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A história foi assim [...] Comemorava-se naquele ano (1999), 20 anos da Lei da Anistia no Brasil, se não me engano! — 20 anos — era o aniversário da anistia [...]1

Lei da anistia é a denominação popular da Lei n°6.683, pro- mulgada pelo presidente João Baptista Figueiredo em 28 de agosto de 1979, após uma ampla mobilização social, ainda du- rante a ditadura militar. A lei estabelece que:

Art. 1º - É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexos com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indi- reta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciá- rio, aos Militares e aos dirigentes e representan- tes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares. (BRASIL, 1979) Belisário dos Santos Júnior, Secretário de Justiça do Estado de São Paulo, chamou seu amigo Silnei Siqueira, conceituado diretor teatral paulista, porque tinha em mente fazer um espe-

táculo para celebrar os 20 anos da Anistia. Ambos haviam tra- balhado juntos na Faculdade de Direito do Largo de São Fran- cisco, quando Silnei dirigiu o texto do Cesar Vieira, O Evange- lho segundo Zebedeu, no qual Belisário tomava parte.

Silnei Siqueira gostou da ideia e sugeriu que se utilizasse o Teatro São Pedro e que fosse promovido um evento comemo- rativo em um único dia. Silnei tinha algumas ideias vagas do que poderia ser concebido enquanto encenação. Imaginava ini- cialmente que poderia haver alguém que lesse um texto, outro que declamasse um poema, mais um terceiro que cantasse uma música. Poderiam ainda selecionar trechos da dramaturgia da época e, de posse desse material, o espetáculo seria levantado.

Analy Alvarez trabalhava como Diretora do Departamen- to de Teatro da Secretaria de Estado da Cultura, quando Silnei Siqueira foi procurá-la, em princípio para saber se era possível conseguir a locação do Teatro São Pedro, um equipamento des- sa mesma Secretaria. Analy foi a primeira pessoa a quem Sil- nei recorreu e, depois de algumas conversas, partiu do diretor o convite para que Analy, premiada autora teatral, com vasta experiência profissional na área, participasse também da con- cepção do evento.

Nesse meio tempo, paralelamente, estava em andamento um projeto desenvolvido por Belisário que culminaria com a devolução do prédio do Departamento de Ordem Política e So- cial (DOPS), pertencente à Secretaria de Justiça e que seria en- tregue à Secretaria de Cultura. A intenção era converter o lúgu- bre edifício em um centro cultural, abrigando também em suas dependências um memorial referente ao período da ditadura militar, já que havia servido de prisão para inúmeras pessoas perseguidas politicamente.

Tendo esse projeto como objeto de estudo, Analy Alvarez já havia mantido longas conversas com o Secretário de Esta- do da Cultura, deputado Marcos Mendonça, sugerindo que a

devolução do prédio deveria ser pontuada com um aconteci- mento revestido de caráter teatral. A primeira ideia era con- vidar alguns atores que, dentro das celas remanescentes, sob a forma de relatos, dariam vida às memórias dos antigos deten- tos. Pensava-se que esse experimento poderia produzir junto ao público um forte impacto, considerando-se que muitas das histórias que seriam narradas poderiam ter acontecido justa- mente ali, naquele espaço, mas nada estava ainda muito bem definido. Surgiram também outras propostas, inclusive a de que se rezasse uma missa no local. Quando Silnei chegou com suas intenções, Analy perguntou a ele: “Mas por que o Teatro São Pedro, se alguma coisa parecida com isso pode ser realizada aqui nessa prisão?”

E assim nasceu a sugestão de que um trabalho em parceria tivesse as dependências do antigo DOPS como palco de repre- sentação. Silnei foi levado por Analy para conhecer o espaço e, em princípio, considerou-o inviável para uma encenação. Analy argumentou indicando que era possível construir um texto a partir de outros já existentes, e aí ambos, ainda em dú- vida, foram falar com Belisário, Secretário de Justiça, para lhe expor esse esboço de projeto.

Belisário ficou muito entusiasmado com a proposta e soli- citou que se agilizasse a burocracia de transferência do prédio entre as secretarias. Foi a partir desse momento que as primei- ras providências começaram a ser tomadas. Os registros da memória dos envolvidos ainda estão um pouco nublados, mas o repasse efetivo do prédio aconteceu oficial e formalmente pou- cos dias antes da estreia de Lembrar é Resistir.

Firmado o compromisso artístico entre Analy e Silnei, a autora começou a pesquisar textos que pudessem ser usados na montagem. Usar a dramaturgia da época, considerada uma das mais ricas do teatro brasileiro, parecia ser um bom come- ço. Buscou-se em primeira mão a peça Missa Leiga, de Chico

de Assis. Gianfrancesco Guarnieri foi lembrado com sua obra Ponto de Partida, mas, por mais que avançasse, a pesquisa não direcionava para outros textos que se ajustassem aos ideais da proposta. Lembrou-se também de uma peça de Lauro César Muniz, Sinal de Vida, igualmente considerada, sem que se en- contrasse ali muito material que pudesse se encaixar no que se pretendia.

A autora deu início então a uma pesquisa no campo da poesia, principalmente na obra de Thiago de Mello e Carlos Drummond de Andrade, mas ainda sem uma meta claramen- te estabelecida, que determinasse um norte para este evento- espetáculo. A investigação poética fez surgir um sem-número de possibilidades, mas Analy deparou-se então com a dificul- dade de transmitir a vivência em um cárcere, já que nunca esti- vera presa. Questões diversas passavam pela sua cabeça: “Como é que essa gente se expressa? Como é que um policial fala com um presidiário? Como é que um detento fala com outro? Como é a atmosfera desse ambiente carcerário?” Foi exatamente nes- se momento que Analy veio a se encontrar com Izaías Almada, recém-chegado de Portugal.

Almada, que estivera preso durante o período da ditadura, interessou-se pelo projeto e, juntos, começaram a trabalhar, ten do em mente que a costura entre os textos selecionados se- ria a memória dos presos políticos, dando voz a esses autores. A participação do novo aliado seria significativa na constru- ção do texto final, já que este tinha uma visão exata de como se davam as relações no universo dos presídios. Os primeiros rascunhos do texto começaram então a ser elaborados, mas é necessário sublinhar que grande parte do resultado final foi determinado a partir das discussões, relatos e improvisações dos atores.

Havia uma premência de tempo para que tudo ficasse pron- to para a data de 28 de agosto, quando seria comemorado o vi-

gésimo aniversário da Lei da Anistia no Brasil. Segundo os en- volvidos com o projeto, a encenação na sua totalidade foi reali- zada em um espaço compreendido entre 12 e 15 dias anteriores ao predeterminado.