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Momento cartesiano

No documento O corpo em movimento na capoeira (páginas 30-32)

I – PISTAS PARA UM PLANO ÉTICO

1. A capoeira pelo olhar do cuidado de s

1.2. Momento cartesiano

No momento em que se admitiu que o que dá acesso à verdade é o conhecimento e tão somente o conhecimento a Idade Moderna se inicia.7 No reconhecimento deste deslocamento o momento cartesiano encontra seu lugar e seu sentido (FOUCAULT, 2006a).

A Idade Moderna inaugura outra era da história das relações entre subjetividade e verdade. Uma era em que o sujeito busca a verdade esgueirando-se nas possibilidades de tratamento desta verdade sob os limites impostos pelo conhecimento. Neste ponto o pensamento moderno estrutura sua pergunta fundadora: o que é possível saber? Este questionamento interroga “não certamente sobre o que é verdadeiro e sobre o que é falso, mas sobre o que faz com que haja e possa haver verdadeiro e falso, sobre o que nos torna possível ou não separar o verdadeiro do falso” (FOUCAULT, 2006a, p. 19).

5 Segundo Foucault, em sua leitura do cuidado de si na antiguidade clássica, práticas de si são ações “exercidas

de si para consigo mesmo, [...]. Daí uma série de práticas que são, na sua maioria, exercícios” (2006a. p. 14-15).

6 Na obra A Hermenêutica do Sujeito (2006a), Foucault evidencia as armadilhas de se colocar a fórmula conhece-

te a ti mesmo, como regra geral através da qual se assegura o cuidado de si mesmo. A aplicação concreta, precisa e particular deste “cuidado de si”, traz, por consequência, uma espécie de subordinação deste preceito, como se a expressão do cuidado só fosse legítima aos olhos deste conhecer implícito na fórmula conhece-te a ti mesmo. Sob este olhar, o cuidado só se efetiva se evidenciar uma expressão de si na referência a uma expressão devida. Neste enquadramento, antes da inscrição autoral do cuidado, firma-se um compromisso com uma autoridade de direito, anterior ao autor de fato – ao sujeito enquanto tal. Segundo Foucault o que está prescrito na fórmula conhece-te a ti mesmo não é o conhecimento de si, antes esta prescrição sugere imperativos gerais de prudência (2006a).

7 Quando precisamente este deslocamento foi operado? Foucault é muito cuidadoso ao pontuar historicamente os

acontecimentos. As rupturas e os deslocamentos das formas de pensamento não são tão claramente demarcados no linear da história. Ao pontuar com precisão a figura de Descartes como marco, a partir do qual o pensamento moderno se edificou, se assume uma catalogação da história. Como efeito, a reflexão sobre a história torna-se uma tarefa secundária. Para evitar esta redução Foucault prefere lidar com a expressão “momento cartesiano”, até mesmo para resgatar a noção de temporalidade, como espaço de acomodação e ajuste que diz respeito não só a um esquadrinhamento cronológico, mas à dispersão deste enquadre – que escapa ao registro cabal da história oficial. A noção de „momento‟ cria um meio propício à reflexão dos processos e das transformações aí constituídas (FOUCAULT, 2006; 2009).

A noção de saber assentada no conhecimento baseia-se em uma estrutura lógica e racional que permite ao sujeito do saber certo domínio sobre o objeto (o elemento sobre o qual o pesquisador se dobra na investigação). Sob estes termos, o saber engendra-se por um conhecimento do objeto. A verdade que aí se produz só, e somente só se sustenta enquanto tal nos domínios deste conhecimento.8

Sendo assim, o pensamento moderno deixa de considerar as práticas de si. Assim salienta Foucault:

O conhecimento se abrirá simplesmente para a dimensão indefinida de um progresso cujo fim não se conhece e cujo benefício só será convertido, no curso da história, em acúmulo instituído de conhecimentos ou em benefícios psicológicos ou sociais que, no fim das contas, é tudo o que se consegue da verdade, quando foi tão difícil buscá-la (FOUCAULT, 2006a, p. 24).

Convém demarcar, como pontua Foucault, que durante a Antiguidade, o tema da filosofia (como ter acesso à verdade?) e a questão da espiritualidade (quais as transformações necessárias no ser mesmo do sujeito para se ter acesso à verdade?) jamais estiveram separados. Só muitos séculos depois é que esta cisão entre filosofia e espiritualidade será uma marca de definição sobre a perspectiva do pensamento (FOUCAULT, 2006a).

Importante salientar, no entanto, quais são os termos desta cisão. Descartes – como a grande figura do pensamento filosófico moderno – não nega a espiritualidade. Na obra

Meditações (1962) Descartes parte justamente desta espiritualidade para constituir seu

fundamento de cientificidade: ser sem dar margem à dúvida.

O preço a ser pago por esta fundamentação é a constituição de um saber que se limita a conhecer. Descartes sabe que não compreende isto que é da ordem da espiritualidade – o infinito e Deus – mas, mesmo que ele não compreenda, nem talvez alcance pelo pensamento, ainda assim pode conhecê-lo. Para tanto:

basta que eu conceba bem isto, e que julgue que todas as coisas que concebo claramente, e nas quais sei que há alguma perfeição, e talvez também uma infinidade de outras que ignoro, estão em Deus formal ou eminentemente, para que a ideia que dele tenho seja a mais verdadeira, a mais clara e a mais

8 Para alcançar a verdade a partir do conhecimento do objeto, diz Foucault sobre o pensamento cartesiano: “basta

raciocinar com sanidade, de maneira correta e, mantendo constantemente a linha da evidência sem jamais afrouxá-la, e seremos capazes de verdade” (2006a, p. 234). Sobre esta trilha o saber do conhecimento

operacionaliza sua lógica. Mais adiante no curso da história, Kant suplementa esta perspectiva ao considerar que na própria estrutura do conhecimento se constituem os limites do conhecer, de modo que parece quimérico e paradoxal pensar num saber que não pode ser reduzido sob os termos do conhecimento (FOUCAULT, 2006, p. 235).

distinta dentre todas as que se acham em meu espírito (DESCARTES, 1962, p. 151).

Como desdobramento, contorna-se o âmbito de um “possível saber” que sabe que não compreende uma infinidade de coisas, mas que ainda assim pode conhecê-las. Descartes não só reconhece esta inabilidade de compreensão do conhecimento, mas também forja seu fundamento de cientificidade a partir desta inabilidade:

Não só posso conhecer o infinito sem o „compreender‟, mas o conhecimento desta incompreensibilidade me concebe um conhecimento verdadeiro e inteiro do infinito, embora eu tenha apenas um conhecimento parcial do que ele contém (DESCARTES, 1962, p. 151, nota 83).

Ao definir desta forma o modo através do qual se abre acesso ao saber, percebe-se que esse modo é inteiramente definido pelo conhecimento.

Segundo Foucault, a filosofia define seu ponto de vista a partir desta concepção de saber e com isto, o pensamento filosófico “sobrepõe as funções da espiritualidade ao ideal de

um fundamento da cientificidade (2006d, pp. 279-280).

Ao forjar um acesso à verdade através do conhecimento, a Idade Moderna firma a verificação de toda experiência à luz da evidência – do elemento que possibilita a determinação do saber. Desta forma, o campo da consciência invade o espaço do saber e barra a possibilidade da dúvida, permitindo a definição do procedimento filosófico-científico.

Sob o domínio da consciência, portanto, a produção do conhecimento se engendra na Idade Moderna. A forma como este conhecimento é forjado define a existência própria do sujeito enquanto ser, permitindo, nesta dimensão do “possível saber”, o acesso do sujeito à verdade. Aquilo que escapa a esta ordem de apreensão não produz conhecimento, pois a consciência, enquanto faculdade do entendimento e de definição do sujeito enquanto ser, não alcança aquilo que a ela não se mostra evidente. Nesta inabilidade da consciência transita o cuidado de si mesmo em sua irredutibilidade.

No documento O corpo em movimento na capoeira (páginas 30-32)

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