Mundo no México. Nossa seleção ganhou todas as partidas; a fi- nal contra a Itália foi eletrizante. A esquerda temia a utilização política que o governo Médici faria em caso de vitória. Apesar de, no início, torcer meio envergonhada, não deu para resistir. Lembro-me de ter ido para a Avenida Paulista, foi uma alegria geral. Aquela música Pra frente, Brasil, de Miguel Gustavo, era empolgante e, no entanto, ficou tão associada com a ditadura que tenho um sentimento ambíguo em relação a ela: gosto, mas ela me dá um certo mal-estar. O primeiro filme sobre a ditadura,

que recebeu esse nome, acabou reforçando o estigma colado na música.

Em julho saiu publicada na Folha de São Paulo uma matéria sobre o processo da AP. Além dos presos, listava os nomes dos que tinham prisão preventiva decretada. Meu nome estava lá. Lembro-me bem da cena: minha tia, cuja filha, Lina, também da AP, estava presa em Minas, chegou bem cedo ao meu apar- tamento com o jornal na mão. Ela mostrou a matéria e disse: “olha o seu nome aí”. Ela estava apavorada porque sua filha ti- nha sido torturada, ela tinha a dimensão do perigo. E nos seis meses que morei em Pinheiros, perto dela, tinha-me tornado sua companheira, uma pessoa com quem ela podia desabafar. Houve uma grande cumplicidade entre nós, que continua viva. Ano passado fui ao seu aniversário de 90 anos.

Minha situação ficou insustentável. Tivemos de deixar o apar tamento imediatamente porque com a Operação Bandei- rante (OBAN) não dava para brincar. Esta exigia que os mora- dores deixassem seus nomes na portaria dos prédios de modo a possibilitar que os porteiros denunciassem moradores subver- sivos. Pagamos a multa da rescisão do contrato — não quería- mos dar prejuízo ao nosso fiador, o professor Jaime Pinsky, que conhecíamos do curso de História de Assis.

Abandonei o emprego, fui para o apartamento de uma pri- ma, depois para a casa de um amigo, Carlos, que morava então no início da Rua Girassol, Vila Madalena. Tal um poeta român- tico, procurei a casinha dele há alguns anos, não achei nada, pois tinha sido demolida. Carlos também veio a ter problemas com a repressão e foi para o Chile em 1972. Como perdemos o contato, a ideia de que ele tivesse morrido no Chile de vez em quando atravessava minha mente. Felizmente foi resgata- do pela ajuda humanitária dos canadenses, que o levaram para Montreal, onde se fixou e vive até hoje. Curiosamente, um dia ele me encontrou pela internet, no site da Associação Brasilei-

ra de Estudos Canadenses (ABECAN). Havia uma foto de grupo com o Embaixador do Canadá e, abaixo, um pequeno texto com os nomes das pessoas. O reencontro ocorreu pouco tempo de- pois, por volta do ano 2000, quando fui a um congresso. Desde então, cada vez que vou a Montreal nós nos encontramos.

Em 1970 muitos estavam indo para o Chile. Não fui por pou- co. Recebi uma proposta do Nilo Odália, professor de História em Assis, para ir para a França. Ele tinha feito um curso de es- pecialização no Institut Européen des Hautes Etudes Interna- tionales, em Nice, e se oferecia para entrar em contato com o diretor de lá, pedindo-lhe uma vaga e uma pequena bolsa para mim. Ele me disse para providenciar o passaporte, garantindo que eu seria aceita. Tentei, através de despachante, no Rio e em São Paulo, mas a Polícia Federal não liberou o meu passaporte.

Estava um pouco à deriva. Não podia permanecer no Brasil, era grande o risco de ser presa a qualquer hora. Restava saber para onde ir. Um tio de Londrina sugeriu que eu viajasse para o Paraguai com um contrabandista de whisky que ele conhe- cia. Tive de esperar cerca de um mês, porque minha viagem dependia da necessidade dele de comprar muamba. Não tinha nada a fazer, a inatividade era uma agonia. Tocava no rádio Foi um rio que passou em minha vida, do Paulinho da Viola. Até hoje, quando ouço essa música, tenho vontade de chorar, não sei bem por quê.

Parlez-vous français?

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Ao desembarcar na França, possuía um bom conhecimento da língua francesa escrita. Podia ler um livro com a ajuda de um dicionário, mas nunca tinha visto um francês na minha fren- te, a prática da língua oral na faculdade era mínima. E naquela

época não havia a facilidade de comunicação (televisão, inter- net) e de viagem que existe hoje.

As dificuldades que tive ao chegar foram às vezes cômicas, às vezes anódinas, mas algumas chegaram perto do drama. Co- meço com meu embarque em Paris rumo a Nice. Apresento-me ao balcão da Air France. A funcionária me diz que não, que devo me dirigir ao balcão da Air Inter. Ela fala como se fosse a coisa mais normal do mundo, com aquela atitude blasée. Não enten- do o que significa “errinter”, repetido depois à exaustão pela moça, até porque eu estava convencida de que tinha uma pas- sagem da Air France. E estava no balcão da Air France. Vendo que eu estava cada vez mais confusa, ela foi gentil e me mostrou onde devia ir. Posteriormente, vim a entender que a Air Inter era o braço da Air France que fazia os voos internos na França. Apesar do nervosismo, não desmoronei, mas nunca me esqueci dessa cena que agora considero hilária.

Em Nice, meu primeiro encontro com o estudante do Togo foi constrangedor. Fiz-lhe a pergunta clássica que todo mundo faz nesse tipo de situação: D’où venez-vous? Ele disse du Togo; não entendi, ele repetiu mais umas três vezes e eu continuava sem entender, porque simplesmente nunca tinha ouvido falar do Togo! Por fim, fingi entender e disse: Ah, oui! Aliás, cena parecida aconteceria comigo em 1979, na Aliança Francesa de Paris, quando alguém me disse que era do Sri Lanka. Além da mudança do nome do Ceilão para Sri Lanka ser, então, fato re- cente, o sotaque do rapaz não ajudava. Esses exemplos de in- compreensão não são meramente linguísticos, são de falta de conhecimento de Geografia mesmo!

No contato com os estudantes nos primeiros dias, não en- tendia quase nada do que eles diziam, porque só usavam gíria: bagnole (para voiture, carro), bouffer (para manger, comer), dégueulasse (para horrible, horrível), je m’en fous (para cela m’est égal, não ligo a mínima) e assim por diante. Como era

meramente lexical, rapidamente me adaptei. O que importa quando se faz imersão em um país de língua estrangeira é do- minar a estrutura da língua, ou seja, a sintaxe. O resto é fácil. Em pouco mais de um mês já estava falando quase como eles.

O caso mais dramático de incompreensão foi na Préfecture de Police des Alpes Maritimes, onde devia tirar o visto de resi- dente (carte de séjour). Não entendi as explicações do funcio- nário, pedi-lhe que repetisse e, naturalmente, na segunda ex- plicação continuei sem entender, com cara de idiota. Os fran- ceses são, em geral, impacientes, não supõem que alguém possa não entender as regras deles ou o que eles dizem. Então o ho- mem me deu um fora, em altos brados. E eu caí no choro. Acho que foi todo o choro que eu não tinha chorado desde a prisão do Flávio, porque foi um choro convulsivo, como nunca tinha me acontecido. O pobre francês ficou desarmado, me acalmou, explicando-me tudo o que tinha de fazer. Emocionalmente, me colocou no colo. E eu saí de lá morrendo de vergonha do escân- dalo que tinha feito.

Por uma questão de sobrevivência, fui perdendo os defeitos de pronúncia típicos do sotaque brasileiro (nunca se perde to- talmente o sotaque), aperfeiçoei o meu francês, fiquei fluente. É curioso observar como os povos têm uma relação diferente com a língua. Os ingleses e americanos não ligam muito se al- guém fala bem ou mal, eles são pragmáticos, talvez porque o inglês é, há algumas décadas, falado por gente de muitos países, tendo se tornado uma espécie de língua franca no mundo. Já os franceses sabem que foram destronados e lutam pela preserva- ção do francês como língua de prestígio. Assim, noto que eles chegam a ficar comovidos quando veem alguém que fala bem sua língua. Já ouvi uma quantidade de vezes frases exclamativas do tipo: Comme vous parlez bien français! Comment ça se fait que vous parlez si bien?