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A escrita dos diários de pesquisa

No documento O corpo em movimento na capoeira (páginas 73-76)

Aluno III: Faz uns 15 anos.

II – MAPEAMENTO DA INVESTIGAÇÃO

1. A escrita dos diários de pesquisa

O contato com os grupos de capoeira e com os mestres inspirou a escrita dos diários de pesquisa. Trinta diários foram produzidos de Novembro de 2008 à Agosto de 2009.

Através dos diários, as observações e frases captadas em meio à vadiação e à roda de capoeira se transformaram em conhecimentos e descrições de modos de fazer.

O texto dos diários não constitui grandes narrativas de uma única história, mas fragmentos que trazem um esforço performativo, na busca por palavras que expressem a experiência vivida com a capoeira e compartilhada com os capoeiristas. Estivemos atentos, como dissemos, a não circunscrever este registro a um plano pessoal.35

35 Optamos pela produção de um relato sobre a relação do pesquisador com a capoeira. Os primeiros diários se

ocupam deste relato. Assim, demarcando a experiência pessoal que se passou, chamando a atenção para as intuições que levam o pesquisador à pesquisa, mas, ao mesmo tempo, demarcamos a necessidade e o

A experiência investigativa trouxe a necessidade de um distanciamento da pessoalidade (que figura a identidade do pesquisador) em função da invasão do coletivo36 no exercício de implicação realizado. Tal distanciamento foi registrado em um movimento crescente desde os primeiros diários, como impressões intuitivas de um pesquisador preocupado mais com a experiência porvir junto à capoeira do que com a edificação de um conhecimento por ele revelado. Observem-se como esta impressão foi forjada inicialmente na escrita dos diários:

O tempo passou [...] e agora [...] me vejo no mesmo ponto de onde comecei: a capoeira. Levo-a comigo em minha prática acadêmica, mas não mais do mesmo modo. A vida trilhou outros rumos. A partir da capoeira conheci a dança e por aí construí minha prática existencial. Todavia, os valores experimentados na capoeira não ficaram lá atrás, no curso da história, eles vieram comigo, tomaram outros contornos, buscaram novos ritmos, novos passos, e ainda me atravessam, mobilizando-me à vida no exercício de me colocar em movimento.

[...] a capoeira foi a prática que me fez sentir o sabor da vida. Foi com

ela que descobri minhas potencialidades. Na cadência da ginga, na plasticidade da dança-luta, na vocalidade do canto, na ladainha, despontava um desejo... um desejo de me afirmar como ser no mundo, e o movimento corporal era meu maior trunfo para esta finalidade.

Na capoeira, o gosto pelo jogo rivalizava com o toque do berimbau, de maneira que não via o jogo sem a dança. Gostava de tomar a capoeira como um elo que me unia a minha ascendência negra e mulata, mas ao mesmo tempo à minha infância modesta, cristã e católica, sacudida pelo sincretismo religioso imbuído na cultura regional. A capoeira fez surgir em mim o gosto pelo ritmo e pela expressão artística, mas nos bailes da vida, outros desafios me chamaram, e por outras rodas fui me aventurar.

[...] Deste ponto não mais posso avançar sem reclamar pelo exercício de

pesquisa. Sobrevoar minha história de vida com a capoeira me trouxe até aqui. Se daqui quero avançar só a experiência com a capoeira pode trilhar novos rumos. Um rumo trilhado junto com a capoeira, não por sobre ela. Tal rumo implica em aceitar novos encontros com a capoeira. Encontros que me levarão a redescobri-la. Para tanto, a vadiação me chama... travessa... provocante [...].

A experiência passada me aproxima, mas não garante meu encontro com a capoeira. Só a disposição a novas experiências torna possível este encontro. Uma disposição [...] que me instiga à roda. (Diário n. 01).

compromisso com novos modos de encontros com a capoeira, que permitirão, inclusive, uma redescoberta da capoeira, a partir do processo de implicação constituído com os sujeitos. Desta forma o pesquisador deixa sua pessoalidade na porta de entrada, para se entregar à experiência de encontro com os capoeiristas.

36 A noção de coletivo que aqui se engendra nada tem a ver com o “domínio da organização formal da

sociedade” (PASSOS et al., 2009, p. 93), pois, nestes termos, o coletivo se confunde com o social e, nesta

confusão o coletivo perde de vista o indivíduo. Neste sentido, a noção de coletivo aqui designa “relações estabelecidas entre dois planos – o plano das formas e o plano das forças – que produzem a realidade”

O texto acima traz a impressão de uma pessoalidade já sendo colocada na porta de entrada, onde a intuição reclama pela implicação, sem a qual não se abriria acesso ao exercício investigativo.

É possível perceber pelo estilo da escrita do fragmento citado que o escritor já se vê contaminado pelas leituras mobilizadas na pesquisa bibliográfica. A iniciação ao campo é sempre um convite ao desafio que faz despontar uma pontada de temor, misturado com euforia, ansiedade e animação. Ao tecer uma escrita forjada entre a eminência do plano de experiência e o plano teórico e ético assumido, colocamo-nos numa atitude de intervenção para acompanhar um processo que não conhecíamos de antemão, tateando-o às cegas no curso da investigação.

A possibilidade da escrita acentuou-se quando aceitamos o desafio da implicação junto à capoeira. Para tanto seguimos as pistas deixadas por Deleuze: “não se explicar demais”

(2006, p. 364). A explicação beira o perigo da sobreimplicação, onde o escritor – nos domínios de uma identidade individualizada – dissolve a estrutura furtiva e eventual do centro de envolvimento – aquele no qual o espaço-tempo dinâmico da relação entre pesquisador e sujeito se desenvolve – para, de um lado, elevar a escrita forjada ao estado de objeto e, de outro, elevar o esforço da escrita ao direito de uma autoria.

Assim, atentos ao risco da explicação excessiva, amainamos as pretensões de uma autoria que tudo quer dobrar sobre seus domínios, e apreendemos aquilo que se passou na implicação, ou seja, lá, no momento mesmo em que a pesquisa era plena relação entre as partes. Para tanto, mergulhamos novamente na experiência para pensá-la no “momento em que

o expresso ainda não tem (para nós) existência fora daquilo que o exprime...” (2006, p. 364).

Tal mergulho não se faz sem acionar uma memória inventiva, pois, do contrário, a rememoração reclama pelo contorno restritivo da autoria na escrita. Segundo Deleuze, a memória como faculdade transcendental de um passado puro pode ser tanto rememorativa quanto inventiva. Enquanto a primeira opera “termos e lugares fixos”, a segunda compreende

“essencialmente o deslocamento e o disfarce”:

Uma é estática, a outra é dinâmica. Uma é em extensão, a outra é intensiva. Uma é ordinária, a outra é notável e repetição de singularidades. Uma é horizontal, a outra é vertical. Uma é desenvolvida, e deve ser explicada; a outra é envolvida, e deve ser interpretada [...]. Uma é de exatidão e de mecanismo, a outra é de seleção e de liberdade. Uma é repetição nua, que só pode ser mascarada por acréscimo e posteriormente; a outra é repetição

vestida, cujas máscaras, deslocamentos e disfarces são os primeiros, os últimos e os únicos elementos (DELEUZE, 2006, p. 396).

É no espaço dinâmico e intensivo onde a memória inventiva se aninha e estende seus domínios que um novo mergulho na experiência foi forjado, abrindo espaços para a escrita como movimento de mapeamento deste retorno ao espaço dinâmico da implicação. Os diários da pesquisa nasceram desta abertura à memória inventiva.

No documento O corpo em movimento na capoeira (páginas 73-76)

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