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Outubro de 1970: Ponte da Amizade

Eu deixo o Brasil no carro de um contrabandista paraguaio. En- colho-me no banco de trás, quero me tornar invisível. Medo. Tinha ido até Foz do Iguaçu com um contrabandista de Londri- na, que vendia whisky para um tio. Ele devia estar a par de mi- nha situação, não sei se o tio lhe havia dado algum dinheiro, eu só o vi no momento de partir. Viajamos o dia inteiro, conver- samos, não falamos de política e nem de meus problemas. Dor- mimos num hotel qualquer. No dia seguinte, bem cedo, expli- cou-me que iria do outro lado e seu parceiro viria me buscar no hotel porque o controle brasileiro não verificava os veículos pa- raguaios que cruzavam a fronteira. Não me senti muito segura. Escrevi um bilhete para mim mesma e lhe disse que o parceiro paraguaio deveria me entregar o papel com a minha assinatura, esta seria a senha. O contrabandista chega cerca de uma hora depois, me entrega o pedaço de papel e diz: “Vamos?” Nenhu- ma outra palavra. Sento no carro, levo uma imensa mala, para uma viagem sem volta. Vou observando a ponte, ansiosa. Noto que cruzamos a fronteira. Entre aliviada e ansiosa, pergunto ao contrabandista: “já saímos do Brasil?” Ele diz que sim (parece não entender pergunta tão idiota). Estou livre. Primeira etapa vencida.

Em Puerto Presidente Stroessner (atual Ciudad del Este) não tenho nada a fazer. Tomo o primeiro ônibus para Assunção, vou procurar a única pessoa que conheço no Paraguai, Lucía.

Tínhamos nos encontrado em 1968, em Assunção, num con- gresso da Juventude Universitária Católica (JUC), uma associa- ção de jovens, liderada por padres progressistas e, até então, apoiada pela Igreja.

Devo ter pensado no trajeto que me levava à capital, que só tinha um número de telefone, nada mais. Se ele não funcionas- se, o que faria? Cheguei à noite, telefonei. Atenderam. O pai de Lucía foi me buscar na rodoviária e me levou para a casa. Fiquei hospedada lá uns 10 dias. Era uma casa grande, de piso frio. Fazia muito calor, havia enormes ventiladores de teto. Uma empregada, que só falava guarani, perguntou a Lucía se eu era americana, meu português lhe parecia tão incompreensível que ela pensava se tratar de inglês.

No dia seguinte, vou ao consulado do Brasil pedir um pas- saporte. Sabia que eles poderiam me prender, afinal, o consu- lado é território brasileiro. Tinha prisão preventiva decretada no Brasil, a Polícia Federal não tinha liberado meu passaporte. O despachante tinha me dito “negativo”. Agora lá ia eu para a boca do lobo. Rafael, o noivo da Lucía, me acompanha, dan- do-me um pouco mais de segurança. Ele foi meu anjo protetor, sem ele não teria conseguido sair do Paraguai. Inventou uma história que eu tinha ido a uma reunião da JUC e que deveria prosseguir viagem, indo a um encontro católico na Colômbia. O pessoal do consulado não deve ter acreditado; depois de mui- to regateio, propôs me conceder um salvo-conduto para a Co- lômbia. Já naquela época, os países do Cone Sul só exigiam car- teira de identidade no controle das fronteiras, mas a Colômbia não tinha nenhum tipo de acordo com o Brasil. Na minha lem- brança dessa cena no consulado estou sempre muda, só Rafael fala. Imagino que falei também, devia estar gelada por dentro, tentando parecer normal, mas a verdade é que só pensava na possibilidade de ser presa.

A ideia do salvo-conduto para a Colômbia me desarvorou, eu precisava de um passaporte para ir para a França. Voltei para a casa desconsolada. Eu estava determinada a ir para a França. Tinha feito licenciatura de Francês na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Assis (SP), que viria a fazer parte da Uni- versidade Estadual Paulista (UNESP), quando de sua criação em 1976. Tinha vontade de conhecer a França. Já estava acertada minha ida ao Institut Européen des Hautes Études Internatio- nales, em Nice, que me concedia uma pequena bolsa. O diretor, Monsieur Alexandre Marc, sabia da minha situação, me espera- va, mas as aulas já tinham começado em setembro. Como fazer? Sem passaporte, eu nunca chegaria à França; só me restaria ir para o Chile.

Como Rafael tinha acesso à alta hierarquia da Igreja, achou que a única saída era apelar para o Núncio Apostólico, pedindo- lhe para interceder por mim. Solicitou uma audiência. Demorou alguns dias para conseguir conversar com ele. Para mim, foram dias vazios, de angústia, de espera. Finalmente, recebo a notícia de que o Núncio falaria com o cônsul brasileiro. Em último caso, ele assegurava que me daria um passaporte do Vaticano. Menos mal, mas seria bizarro demais viajar com um passaporte do Va- ticano. Tudo o que queria era passar despercebida. Ora, che- gar à França com um passaporte do Vaticano era uma coisa que chamaria muita atenção. Alguns dias depois, o Núncio avisa que podemos ir ao Consulado. O comportamento do pessoal muda, o passaporte é liberado. Deixo as fotos, pago a taxa. Tenho de voltar para buscar o passaporte dois ou três dias depois. Que po- der tinha e continua tendo a Igreja Católica na América Latina!

Pego meu passaporte no fundo de uma gaveta, olho para minha foto, examino o que está escrito. Lá está: emitido pelo Consulado Geral do Brasil em Assunção, dia 4 de novembro de 1970. O valor da taxa foi de 560,00 cruzeiros. É assinado pelo cônsul geral, Paulo da Costa Franco. Será que foi para ele que o

Núncio telefonou? A validade era de dois anos e, naturalmen- te, não era válido para Cuba. Esse passaporte foi renovado na França em 1972, com validade para mais dois anos.

Aliviada, saio do consulado direto para a agência da Air France. Peço uma passagem de ida. O funcionário me informa que o voo mais direto era com escala no Rio de Janeiro. Recuso, não posso pisar em solo brasileiro. Ele diz que tem um voo com conexão em Buenos Aires, que será preciso esperar e trocar de avião. Aceito esse, parece-me conveniente. Vejo hoje no meu passaporte que no dia 7 de novembro passei pelo aeroporto de Ezeiza, rumo a Paris, rumo a Nice, rumo a uma nova vida. Lem- bro-me que o avião fez uma escala técnica em Dakar (Senegal), descemos e tomamos café da manhã num restaurante do aero- porto. A única vez em que pisei no continente africano.

Passo uns três dias em Paris, no apartamento do Padre Sena, que tinha conhecido na JUC. Ele morava na Rue de Rennes, Quartier Latin. Saio na rua e leio numa banca de jornal De Gaul- le est mort, la France est veuve. Frase de efeito do presidente Georges Pompidou, a França estava viúva com a morte do grande homem. Confesso que foi um choque para mim. Minha geração conhecia a figura de De Gaulle. Antes do início dos filmes, os ci- nemas brasileiros mostravam Les actualités françaises, um jor- nal narrado em português com forte sotaque francês. De Gaulle sempre aparecia. Minha chegada coincidia com sua morte.

Nice, 1970

Chegando a Nice, tomo um táxi no aeroporto e dou o endereço. O chofer me pergunta: Vous venez des colonies?1 Respondo que

não, que venho do Brasil. Mas fico matutando: que diabo de co- lônias a França tem? De onde ele acha que eu venho? Por que me

perguntou isso? Na verdade, não sabia nada sobre o império co- lonial francês e o recente processo de descolonização dos países africanos. Nos dois anos que vivi na França, passei por experiên- cias que me ajudaram a compreender a pergunta. Em primei- ro lugar, porque sou considerada pelos franceses typée, ou seja, exótica; não sou exatamente branca como uma europeia, tenho traços que traem minha origem mestiça. Em segundo lugar, por- que falo bem francês, o que significa que venho de uma colônia (ou ex-colônia, ou departamento de ultramar) em que se fala francês; não se supõe que se possa aprender uma outra língua.

Perguntaram-me repetidas vezes se vinha da Martinica ou da Guadalupe, do Taiti ou de Madagascar, todos eles ex-colô- nias francesas com população mestiça. A análise de meus tra- ços fisionômicos — algo que os brasileiros nunca fazem — era constante. Como os franceses achavam que eu era proveniente de suas ex-colônias, chegavam a duvidar que fosse brasileira. Parece que ser brasileira dava mais prestígio. Um homem che- gou a me testar, perguntando-me o nome do presidente da re- pública. É estranho pensar isso, mas os franceses têm um amor intenso pelo Brasil, a colônia que eles gostariam de ter tido na América. Uma colônia fantasmática.

O meu nome, que aprendi a dizer sempre com pronúncia francesa para facilitar a compreensão, era motivo de admi- ração, quase pasmo. Eles adoraram o filme Orfeu Negro, que Marcel Camus tinha rodado no Rio de Janeiro. Todos me per- guntavam se eu tinha visto o filme. Não tinha. Vi muitos anos depois, já de volta ao Brasil. Mas, depois de tanto me contarem o filme, comecei a dizer que sim, evitava ouvir tudo de novo. Ao longo do tempo, cogitei que os franceses devem gostar do meu nome por causa do filme. No Brasil sempre foi um nome pesa- do, mal pronunciado e, atualmente, é quase sempre estropiado pelas máquinas falantes que assolam o telemarketing.

No filme de Marcel Camus, o papel de Orfeu coube a um bra- sileiro, Breno Mello, mas foi Marpessa Dawn, bela atriz fran cesa de origem afro-norte-americana, que teve o papel de Eurídice. O filme foi um enorme sucesso mundial: recebeu a Palme d’Or do Festival de Cannes em 1959 e o Oscar de melhor filme estran- geiro em 1960. Esse filme, que ajudou a projetar a música brasi- leira e talvez tenha reforçado alguns clichês sobre o país, parece ter sido esnobado por aqui. O impacto na França foi tão forte que 10 anos depois as pessoas ainda se lembravam do filme com ver- dadeira paixão. E a figura de Marpessa Dawn era inesquecível, todos se referiam a sua beleza.

Naquele tempo, a Europa não barrava os estrangeiros. Che- guei com passagem de ida, sem volta prevista, o que é hoje im- pensável. Como era estudante, fui à polícia pedir um visto de residente, a chamada carte de séjour, que me foi concedido sem problema. Os exilados brasileiros moravam em Paris, em Nice não havia exilados, só uns dois ou três estudantes brasi- leiros que eu encontrava às vezes no restaurante universitário. Fiquei amiga de alguns hispano-americanos, o que me levou a me iniciar no portunhol. Destacavam-se dos demais franceses os estudantes que vinham da Córsega, talvez porque na época não houvesse universidade lá. Os numerosos estudantes africa- nos, da África subsaariana e do Magreb, faziam muito sucesso com as loiras do norte da Europa que vinham fazer cursos de francês no verão.