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O cuidado de si na relação mestre-aprendiz Éros

No documento O corpo em movimento na capoeira (páginas 37-41)

I – PISTAS PARA UM PLANO ÉTICO

1. A capoeira pelo olhar do cuidado de s

1.5. O cuidado de si na relação mestre-aprendiz Éros

Outra característica importante na noção de cuidado de si é que este cuidado não é um exercício solitário. O olhar do cuidado de si mesmo só se efetua na relação que este “si mesmo” estabelece com o outro.

Assim demarca Foucault:

O outro ou outrem é indispensável na prática de si a fim de que a forma que define esta prática atinja efetivamente seu objeto, isto é, o eu, e seja por ele efetivamente preechida. Para que a prática de si alcance o eu por ela visado, o outro é indispensável (FOUCAULT, 2006a, p. 158).

Nesta relação com o outro encontra-se a figura do mestre: o mediador na relação do indivíduo com sua constituição de sujeito; o diretor da constituição do sujeito enquanto tal.

Em Platão – citado por Foucault – a relação de direção se inscreve na relação amorosa. Nesta medida,

o mestre é aquele que cuida do cuidado que o sujeito tem de si mesmo e que, no amor que tem pelo discípulo, encontra a possibilidade de cuidar do cuidado que o discípulo tem de si próprio. Amando o rapaz de forma desinteressada, ele é assim o princípio e o modelo do cuidado que o rapaz deve ter de si enquanto sujeito (2006a, p. 73-74).

Já nos autores da época imperial, particularmente em Sêneca, a relação de direção

“inscreve-se no interior da amizade, da estima, de relações sociais já bem estabelecidas.”

(FOUCAULT, 2006a, p. 483).

O mestre, como aquele que não só transmite um saber, mas que intervém sobre o sujeito, estendendo-lhe a mão para ajudá-lo a se apropriar de um modo de ser, precisa pautar sua intervenção à luz de uma ética. Surge desta necessidade a noção de parrhesía15 observada pelos epicuristas.

A parrhesía, diz respeito à preparação que o mestre deve passar para dirigir seu aprendiz como convém. A franqueza abre o pensamento, permitindo que o mestre utilize o conhecimento para a transformação, a modificação, a melhoria do sujeito (FOUCAULT, 2006a).

Para Epicteto – citado por Foucault – só é possível utilizar o lógos (o conhecimento) no traço de uma lexis, ou seja, uma maneira de dizer as coisas, e tal maneira não deve ser outra senão a parrhesía. O aprendiz só toma um discurso para si quando o que lhe é dito não é artificial e fingido, mas franco, liberto, portanto, da ordem da parrhesía (FOUCAULT, 2006a).

As regras da parrhesía são definidas pela ocasião, ou seja, é no ato, na relação que se estabelece com o outro que a forma do discurso verdadeiro é modalizada (FOUCAULT, 2006a).

Uma relação mediada à luz da parrhesía não recusa os conhecimentos. Aquele que pratica a parrhesía ousa suspender o status que mantém o sujeito como objeto de um discurso

15 A parrhesía é traduzida como “franqueza”. Trata-se de “uma regra de jogo, um princípio de comportamento

verdadeiro, para requisitar àquela verdade que o afeta, isto é, que o coloca em movimento: que o transforma.16

Todavia, Foucault coloca-nos em alerta quanto às condições desta relação com o mestre na tradição estoica, ao demarcar que em meio a este encontro franco se instalam também mecanismos de controle que reduzem a voz do cuidado, moldando-a como convém.

Foi nos séculos I e II que a prática de si vinculou-se mais intensamente à prática social, permitindo a regulamentação do cuidado segundo uma ordem devida. Doravante, o sujeito não volta o olhar para si sem a mediação de um outro. Ao constituir esta relação entre os indivíduos, a prática de si se tornou uma espécie de “princípio de controle do indivíduo pelos outros” (FOUCAULT, 2006a, p. 191-192).

Nestes termos, a direção do mestre tem a função de corrigir o sujeito, retificá-lo e reformá-lo da corrosão imputada pelo vício. A função do mestre, na tradição estóica, é fazer o aprendiz dominar a si mesmo sendo virtuoso, firme, sereno na adversidade e forte contra os prazeres passageiros (FOUCAULT, 2006a, p. 161).

Tal tarefa direcionada ao aprendiz requer um saber teórico e um saber prático que só é adquirido através de um treinamento zeloso que não negligencia o esforço. Inscreve-se aí, uma série de prescrições extremamente rígidas que constituem um ascetismo estóico pautado em práticas de renúncia, abstinência e interdição. Mede-se nestes termos – na tradição estóica – o preço a ser pago pelo sujeito no domínio de si.

1.5.1. Saber relacional: um caminho na busca pelo dizer verdadeiro

Há, no entanto, outra face desta história que inscreve a condução do mestre na ordem da retificação moral. Em meio à peculiaridade do ascetismo da época imperial desenvolve-se uma nova ética das relações sociais. Uma ordem que ata teoria e prática, verdade e ato, dizer e fazer, verdade e vida. Tal desenvolvimento mobiliza a parrhesía, segundo o curso de um saber relacional.

16 Tal verdade não é outra senão aquela que é mobilizada pela physiología. Segundo a leitura de Foucault sobre

Epicuro, a physiología é o conhecimento da natureza - physis. Tal conhecimento é “suscetível de servir de princípio para a conduta humana e critério para fazer atuar nossa liberdade [...], é também suscetível de transformar o sujeito [...] em um sujeito livre, um sujeito que encontrará em si mesmo a possibilidade e o recurso de seu deleite inalterável e perfeitamente tranqüilo” (2006a, p. 294).

O que aqui chamo de saber relacional pode ter várias interpretações. A noção de cuidado de si mesmo é o eixo sobre o qual estas interpretações se aproximam. Foucault (2006a) irá se dedicar a uma verificação desta dimensão de saber a partir de Demétrius, Sêneca e Marco Aurélio.

Para esta expressão – saber relacional – mais especificamente, tomamos suas considerações a partir de Demétrius. Segundo este filósofo – citado por Foucault (2006a, pp, 288-291) – há que se ter uma utilidade no conhecimento que se engendra. Esta utilidade pode ser garantida observando-se as relações do sujeito com tudo que o cerca. Deste exercício surge o saber relacional.

Para saber se um conhecimento é útil ou não, é preciso verificar a que ponto este conhecimento torna possível uma mudança no modo de ser do sujeito. A verdade, sob a dimensão deste saber relacional, reside neste exercício de transformação e não no interior dos termos do conhecimento. Assim, o sujeito, enquanto tal, só é capaz de verdade quando “efetua em si mesmo certas operações, certas transformações e modificações que o tornarão capaz de verdade” (FOUCAULT, 2006a, p. 234).

Trata-se, portanto de um exercício da verdade que só se instala quando o sujeito se coloca em relação. À luz do saber relacional observam-se, de maneira privilegiada, os indícios do cuidado de si, pois, deste ponto é possível verificar como o sujeito faz uso de suas potencialidades e habilidades nas relações em que se envolve. O saber relacional torna possível a visualização das formas através das quais o sujeito toma para si certos conhecimentos para reestruturá-los (ou reacomodá-los) segundo as demandas situacionais instaladas no ato relacional em que se envolve.

O esforço aqui é redefinir o papel do conhecimento dentro deste deslocamento instalado pelo saber relacional: a que ponto este deslocamento suporta o conhecimento e sob quais condições? (FOUCAULT, 2006a, pp. 287-297).

E na modernidade: o que fica de tudo isto? Com este salto na história, queremos alcançar nosso campo de investigação, de onde indagamos: a relação mestre-aprendiz na capoeira manifesta este Eros e este saber relacional? Como o Éros escreve uma ética na relação mestre-aprendiz na capoeira?

No documento O corpo em movimento na capoeira (páginas 37-41)

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