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A roda de capoeira e a escrita – campos de implicação

No documento O corpo em movimento na capoeira (páginas 57-60)

I – A INVESTIGAÇÃO EM PAUTA

4. A roda de capoeira e a escrita – campos de implicação

Lá no fundo uma voz vocifera: coragem! Olho para a frente... não tanto com um olhar cheio de certezas, mas um olhar que extravaza curiosidade e vontade. Vejo a roda de capoeira, faço parte dela. Escuto o som abafado das palmas marcando a cadência de São Bento Grande e, surpreso, vejo minhas próprias mãos também marcando o compasso. Sinto as vozes atravessando os ouvidos e abrindo caminhos que tocam a intimidade. O frio na barriga desperta: brota no baixo ventre e irradia para além de mim mesmo sem nem pedir licença.

Para o centro da roda convergem olhares: dois sujeitos lá estão vadiando de pernas para o ar. O clima é denso, de disputa e luta com um ar de troça que chega a ser irritante... Se fosse comigo, não deixava passar um só pontapé! Ops... de onde veio esta valentia toda? Não importa, já foi embora e foi do mesmo jeito que veio: na sucessão imprevisível dos acontecimentos.

De improviso em improviso, o clima de provocação aumenta. Torna-se volátil, quase tátil. Toma conta do espaço, ou melhor, cria espaço, deixando um rastro de contágio que concentra ainda mais o clima de provocação.

Sinto as pernas trêmulas, não sei bem se por vontade, ou por falta de coragem, só sei que não consigo sair dali. A roda de capoeira chama, mas o frio na barriga me empaca... e este jogo que não se desata atrai ainda mais meus sentidos (Diário n. 04).

A roda de capoeira convidou-nos a ancorar na experiência vivida. Lá, imerso nela, a sensibilidade aflorou: desatou-se no cingir atravessado de um “frio na barriga”, no brotar

furtivo da valentia, na densidade quase tátil da provocação. Enfim, em meio à inscrição destes afetos, abrimo-nos à roda de capoeira e, implicados, permitimo-nos acompanhar o que por ali se passava, tateando, com curiosidade,12 a experiência performativa que nos acometia.

12 A curiosidade é o que impele o conhecer na cartografia. A atitude curiosa ousa transpor os muros restritos da

razão – que se limita à pura e simples produção de conhecimento – na busca por outras aventuras do pensamento. Não se transpõe estes muros restritos sem uma boa dose de coragem e de curiosidade, afinal o conforto de uma verdade a saber, sob os trilhos do conhecimento racional, é paralisante. O curioso, movido por uma coragem mobilizante ousa desestabilizar este conforto, colocando à prova a verdade forjada pelo conhecimento, na experiência de se implicar com ela na aventura de seu pensamento. Tal implicação coloca a pergunta: “até que ponto a verdade suporta ser incorporada?” (NIETSZCHE, 2001, p. 139). Com esta questão, o curioso encontra a

Segundo Deleuze e Guattari (1995b, pp. 14-17), na experiência performativa há uma coemergência entre pesquisador, sujeito e realidade estudada. Em meio a esta coemergência, cruzam-se as forças que tornam possível a emergência desta experiência na realidade.

No espaço ritual da roda de capoeira a experiência performativa é alcançada quando a dualidade dos atores que a compõe é dissolvida em função da emergência de uma realidade onde só existem forças em intenso cruzamento. No plano onde estas forças se evidenciam, surge a impressão dos afetos – como já observado acima. À medida que estes afetos emergem, o clima da roda torna-se mais intenso, ou ainda: “torna-se volátil, quase tátil. Toma conta do

espaço, ou melhor, cria espaço, deixando um rastro de contágio que concentra ainda mais o clima de provocação.”13

A emergência destes afetos não recolhe as impressões dentro de um plano pessoal, que sustenta a identidade do Eu assim como a semelhança do Eu.14 Quando implicado, diria Deleuze, o sujeito unificado, senhor de si, está ausente. Em meio às intensidades que passam durante esta ausência, age um sujeito larvar, único capaz “de suportar os traçados, os deslizamentos e rotações” que se movem em meio à experiência intensiva (2006, p. 308).

Tal sujeito larvar só desponta na experiência performativa quando descobre um espaço e um tempo dinâmicos – os chamados “dinamismos espaciotemporais” na leitura de Deleuze – onde:

só se cavam espaços, só se precipitam os desaceleram tempos à custa de torções e deslocamentos que mobilizam e comprometem todo o corpo. Pontos brilhantes nos atravessam, singularidades nos arrepiam... (DELEUZE, 2006, p. 308).

A roda de capoeira, bem como o exercício da vadiação, foram os espaços e os tempos através dos quais tocamos a dinâmica furtiva, que localiza e dá ânimo ao sujeito larvar. No

real medida do conhecimento: uma medida que não está nem além, nem aquém da experiência, mas está nela definitivamente ancorada.

13 A experiência de campo transporta o pesquisador e o sujeito pesquisado para o plano dos afetos. Como

desdobramento, a produção dos relatos traz estes afetos para dentro do registro escrito, ancorando-os no movimento de produção de conhecimento (PASSOS, et al., 2009).

14 Segundo Deleuze, o Eu deve ser compreendido em extensão, pois “designa o organismo propriamente

psíquico, com seus pontos notáveis representados pelas diversas faculdades que entram na compreensão do Eu”

(2006, p. 360). Já o Eu forma “a especificação propriamente psíquica”, e como tal “é a qualidade do homem como espécie” (2006, p. 359). As diferenças entre o Eu e o Eu são pensadas “em relação a identidade no Eu e nessa semelhança no Eu” (2006, p. 360).

enredar deste “dinamismo espaciotemporal”, as ideias irrompem, trazendo consigo valores de

implicação que dão testemunho e conduzem o escritor ao sistema do Eu dissolvido.15

Voltando ao fragmento de diário citado no início deste item: lá, quando em ato, na roda, uma ideia formigou, dizendo: “o frio na barriga me empaca”. Há um problema (ideia) aí, que aponta para a irrupção do sujeito larvar (implícito no pronome “me”), que, embora

“empacado”, se vê atraído pelo “jogo que não se desata” e se mostra, portanto, em vias de

dissolução frente às relações em que se envolve e é envolvido. Inscreveu-se neste centro de envolvimentos a implicação primária, na qual, “a intensidade está implicada em si mesma, ao

mesmo tempo envolvente e envolvida” (DELEUZE, 2006, p. 338).

No espaço onde este centro de envolvimentos é explicado, há um passo atrás da experiência vivida (mas ainda imerso nas intensidades lá tramadas) se constituiu a implicação secundária, onde as “intensidades são envolvidas nas qualidades e no extenso que as explicam”, dando origem a uma escrita implicada – replicação (DELEUZE, 2006, p. 338).

Assim, sob os domínios de um sujeito larvar atuante, do qual só se tem pistas através das extensões (extensum) que tentam explicar, a seu modo, as intensidades experimentadas,16 a produção dos diários da pesquisa foi sendo forjada: ancorada no campo implicacional.

Através da escrita dos diários foi possível reunir, na forma de relatos, informações objetivas e impressões furtivas. Estas impressões não forjaram um texto interpretativo e a presença de dados objetivos, também não constituíram uma análise objetiva. Entre a objetividade e a subjetividade, o relato se manteve suspenso, atento à captação e descrição daquilo que se deu no plano intensivo das forças, no campo implicacional. Neste espaço “entre”, a experiência performativa – aquela operada sob os domínios do sujeito larvar – mais uma vez impôs seu traço, num rastro atrás que lançou o escritor novamente para dentro da roda de capoeira.

Na escrita do relato, inscrevemos aquilo que julgamos importante, mas à medida que nos deixamos levar por um movimento espontâneo de explicitação17 das experiências vividas,

15 No próximo item iremos nos ater à noção de dissolução do Eu. No momento o que interessa é pensar a potência

da ideia nesta dissolução. Segundo Deleuze, “são as ideias que nos conduzem do Eu rachado ao Eu dissolvido. O que formiga nas bordas da rachadura [...] são as ideias, como problemas, isto é, como multiplicidades feitas de relações diferenciais e variações de relações, pontos notáveis e transformações de pontos” (2006, p. 362).

16 Segundo Deleuze “a intensio (intensidade) é inseparável de uma extensio (extensidade) que a refere ao

extensum (extenso). Nestas condições, a própria intensidade aparece subordinada às qualidades que preenchem o extenso [...]. Em suma, só conhecemos intensidade já desenvolvida num extenso e recoberta por qualidades”

deixamos inscrever também algo mais precioso: dados que permaneciam até então num nível inconsciente e pré-refletido.

Segundo Barros e Kastrup, o alcance de dados como estes não se faz sem certo recolhimento,“cujo objetivo é possibilitar um retorno à experiência do campo, para que se

possa então falar de dentro da experiência e não de fora, ou seja, sobre a experiência”

(PASSOS, et al., 2009, pp. 69-70).

O relato, portanto, não se fez sem uma tomada de fôlego, que nos reportou a um passo a trás, para o campo intensivo das forças, onde nos encharcamos dos afetos em meio ao curso dos acontecimentos, despojando-os no traço de um registro escrito.18

Antes da escrita, portanto, tivemos que se abrir aos diversos pontos de vista que habitavam uma mesma experiência de realidade e nesta abertura, deixamo-nos afetar sem apego pelos acontecimentos vivenciados junto aos capoeiristas. Assim, nos rastros de uma visibilidade implicada nas experiências com a roda e a vadiação, a figura do pesquisador como observador externo e neutro foi sendo dissolvida no rumo porvir das relações tramadas.

No documento O corpo em movimento na capoeira (páginas 57-60)

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