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A conversa em meio à dissolução do roteiro de entrevista

No documento O corpo em movimento na capoeira (páginas 68-73)

Aluno III: Faz uns 15 anos.

7. A conversa em meio à dissolução do roteiro de entrevista

Na ocasião do projeto de pesquisa foi produzido um roteiro de entrevista que serviu de ponto de partida na interação estabelecida entre pesquisador e sujeito. A formulação do roteiro partiu do seguinte questionamento: como o sujeito vai aprimorando seu estilo de jogar e, como desdobramento, como vai inscrevendo para si um estilo capoeira de ser?

Desta questão, outras derivaram, abrindo caminhos para diferentes versões deste questionamento primeiro. Todavia, no momento da interação com o sujeito outras versões para as perguntas já colocadas no roteiro produzido foram criadas e, assim, tal como num jogo de capoeira, a conversar traçou seu desatar.

O roteiro de entrevista deu o tom da interlocução, mas, a partir dele, outros tons se sucederam, dando curso ao improviso, às vibrações – inscritas nas palavras de fuga – mas também, ao traço performático da autoria, expresso pelas palavras de ordem29 e pelo próprio roteiro de entrevistas.

29 O autor que enuncia o ato performativo quer fazer valer seu poder de enunciação, para tanto, faz uso de

A marca do improviso apareceu na entrevista com mestre Plínio:

A conversa com mestre Plínio foi bastante proveitosa. Ambos ali, cheios de curiosidade um pelo outro, promoveram um exercício interativo farto. As experiências com a capoeira atravessaram as falas, dando margens às memórias, aos sentidos que nos mobilizam à prática.

A fala fácil e franca de mestre Plínio desatou os caminhos do relato. Por vezes os caminhos imprevistos da fala se viam frente ao indagar: do que estávamos falando mesmo? Por que é que estou falando isto? Eu, como a figura questionadora da história – chame-me de entrevistador, se quiser – não conseguia conter meu riso, pois nem eu mesmo lembrava qual era a questão de partida... Onde está o roteiro da entrevista, mesmo?

Interessante pensar como este lapso tem muito a dizer. Quando se abre acesso ao relato daquilo que nos afeta, os sentidos se despojam se pulverizam, assim, fica difícil tecer uma trilha lógica que dê conta daquilo que se quer expressar. As palavras não alcançam, isto é, não dão conta da experiência vivida... A palavra transborda, escorre pelas beiradas. Não obstante, o esforço do entendimento se aventura na trilha de um caminho que logo desemboca em outro e em outro, desdobrando-se num hipertexto infinito que, muitas vezes, se perde no caminho do falar... e a fala insiste, e a insistência expõe afetos. Afetos cada vez mais expostos. Pensando bem, não importa a linha lógica anunciada pela pergunta do entrevistador, importa muito mais os descaminhos da fala: a exposição vacilante dos afetos. (Diário

n. 14).

Mais uma vez nos vemos frente aos afetos e, em meio a eles, vemo-nos perdidos nos descaminhos da fala: vulnerável ao encontro com o outro. E indagamos: “onde está o roteiro da entrevista mesmo?”.

Há uma injunção aqui, afinal, quando se fala em entrevistas se supõe a aplicação de um método. Assim, nem de longe podemos nos reconhecer perdidos. As regras de definição do objeto de pesquisa, sob a trilha da evidência, não podem deixar margem à dúvida. E se não há dúvida, não se dá chance aos elementos que desviam o olhar do pesquisador da trilha da evidência. Não obstante, as entrevistas realizadas se perderam no desatar imprevisível das falas.

As palavras de ordem elaboradas no roteiro da entrevista deram um direcionamento inicial à interlocução, mas à medida que os interlocutores se envolveram na interação face a

16-17), conferem ao enunciado força de obrigação e, como efeito, aprisionam a realidade em um sentido dado. A experiência performativa é edificada pelas palavras de ordem, todavia, por entre as estruturas porosas – e solventes – deste edifício, atravessam palavras de fuga, como movimentos de variação da própria linguagem que rompem o ciclo de obrigação instalado pelas palavras de ordem. Como desdobramento deste rompimento, as palavras de fuga abrem caminho para a emergência de novas realidades. A abertura às palavras de fuga permite amainar o traço fálico da autoria, impedindo a tendência à sobreimplicação, onde o pesquisador reclama por uma verdade por ele revelada.

face a entrevista se transformou em uma conversa, que foi trilhando seus próprios rumos e se elevando para o plano das forças.

Para que esta elevação fosse possível, provocamos o interlocutor para contagiá-lo com aquele espaço de interação. Tal provocação não foi uma tarefa difícil, afinal a conversa girava em torno de um tema muito caro ao entrevistado: a capoeira. O simples fato de colocar a escuta à disposição dos capoeiristas já os mobilizava à fala solta e generosa sobre suas vidas junto à prática da capoeira. Segundo Lourau (1996), este movimento provocativo é o que permite a emergência da dinâmica instituinte que ata os interlocutores no espaço de implicação.

Nos domínios deste espaço de implicação, o exercício de controle se sustentou de modo paradoxal: se constituiu a partir das palavras de ordem registradas no roteiro de entrevista, mas também, e não menos, pela ação original daquele que respondia segundo suas próprias motivações, dando à conversa rumos imprevistos que se desdobravam como hipertexto.

Visto desta forma, foi possível verificar que, em conversa mediada no plano das forças, uma resposta não estava necessariamente subordinada à fala (pergunta) antecedente – como efeito causal desta – mas se mostrava como expressão episódica emergente no momento da fala em interação.30 A pergunta do interlocutor serviu, muitas vezes, como estopo para a emergência de uma expressão latente e pré-refletida que desmontou o controle implícito na pergunta, dando à conversa um direcionamento solto e imprevisível.

Observa-se como o diálogo com mestre Plínio foi se desdobrando, seguindo o curso desta fala em interação:

Entrevistador: Eu gostaria de falar um pouquinho contigo sobre capoeira...

você fique à vontade aí pra falar o que quiser... primeiro fala pra mim: qual o significado que a capoeira tem pra você? O que é a capoeira pra você?

Mestre Plínio: Humm... estas perguntas mais diretas e mais simples são as

mais difíceis de responder, né?

Entrevistador: É, a capoeira parecer ser tão “da gente mesmo” que não tem nem o que falar, né! [risos].

Mestre Plínio: É [pausa] é porque, capoeira, pra mim é o [pausa] é a

estrutura, é a base nesta minha vida toda. Eu pratico capoeira desde os nove anos de idade praticamente e eu só me lembro da minha vida antes da capoeira e depois da capoeira... eu estou todo dia na capoeira, então a capoeira seria uma mola mestra da minha vida, seria a razão do meu viver, é meu sustento, é a minha religião, é a minha ginástica, é a forma que eu

30Para Garcez (2008), a “fala em interação” é a fala expressa em meio à conversa e que se engendra durante a

encontrei de me encontrar comigo mesmo... A capoeira é a ligação entre meu interior e meu exterior... (Entrevista realizada em 26/03/2009).

Num primeiro momento, fica evidente que a resposta do mestre extrapola os limites implícitos pela questão: “o que é a capoeira pra você?”. Logo na primeira réplica o interlocutor expõe o descabimento da questão a ele direcionada como quem diz: “é possível reduzir uma prática da existência dentro dos moldes objetivos desta simples e direta interrogativa?” Há aqui, portanto, uma sutil perda de controle sobre a intenção implícita na questão de partida, que mobiliza o interlocutor a uma resposta que se desdobra como um problema.31

O entrevistador, no entanto, logo percebe a perturbação do entrevistado e se esquiva, adiantando-se aos movimentos do outro: “a capoeira parecer ser tão “da gente mesmo” que

não tem nem o que falar né!” Tal esquiva soa como uma indução que supostamente conduz o

entrevistado dentro de uma lógica sobre ele imposta.

A reação seguinte do interlocutor é aceitar essa indução e ir junto com ela, respondendo: “É [pausa] é porque, capoeira, pra mim é o [pausa]...”. Esta afirmativa, no

entanto, não sustenta aquela indução, pois a resposta que ali se desdobra a partir dela indica a irredutibilidade de um sujeito falante que não se contenta simplesmente em afirmar ou negar, pois se assim fosse, o interlocutor teria se satisfeito com a expressão monossilábica “É”. O

que se viu, no entanto, foi uma reação/criação à suposta indução. As pausas – entremeadas por titubeios da fala – deixam à mostra um tempo de organização das ideias, onde o interlocutor se viu instigado a criar seu dizer, segundo suas próprias motivações despertadas pela questão primeira.

Quando se libera acesso a este movimento de criação a conversa se intensifica e em meio às intensidades que por ali transitam a própria indução acaba funcionando como elemento de provocação que alimenta o traço sinuoso e furtivo do jogo.

Como diz mestre Plínio: “o bom jogo é quando um tá tentando pegar e o outro não

está deixando” (Entrevista realizada em 26/03/2009). A indução, portanto, é um elemento que

31 Segundo Deleuze a questão do tipo “O que é?” tem uma função propedêutica e como tal tem o objetivo de

abrir a região de um problema. Os problemas, por sua vez são da ordem dos acontecimentos, “não só porque os casos de solução surgem como acontecimentos reais, mas porque as próprias condições do problema implicam acontecimenos...” (2006, p. 268). Desta forma, a questão de partida: “o que é a capoeira pra você?” não

enquadrou a resposta, mas funcionou como mote, a partir do qual a resposta se construiu como acontecimento, isto é, como campo onde fulguraram multiplicidades: ideias.

faz parte da boa conversa, afinal, um jogador só “pega” o outro se tentar trazê-lo para seu

jogo, induzindo-o aos seus domínios. O outro, no entanto, como bom jogador, se esquiva, e ginga, e não se deixa ser pego, tapeando a indução suposta.

A pergunta, portanto, não controla necessariamente o que é dito, e nem poderia, pois a resposta que se desencadeia foge totalmente do controle do entrevistador, afinal, não vem dele, mas de seu interlocutor.32 Assim, de um turno de fala ao outro, a conversa se propaga, contagiando as partes e produzindo o footing da conversa.33

Os acontecimentos que se desdobram no bojo deste footing estão porvir segundo a dinâmica relacional em ato. Desta forma, no vai e vem das trocas de turno, a conversa flui ao sabor do jogo de forças que se propaga em meio aos interlocutores, entrelaçando-os num campo implicacional (LOURAU, 1993; GOFFMAN, 2002b).

Quem falou? Quem disse? Já não mais importam estas questões, visto que as entrevistas permitiram o acesso a um plano comunicacional no qual os autores deslocaram o foco de seus próprios pontos de vista, liberando acesso a outros olhares, num atravessamento constante e sempre mutável.

A atenção a um dizer constituído no campo destes atravessamentos deslocou nosso foco de trabalho com a entrevista. Neste enfoque, não importou tanto o que foi dito, mas „como‟ este dito forjou um campo implicacional no qual se estruturou o discurso co-autoral (LOURAU, 1993; GOFFMAN, 2002b; GARCEZ, 2008).34

Este “como” está porvir no ato em que a interação se dá como evento (GOFFMAN, 2002ab). A fala solta e franca sobre a capoeira foi o exercício experimental que moveu a constituição deste “como” em meio às entrevistas realizadas. É a verificação deste “como” que

32 A pretensão do controle da conversa se sustenta na intenção implícita no corpo da pergunta – onde se

inscrevem as palavras de ordem. Ao dar uma forma interrogativa a uma questão que acossa, o interlocutor quer saber algo. A preocupação aqui, neste algo a saber, não é com a suposta indução aí implícita, mas com a necessidade de deixar que o desatar da fala crie seus próprios rumos, amenizando as certezas do pesquisador, em função de um tateamento cego - como diriam Deleuze e Guattari (1995a) - que faz com que os interlocutores explorem a conversa como quem explora cheio de curiosidade o desconhecido.

33 Segundo Goffman footing é o enquadre, isto é, o clima de uma conversa. O footing representa a “projeção do

eu de um participante na sua relação com o outro, consigo próprio e com o discurso em construção” (2002b, p.

107). Esta projeção é introduzida durante a interação e, a partir desta introdução ela pode ser negociada, ratificada, mantida, co-sustentada ou modificada à depender dos rumos desencadeados pelos interlocutores.

34 O pesquisador tem um compromisso ético com este discurso co-autoral: Cabe a ele fazer valer na pesquisa o

discurso emerso neste plano da experiência e não sua autoria. É justamente por isto que este texto que aqui se desdobra vem sendo forjando entre o plano da experiência – a relação tramada em campo, junto aos capoeiristas – e um plano ético-teórico que permitiu dar maior visibilidade à investigação realizada.

tornará possível o mapeamento do discurso dizível da capoeira, em detrimento da análise interpretativa – que estaria concentrada na verificação “do que foi dito”.

Deste modo, a análise das entrevistas não busca os sentidos da prática da capoeira, mas busca compor uma paisagem da capoeira edificada pela própria materialidade do dito. O registro dos diários de pesquisa se junta a esta materialidade forjada no momento das entrevistas, para permitir a composição de uma análise que alcança além do dito.

Antes de prosseguir cabe uma breve exposição técnica sobre os registros da pesquisa. Assim organizamos a experiência investigativa trilhada, demarcando suas reminiscências e abrindo caminhos à análise.

No documento O corpo em movimento na capoeira (páginas 68-73)

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