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O jogo com o outro no embalo rítmico da roda

No documento O corpo em movimento na capoeira (páginas 151-156)

Aluno III: Faz uns 15 anos.

II – PRÁTICAS DE CULTIVO

3. A roda de capoeira – experiência ritual e performativa

3.2. O jogo com o outro no embalo rítmico da roda

Os cantos e ritmos que se sucedem depois destes ritos iniciais visam garantir a intensificação dos sentidos e a sustentação da experiência ritual. Tal sustentação, dentro do jogo corporal acontece no desatar da dissimulação. Já tratamos da importância da dissimulação na intensificação do jogo corporal. Neste momento, interessa observar o contexto musical que cerca a cena instalada com a dissimulação. Neste sentido, tal cena é demarcada pelas “quadras” e pelos “cantos corridos”.

Segundo Alvarez:

Os corridos são cantados por um solista e respondidos pelo coro. O cantador, respeitando o enredo do corrido pode improvisar situações presentes ou versar segundo as tradições. Os corridos seguem a alternância do coro e do cantador. Durante os jogos, o cantador pode mudar de corrido, de preferência aproveitando as situações do jogo, da data, da localidade e de muitos outros elementos para louvar e comunicar suas mensagens. (2007, p. 160).

O cantador tem a responsabilidade de lançar o tom, no qual o jogo e a experiência ritual se sustentam. Para tanto, é preciso ter sensibilidade para perceber a evolução ritual em ato. Sem esta habilidade sensível o cantador não está apto a assumir este importante papel dentro da roda. A fala de contramestre Buda ajuda a entender a importância do cantador na instalação e manutenção da experiência ritual e rítmica:

O cantador através do canto ele dá o recado. [...] O cantador que começa puxando o axé pra dentro da roda... É ele que chama o povo a tá cantando junto com ele... Então se ele não tiver entendendo o que tá acontecendo fica complicado... (Entrevista realizada em 31/10/2008).

Em outro momento da entrevista complementa:

a música fala tudo, né, a música fala tudo... Depende também do cantador... Se ele tiver atento pra o que tá acontecendo e pra o que vai acontecer, é impressionante o ambiente que pode ficar a roda, mas se ele não tiver, se o cantador não tiver ligado, a roda pode ser um fracasso... Você pode ficar ali e abaixar no pé da cruz e não vem aquela energia que você precisa pra poder jogar... ela não vem (Entrevista realizada em 28/10/2008).

Os angoleiros são bem cuidadosos com a sensibilidade musical. De modo intuitivo, eles sabem que a base rítmica e musical garante o acesso à experiência ritual.

Há na capoeira Angola uma preocupação forte com o universo musical da capoeira. Mestre Zequinha enfatiza: “é a orquestra e o canto que orientam a roda...” Não há jogo jogado sem ouvidos atentos ao que se passa pelas orelhas... Não há jogo sem ritmo musical... [...].

O som é quase visível de tão denso... Ele converge para o centro da roda e dali diverge, com intensidade, ampliando o campo mítico deste centro, junto à ampliação das ondas sonoras que divagam no espaço, e para além do espaço físico da roda... (Diário n. 13).

Esta impressão registrada na escrita dos diários compõe com a fala de mestre Zequinha:

A gente brinca sem som, sem nada, mas não tem vida nisto... não dá aquilo... pro capoeira jogar e sentir aquilo é preciso do som aqui. [...] Então a bateria faz você entrar no ritmo, faz você sentir o jogo, ver o que o outro tá

fazendo... Isto faz você sair do jogo querendo voltar sempre e fazer isto todo dia... (Entrevista realizada em 20/03/2009).

Algo move o desejo pela roda. O ritmo da bateria de instrumentos é quem guia o capoeirista no rastro deste algo que “faz você sair do jogo querendo voltar sempre e fazer isto

todo dia...”. A fala de mestre Brasília corrobora a ideia lançada por mestre Zequinha: quando

perguntado sobre o que o atrai à roda assim se expressa: “É o ritmo... o ritmo que mexe, o

ritmo que convida a gente... [...] eu entro numa roda se o ritmo me chamar. Se o ritmo não me chama eu não entro mesmo!” (Entrevista realizada em 02/12/2008).

A capoeira Regional também reconhece a importância da música na roda. Mestre Marcial assim pontua:

a roda tem outras influências além do treino, porque pra treinar a gente coloca o CD [...] só que um aparelho de som, por mais sofisticado que seja a única energia que ele passa pra você é a energia elétrica [risos] pode até levar um choque [gargalhadas], então, essa energia ele te passa, mas ele não te passa aquela energia viva de vida, o “axé” que a gente fala na capoeira.

(Entrevista realizada em 01/11/2008).

Em outro momento da entrevista, mestre Marcial demarca: “o berimbau é quem

determina o ritmo do jogo” (Entrevista realizada em 01/11/2008). A fala de mestre Gladson

compõe com este excerto: “um ritmo, o berimbau tocando direitinho, aquela pancadinha no atabaque: „pum, pá, bum, pá, pum, pá‟... aquilo vai te envolvendo...” (Entrevista realizada em

19/11/2008).

É possível realizar vários tipos de toques no berimbau. Segundo Alvarez (2007), para cada toque um tipo de jogo deve ser jogado. Tais toques “ditam os ritmos do jogo, sua velocidade e cadência, assim como o tipo de jogo, mais aberto, fechado, entrecruzado (jogo de dentro), alto ou baixo.” (2007, p. 156).

De fato a experiência rítmica sensibiliza também a capoeira Regional. Todavia, os mestres têm encontrado dificuldades para manter esta prática de cultivo do ritmo. A fala de mestre Marcial ajuda a sustentar esta ideia:

é para os mais velhos estarem tocando e cantando... Hoje numa roda, se você tirar a mão de um moleque, pra você tocar e cantar, você tem que pedir, às vezes, você tem até que implorar [exagerando a situação]. Isto é um absurdo! É o inverso que tem que acontecer... o cara é que tem que oferecer... você não tem que pedir nada. Ele tem que saber que não é o lugar dele ali... lá é lugar para os mais velhos, mas ele quer aparecer, ele quer cantar, ele quer mostrar. Não tem que mostrar nada! É só pra você

aprender, por enquanto! Não tá na sua hora de querer mostrar tanto!

[retomando] Então a música ela é muito importante. A música faz toda a

diferença pro jogo da capoeira (Entrevista realizada em 01/11/2008).

Mestre Marcial toca em um problema bastante freqüente na atualidade, que é o desrespeito pela hierarquia na capoeira. Neste caso, ele dá o exemplo do que acontece na formação da bateria de instrumentos.

O mestre, na posição de autoridade que lhe é conferida, tem a função de alertar os mais novos sobre certos cuidados na constituição da roda. Em outro momento de sua entrevista mestre Marcial relata uma experiência em que conta como chamou a atenção dos mais novos sobre esta necessidade:

muitas vezes já parei a roda e já critiquei por causa de ritmo, por causa de música... A última foi: [e começa a relatar:] Eu tava na roda [...] eu jogando e aí um professor de capoeira começou a cantar: “levanta a saia mulata, não deixa a saia molhar!” Aí eu parei de jogar... É por isto que tem que tá prestando atenção na música, no ritmo e em tudo... Aí parei de jogar, comecei a dar a “volta ao mundo” [andar ao redor do centro da roda, numa

atitude de espera e espreita] e eu ergui assim a barra da calça [...] e o cara

continuava cantando, [...] e eu fazendo o gesto lá da calça e isto e aquilo [...] aí eu parei... parei o ritmo e falei: “ué! Onde você tá vendo a saia aqui que precisa erguer aqui que vai molhar? Tem dois homens aqui jogando, eu sou mestre... e você tá falando aí: “levanta a saia sinhá!” Não tem nada a ver esta música com o jogo de agora!” Então tem que prestar atenção nisto [...] Então a música ela é muito importante. A capoeira ela dá esta liberdade desta criatividade musical, mas você tem que saber aplicar. (Entrevista

realizada em 01/11/2008).

O excerto acima denuncia uma injunção muito freqüente na capoeira Regional: falta cultivo, isto é, falta uma vivência na e da tradição que permita a formação do campo ritual da roda, sem que seja preciso exigir uma formação supostamente devida.

A capoeira Angola também não sai ilesa desta falta de cultivo. A fala a seguir, de mestre Ananias, sugere um descuido da tradição que extrapola a distinção dos estilos e alcança o universo da capoeira como um todo. Assim demarca:

Nós capoeiristas nos guiamos pelos instrumentos. Ele bem tocado, bem afinadinho, a gente se guia por ele... porque o bom capoeirista joga capoeira no som do berimbau... Cadê os capoeiristas de hoje? É tudo maluco, tudo doido, tudo abecedado! O ritmo tá de um lado, o som tá de outro e o jogo tá de outro lado... Tem que chegar junto... comer no mesmo prato tudo junto... Sem som, o bom capoeirista não joga capoeira... Agora, hoje em dia tá cheio de maluco aí que faz uma rodinha sem berimbau, com pandeiro... Aliás nem bater palma batem, é tudo doido, loco, alucinado.... fazendo aquela roda, tudo um bando de maluco... Quem é que vai dar valor pra um cara deste?

Quem vai valorizar uma roda desta? Fala pra mim? Quem é que vai dar valor? [silêncio] [...] Porque o negócio não é chegar dentro da roda da capoeira e estender a perninha... todo mundo sabe estender a perninha, mas entender que é bom... é preciso de muito batente... (Entrevista realizada em

31/08/2009).

O mestre coloca a capoeira em alerta: “cadê os capoeiristas de hoje?” Onde está a

atração instigante que leva o capoeirista a se esgueirar nas tramas insondáveis do ritmo, fazendo desta atração uma prática de cultivo? Ao que parece, muitos capoeiristas fogem do batente, cortam caminhos e com isto se esquecem de cultivar a capoeira em suas existências. Dentre os tantos cortes, o cultivo do ritmo é um dos primeiros da lista. Frente a tal injunção, é possível entender seu desabafo:

Graças a Deus os meus alunos, a maior parte deles, sabem tocar bem um berimbau, sabe afinar os instrumentos, sabem ensinar um preparo físico e sabem tudo... Não são analfabetos, não são otários... não são “meio-a- meio”... (Entrevista realizada em 31/08/2009).

A experiência rítmica se transforma numa prática de cultivo quando o capoeirista aprende a tocar e a afinar os instrumentos e quando faz deste aprendizado um exercício natural e espontâneo em sua vida. A aprendizagem dos cantos, a sensibilidade de adequá-los às demais situações da roda também é uma prática que só se inscreve no capoeirista através de um intenso cultivo da roda e das relações éticas lá engendradas.

Segundo Alvarez:

Abrir espaços de cultivo da parte musical da capoeira é vital no seu aprendizado. Tais espaços têm sido negligenciados em nome dos movimentos. Graças às novas tecnologias, é possível treinar capoeira com sons gravados, levando muitos capoeiras a desenvolverem seu jogo desconhecendo completamente a arte de tocar e ouvir as diversas variações da orquestra. (2007, p. 156).

Cabe ao mestre lançar este sentido do cultivo na vida do aprendiz, e para tanto, serve- se da tradição oral, ensinando sem prescindir da convivência. Segundo Alvarez, o ensino que advém da tradição oral se constitui nos espaços da coletividade e ocorre por imitação, por cultivo de uma atitude instigante que o aprendiz quer tomar para si. Desta forma:

aprender capoeira é realizar em grupo e de modo singular uma penetração nos tempos e ritmos, tateando-os e experimentando essas ocasiões ajudados, ou melhor, acompanhados por um cuidado dos Mestres e da tradição que possuem, não por um conhecimento, mas a sabedoria de dispor dos eventos passados para recriar no presente seus ritos e práticas. (2007, p. 142).

A tradição oral, portanto, coloca mestre e aprendiz lado a lado, e desta forma, ambos se lançam numa aprendizagem da capoeira que ata esta prática ao exercício da própria existência.

No próximo capítulo iremos nos deter neste exercício da existência dentro da capoeira. No momento, o que importa é pensar que a experiência rítmica deve vir de um exercício de cultivo e não de um imperativo prescrito que exige, por força de direito, certo comportamento.

No documento O corpo em movimento na capoeira (páginas 151-156)

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