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Por um “pesquisar com”

No documento O corpo em movimento na capoeira (páginas 52-54)

I – A INVESTIGAÇÃO EM PAUTA

1. Por um “pesquisar com”

O mestre é uma pessoa muito querida e muito estimada por seus alunos. Muitos o seguem com verdadeira devoção [...], assim, a mínima intenção de lhe dirigir a palavra é guiada por uma infinidade de olhares atentos e curiosos que, muitas vezes, intimidam. [...] Questionar o mestre na busca por respostas sobre a capoeira parece ser uma tarefa um tanto descabida [...].

A intuição me dizia que nada poderia fazer se, antes, não me entregasse à vivência que ali se constituía. Colocar-se como um capoeirista, integrar-se ao grupo como se dele próprio fosse, foi um exercício nem um pouco artificial, pois de fato tenho a capoeira como prática constante em minha vida. Todavia, não fazia parte daquele grupo específico e esta injunção desestabilizou, a princípio, a possibilidade de um bate-papo.

Olhares me abordavam de cima abaixo: olhares curiosos, receptivos, desafiantes, mal encarados, vindos do mais graduado ao iniciante. Fingindo não me sentir afetado por aquele ambiente de estranhamento, perambulava por aquele espaço oferecendo-me ao escrutínio do olhar alheio, como que tentando absorver todo aquele clima sem sucumbir à sua avaliação. E um calafrio me atravessava o corpo, junto a uma atração insondável, que alimentava o desejo de travar maior conhecimento com aquele universo. Para desfazer este quase mal estar que firmava irremediavelmente a relação de oposição entre pesquisador e pesquisado, foi preciso aceitar o convite da roda e vivenciar a capoeira como qualquer outro que ali estava.

Uma vez que fosse, duas talvez – é sempre um prazer e um desafio entrar na roda – mas por mais que entrasse na roda, tantas quantas foram às vezes que me convidaram, ainda assim estava na condição de estranho ali no grupo e, assim ficaria, se não fosse pra casa e voltasse no outro dia, e no outro, sem pressa, para experimentar mais. (Diário n. 02).

contingência do encontro garante a necessidade daquilo que ela [a sensibilidade] força a pensar” (DELEUZE,

2006, p. 211).

6 Inscreve-se aí a reversão metodológica operada pelo cartógrafo: o „metá-hodós‟ dá lugar a um „hodós-metá‟, ou

seja, a busca por uma meta dá lugar ao “primado do caminhar que traça, no percurso, suas metas” (PASSOS et

Um cultivo da experiência junto aos capoeiristas era preciso.

Nestes termos, a pesquisa não investe em domínio, em controle da experiência pesquisada, mas em cultivo desta experiência. Como desdobramento, o pesquisador aprende, e no curso deste aprendizado, faz pesquisa.

Mestre Ananias chamou a atenção para esta necessidade, ao me interpelar ao final de nosso primeiro encontro:

rapaz, você precisa vir aqui mais vezes... não venha só pra pegar o que é bom e ir embora pra nunca mais voltar... vem pra roda com a gente... as portas estarão sempre abertas pra você... (Entrevista realizada em

31/08/2009).

O convite ao cultivo da experiência veio também de mestre Gladson:

O mestre me chama de canto: quer saber por que ando faltando tanto do treino. Ele sabe que não moro em São Paulo e que meu tempo por lá é curto, mesmo assim me interroga... Ele quer minha presença, faz questão dela. Com um braço estendido alcança meu ombro e me traz para perto dele, num sinal de afeto. Sua mão aperta firme meu ombro. A força do toque fez me sentir importante... senti orgulho por fazer parte daquilo tudo (Diário n. 03).

Fazer parte; colocar-se junto à experiência, e nela intervir. Eis o exercício através do qual a investigação se abriu à recepção dos afetos.7

A fala dos mestres despertou a sensibilidade: era preciso cultivar uma disponibilidade à experiência. Alvarez (2007) já tinha alertado sobre esta necessidade. A disponibilidade demanda tempo, interesse e implicação junto à capoeira: era preciso, portanto, se esgueirar nas tramas insondáveis de um “pesquisar com”.

Segundo Alvarez e Passos, o “pesquisar com” é um exercício de criação, no qual não se pesquisa sobre alguém, mas com alguém (PASSOS, et al., 2009).

Ao anunciar a possibilidade deste exercício, muitos poderão alertar sobre sua suposta improcedência no campo das ciências8 e, na precocidade deste alerta, poderão até mesmo estar certos, visto que o tear de suas arguições parte de seus próprios referenciais – muito bem justificados, à luz da ciência moderna.

7 Segundo Alvarez e Passos, sem o convite de uma receptividade afetiva, o pesquisador não inicia a habitação de

um território existencial (PASSOS et al., 2009).

8 Nietzsche ajuda a sustentar esta ideia ao salientar que a busca pela verdade paralisa a vontade de examinar, de

pesquisar e de experimentar: “essa vontade pode passar até mesmo por reprovável, a saber, como dúvida a respeito da verdade...” (NIETZSCHE, 2008, p. 243). Como efeito, o pesquisador teme se lançar num exercício

Sob os parâmetros desta ciência, é equivoco pensar num saber forjado fora da relação de oposição entre sujeito e objeto.9 Como desdobramento, o saber forjado desta relação instituída sempre aponta para uma fórmula geral, que se coloca sobre a experiência estudada, representando-a.10 Firmam-se aí, na elaboração desta representação, as prerrogativas de um “saber sobre”.

Segundo Kastrup, Tedesco e Passos (2008), o “saber sobre” firma um paradigma epistemológico. O saber que dele deriva busca determinar a regularidade de um fenômeno e neutralizar o conhecimento na necessária distinção entre sujeito e objeto.

Partindo destas prerrogativas, se ousarmos inverter a projeção da perspectiva – que firma a relação de oposição entre sujeito e objeto – dando visibilidade ao plano da experiência, abre-se margem ao múltiplo e aí não se faria ciência aos olhos da ciência moderna.

O “pesquisar com”, no entanto, mobiliza-nos para além deste veto ao múltiplo. Para tanto, permitimo-nos “perder tempo” no cultivo da vadiação.

No documento O corpo em movimento na capoeira (páginas 52-54)

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