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O cuidado nas palavras de um grande mestre de capoeira

No documento O corpo em movimento na capoeira (páginas 169-172)

Aluno III: Faz uns 15 anos.

I – O SUJEITO ÉTICO NA CAPOEIRA

3. O cuidado nas palavras de um grande mestre de capoeira

O mestre acompanha a prática de cultivo e nela intervém quando oferece ao aprendiz espaços de encontro com a capoeira. Para tanto, precisa se ocupar com o aluno, dobrar sua atenção sobre ele. Assim demarca mestre Plínio: “o mestre, por sua vez, precisa passar o seu conhecimento de acordo com o tempo do aluno e de acordo com o interesse do aluno...”

(Entrevista realizada em 26/03/2009).

Mestre Plínio recorre à sabedoria de um grande mestre do passado para esclarecer a tarefa do ensino reservada aos preceptores:

O mestre Pastinha dizia que a capoeira está dividida em três partes: a primeira é esta que a gente vê, a segunda e a terceira está embutida no eu de quem aprendeu [...] Como está embutida no eu de quem aprendeu ela fica impossível de ser revelada, de falar... mesmo que eu quisesse dar uma explanação melhor pra você seria impossível, porque é uma coisa mais de sentir, de intuir, do que de falar, né? [...] Então, quando a gente passa a

fazer uma capoeira para as pessoas de fora a gente esqueceu esta coisa de fazer pra você mesmo. (Entrevista realizada em 26/03/2009).

O fragmento acima registra a inviabilidade de se traduzir em palavras um aprendizado que se passa nas tramas do sentir e do intuir, e que são, portanto, “embutidas no eu de quem

aprendeu”.

A primeira parte da capoeira – “esta que a gente vê” – é o movimento corporal. A própria fala de mestre Plínio dá indícios para entender a fala do mestre Pastinha nestes termos. Assim pontua:

as coisas que mais me motivaram no aprendizado da capoeira foram, primeiramente, foi a plasticidade dos movimentos... Eu queria fazer aquilo, achava que aquilo ia me destacar entre meus amigos, iria me trazer respeito. Porém, depois de muitos anos de prática, eu percebi que existia uma outra... uma coisa dentro da capoeira, uma essência que é muito difícil da gente até explicar ela, [pois ela é] muito superior a isto... (Entrevista realizada em

26/03/2009).

Seguindo os rumos de uma atração que mestre Pastinha ajudou a despertar, mestre Plínio foi percebendo a profundidade das palavras de seu preceptor. A primeira parte, o movimento, foi revelada, mobilizando-o à prática da capoeira. O tempo o colocou às voltas com a segunda e a terceira partes, permitindo a lapidação da capoeira enquanto arte de seu viver. A fala de contramestre Buda se encaminha nesta mesma direção apontada por mestre Plínio:

no princípio a gente tem o primeiro contato com a capoeira e a gente quer aprender e se importa mais com os movimentos, né... porque você quer pular, que você quer fazer gato, quer fazer um macaco... você quer ser melhor que o outro, mas somente com o tempo que você vai percebendo que estas coisas não são o mais importante dentro da capoeira... É legal você fazer um gato, é legal você fazer um macaco, é legal você fazer um mortal, mas com o tempo de capoeira você ai vendo que estas coisas são superficiais àquilo que a capoeira tem pra oferecer. (Entrevista realizada em

31/10/2008).

Ao dobrar a atenção sobre o movimento, o aprendiz em processo de iniciação da capoeira se coloca frente a si mesmo e frente às possibilidades corporais que se desdobram da conversão do seu olhar por sobre esta dimensão carnal irredutível. Assim, o capoeirista se vê às voltas com aquilo que se passa pelo corpo, o movimento corporal e, nestes domínios, “se importa mais com os movimentos”, pois só assim poderá inscrevê-los em seus músculos e

O aprendiz iniciante, portanto, ocupa-se com a compreensão do esforço, sem a qual não encarna a capoeira em seu corpo. Tal processo de encarnação não se resume a uma prática de preparação física. É claro que, enquanto espaço de lapidação e refinamento, a preparação física também está incluída na busca pelo domínio do movimento, mas não se trata de um esforço restrito à aquisição de habilidades específicas.3 A preparação, tal como já observado no terceiro capítulo deve abrir espaços de encontro com a capoeira, onde as proposições se dissolvem no campo da convivência com o diferente, no aprendizado da malícia e da dissimulação e nas experiências rituais da roda. Desta forma, pensar a compreensão do esforço implica em ir além do movimento corporal, na trilha das multiplicidades4 que se revelam quando se cultiva a capoeira no corpo.

Quando a prática da capoeira se resume à aquisição de habilidades específicas, não há domínio do movimento. A fala de mestre Plínio ajuda a sustentar esta ideia:

tem muito capoeirista que começa na capoeira, se forma na capoeira e depois pára com a capoeira, principalmente porque quando ele deixa de fazer certos movimentos, ele não aprendeu a cantar, ele não aprendeu a tocar, ele não aprendeu a falar da capoeira, ele já não se sente com tanto prazer na roda, como os outros falam, e ele deixa a capoeira, porque ele ficou ligado só na primeira parte, que são os movimentos (Entrevista

realizada em 26/03/2009).

A falta de cultivo dos outros movimentos da capoeira impede uma relação mais aprofundada do sujeito com a atividade que exerce. Sem cultivo não há mobilização das multiplicidades que o movimento suscita, e desta forma, não é possível pensar em domínio do movimento. A fala de mestre Plínio aponta pistas de como se esgueirar nas trilhas do cultivo: é preciso aprender a cantar, a tocar, a falar da capoeira, a se deixar levar pelo prazer de entrar na

3 A ideia de domínio do movimento aqui suscitada remete a concepção labaniana. Para Laban (1978), o domínio

do movimento potencializa o indivíduo na criação e recriação do espaço. Desta forma, não se trata de um domínio que se tem e com o qual se pode contar aplicando-o arbitrariamente às situações porvir, pois neste caso, não haveria recriação, mas reincidência de uma criação prévia (anterior à experiência de movimento), já estruturada. Trata-se, portanto, de um domínio a se conquistar a cada vez que o sujeito se lança na experiência de movimento. A busca pelo domínio aponta para um processo de refinamento do esforço que está sempre porvir no exercício de se implicar na experiência de movimento. Inscreve-se neste refinamento porvir, a possibilidade da recriação, daí Laban pensar o domínio como algo potencial e, portanto, não palpável, que não se acomoda a

priori sem antes deixar de ser domínio (LABAN, 1978; ALVES, 2007).

4 Segundo Deleuze, a multiplicidade designa “uma organização própria do múltiplo como tal”. Tal organização

revela o processo de encarnação de uma Ideia. A organização do múltiplo torna possível a apreensão das coisas como encarnações, “como casos de solução para problemas de Ideias”. Desta forma, a organização do múltiplo

vai do virtual à sua atualização, “da estrutura à sua encarnação, das condições de problemas aos casos de solução...” (2006, pp. 260; 262).

roda. Estas práticas de cultivo concorrem a favor do domínio do movimento, pois ajudam a implicar a capoeira nos modos de ser do capoeirista.

O cultivo faz o capoeirista esgueirar-se na trilha das multiplicidades e, ao implicar-se com elas, a segunda e a terceira partes da capoeira vão sendo “embutidas no eu de quem

aprendeu”. Não é possível revelar em palavras este acesso às partes embutidas da capoeira,

pois o acesso à multiplicidade não concorre à organização de uma identidade (DELEUZE, 2006, p. 206), à sua representação verbalizada, mas a um processo de encarnação que aponta para um exercício de cultivo.

No documento O corpo em movimento na capoeira (páginas 169-172)

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