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A produção do espetáculo

Logo no começo, não havia verba alguma para financiar o tra- balho, mas conforme a proposta foi tomando corpo, Belisário, o Secretário de Justiça, foi também se empolgando e sugeriu que se elaborasse um projeto para a Lei Rouanet. Sérgio Motta era o Ministro das Comunicações durante o governo de Fernando Henrique Cardoso e essa era a única forma de se obter recursos para produzir o espetáculo.

Coube a Efren Colombani a responsabilidade de preparar o projeto, sabendo antecipadamente que muito pouco seria ne- cessário para levantar a peça, mas, ainda assim, havia a neces- sidade imperativa de algum capital para que pelo menos o elen- co convidado tivesse um mínimo de remuneração.

Mesmo sem nenhuma perspectiva positiva em vista, a equi- pe de criação deu prosseguimento ao trabalho, acabando mer- gulhada por completo no processo. Não havia certeza alguma de que esses recursos seriam obtidos, mas a proposta era tão fascinante que ninguém quis abandoná-la. Depois do projeto pronto, Belisário dos Santos e Marcos Mendonça entraram em

contato com Sérgio Motta e, a partir daí, as coisas se resolveram mais rapidamente.

Marcos Mendonça mobilizou funcionários da Secretaria da Cultura para que se realizasse uma rigorosa higienização do espaço coberto de entulho, quase impedindo o deslocamento das pessoas de um local para outro. Ao final, foram necessárias várias caçambas para que se removesse todo esse material. In- teressante observar que durante a limpeza foram encontrados alguns bancos grandes de madeira, aproveitados para acomo- dação do público.

Por sugestão de Analy Alvarez, foi aberta uma fenda em uma das paredes, para que se criasse uma passagem de circula- ção, já que o cômodo originalmente possuía apenas janelas. Foi com essa brecha que surgiu um espaço útil para a construção de camarins para os atores e também para o acesso dos espectado- res. Banheiros químicos foram alugados e uma última limpeza geral foi realizada no dia que antecedeu a estreia.

Carlos Alberto Dêgelo, diretor do Departamento de Enge- nharia de Materiais (DEMA), órgão da Secretaria de Estado da Cultura, conseguiu alguns refletores para colocar do lado de fora do prédio e também distribuí-los em um espaço que ser- viria como saguão, onde o público aguardaria o início do espe- táculo. Nessa mesma área, foi montada também uma exposi- ção de foto jornalística com diversas matérias vindas de fontes diversas sobre os excessos cometidos pela ditadura militar. É preciso que se diga que a peça estreou em 28 de agosto sem a exposição estar completamente finalizada e o seu processo de acabamento estendeu-se ao longo da temporada.

Dêgelo foi o responsável pelos biombos expositores, assim como pela montagem da exposição em si, já que esta era uma das atribuições do seu departamento. Nezito Reis, respeitado iluminador dos palcos paulistanos, foi chamado para conceber a luz do espetáculo, que, de acordo com a opinião da maioria de

pessoas que assistiram à montagem, era belíssima, já que fu- gia do padrão convencional da iluminação cênica. Tratava-se muito mais de uma luz ambiental delicada, sutil e adequada à atmosfera da peça.

A Secretaria de Estado da Cultura deslocou também uma pequena verba inicial que permitiu a manutenção do espetáculo durante o primeiro mês, enquanto era aguardada a liberação dos recursos obtidos por meio da Lei Rouanet. Com essa curta verba, Analy Alvarez e Marcos Weinstock, cenógrafo e figurinista que também estivera preso, compraram algumas peças de vestuário industrial, transformadas em uniformes de presidiários, e assim se deu início à produção da peça propriamente dita.

Aquela quantia também foi suficiente para cobrir as despe- sas de iluminação, sonoplastia e um pequeno cachê, como aju- da de custo para os atores. Posteriormente, com o sucesso da montagem, a produção entrou pela segunda vez no edital da Lei Rouanet, garantindo assim a permanência da peça pelo segun- do ano consecutivo, mantendo os ingressos gratuitos.

Os ensaios

Os ensaios tiveram início no centro da cidade, em uma das salas da Associação dos Produtores de Espetáculos Teatrais do Esta- do de São Paulo (APETESP), no Teatro Maria Della Costa, e só foram transferidos para o local da representação após o rompi- mento da passagem para acesso aos camarins.

A partir daí, o espetáculo começou a ser organizado como uma montagem itinerante, que obrigaria o público a se deslo- car por entre as celas e conhecer as diferentes dependências do DOPS. Um padre foi chamado para benzer o ambiente, porque a grande maioria achava que aquele espaço estava carregado de más energias.

Segundo informações obtidas junto a várias pessoas que participaram da encenação, o espaço em si era opressivo e pro- vocava um profundo mal-estar em todos que nele passavam durante algum tempo. Era comum ouvir-se entre os atores “Yo no creo en brujas, pero que las hay, las hay!” Todos concor- dam que havia ali uma atmosfera pesada, que muitas vezes, inexplicavelmente, levava as pessoas a discutirem entre si, tal era o estado de sensibilidade que despertava em cada um dos indivíduos que por ali permanecesse.

Para dar início aos trabalhos de preparação do espetácu- lo, o diretor propôs que fossem realizadas algumas discussões de mesa para que a temática fosse bem absorvida por todos os integrantes do elenco. É possível que tenham sido utilizados aproximadamente cinco dias unicamente para esses debates. Foi nessas ocasiões que Nilda Maria, dotada de viva memória, relatou fatos contundentes ocorridos durante o seu período de confinamento, sensibilizando todos os presentes.

A atriz Nilda Maria Toniolo tinha sido detida no dia 5 de maio de 1970, durante a apresentação do espetáculo O Balcão, de Jean Genet, com direção de Victor Garcia e encenado na Sala Gil Vicente do Teatro Ruth Escobar. Nilda acumulou muita ex- periência durante os seis meses em que passou encarcerada. Durante esse tempo, ela saiu do DOPS, foi transferida para o Presídio Tiradentes e de lá foi levada para as dependências do Destacamento de Operações de Informações — Centro de Ope- rações de Defesa Interna (DOI-CODI), na Rua Tutóia, onde fun- cionava a temível Operação Bandeirantes (OBAN). Lá, ela ficou na Torre das donzelas, um espaço onde eram reunidas as mu- lheres presas pelos agentes dessa fatídica operação. Enquanto esteve no DOI-CODI, Nilda passou por todas as fases do pro- cesso que lhe foi imputado, tendo sido julgada, finalmente ab- solvida e libertada.

Tudo que era dito era cuidadosamente anotado pela autora, que, ao chegar em casa, valia-se desse material para elaborar cenas e apresentá-las ao diretor e ao elenco já no dia seguinte. Segundo a própria autora, essa foi a fase mais estimulante do trabalho, quando ainda não estava muito claro o conceito de como iria ficar o todo, depois que essas peças fossem encaixa- das em seus devidos lugares.

Conforme ia sendo aprontado, o texto era ensaiado por partes na sala da APETESP. O trabalho maior concentrava-se no entendimento das falas e das relações entre as personagens, já que ainda não se tinha uma noção clara de como ficaria o lo- cal escolhido para a representação depois de efetuada a grande limpeza. Ensaios e faxina aconteciam simultaneamente e uma coisa somava-se à outra, permitindo que dia a dia o espetáculo fosse ganhando corpo.

Os atores, no início, ensaiavam como se estivessem cada um em sua cela e assim foram se formando os núcleos de persona- gens. Luiz Serra vivia o velho comunista que dividia a cela com Luti Angelelli, que, por sua vez, vivia o sofrido Frei Tito. Ter- minada a ação dramática desenvolvida com aquela dupla, ti- nha início alguma outra cena, independente da sequência final apresentada na montagem.

O trabalho do diretor, Silnei Siqueira, foi fornecer elemen- tos para que cada um dos atores fosse se adaptando à situação. As cenas levantadas eram tão fortes e o espaço tão opressivo, que, ao final, conseguia-se o resultado pretendido desde o início: mostrar ao público a cruel realidade dos que passaram pelas prisões políticas durante os anos de chumbo. Na cela das mulheres havia quatro presidiárias e ali foi necessário criar uma espécie de marcação, imaginando que o público estaria tam- bém ocupando o mesmo espaço. É preciso que se diga que Silnei Siqueira conduziu o processo de forma a fazer com que tudo

surgisse espontaneamente, valendo-se das memórias dos mo- mentos vividos nos porões da ditadura.

O naipe dos prisioneiros estava dividido entre as quatro celas remanescentes do edifício e representavam a população carcerária brasileira durante os anos mais agudos da ditadura militar, quando a tortura desumana, sadicamente planejada, era uma prática comum.

Na primeira cela ficava o ator Norival Rizzo, depois substi- tuído por Walter Breda e, no final da temporada, por Amaury Alvarez. Nessa primeira personagem estavam concentrados, sob a forma de monólogo, os poemas de Thiago de Mello. Era uma conversa de si para si mesmo e abria o espetáculo com in- tensidade, angústia e poesia.

Na segunda cela ficavam as mulheres. Em princípio eram quatro: Tânia Sekler, depois substituída por Malu Rocha, Nil- da Maria, Lourdes de Moraes e Ia Santos. Quando o espetáculo foi reestruturado, entrou uma quinta personagem, vivida pela atriz Neusa Velasco.

A cela feminina mostrava a pressão sofrida pelas mulheres, distribuídas em cinco tipos distintos: Tânia e Malu viviam uma personagem nascida sob a inspiração de Rose Nogueira, cuja passagem pelos cárceres está relatada no volume Tiradentes — Um presídio, de Izaías Almada e Alípio Freire.

Nilda Maria, por ter trazido sua própria experiência de vida, nunca foi definida como uma representação dela mesma ou uma síntese da mulher aprisionada. Em seus depoimentos foram igualmente acrescentados trechos de poemas de Thiago de Mello.

Lourdes de Moraes trazia para o espaço cênico a vivência das mulheres mais velhas, mães e esposas, igualmente vítimas da perseguição política.

Ia Santos tinha uma experiência maior como cantora e foi aproveitada para inserir um lado mais lírico e delicado ao am-

biente da prisão. Ela cantava a maior parte do tempo e suas in- terferências serviam sempre como um hiato dramático no qual se baixava um pouco o nível de tensão, para que, com o próxi- mo monólogo, voltasse a crescer.

Neusa Velasco, quando de sua entrada, recebeu como in- cumbência dar vida à mulher de um operário procurado pela polícia. Era uma mulher assustada e muito fragilizada, revelan- do uma enorme vulnerabilidade. Por temor aos suplícios, ela não hesitava em entregar o esconderijo do esposo, mesmo pre- vendo que isso custaria a vida dele. O peso dessa culpa ela irá carregar pelo resto de sua vida.

Na terceira cela alojavam-se os atores Luiz Serra e Luti An- gelelli, vivendo, respectivamente, o velho comunista e Frei Tito. Na quarta e última cela reuniam-se os intérpretes Tin Ur- binatti e Pedro Pianzo. As personagens vividas por eles não tinham sido extraídas de ninguém em particular, mas repre- sentavam justamente a força da resistência. Tin era o prisio- neiro que retornava à cela, bastante machucado, após um cruel interrogatório. Ainda assim, visivelmente debilitado, instilava coragem e ânimo no jovem ator (Pedro Pianzo), para que este não dissesse nada do que desejavam saber e tentasse, enquanto possível, não esmorecer.