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O jogo e a conversa: a capoeira na inscrita furtiva do instante

No documento O corpo em movimento na capoeira (páginas 62-65)

I – A INVESTIGAÇÃO EM PAUTA

6. O jogo e a conversa: a capoeira na inscrita furtiva do instante

Depois da benção do berimbau, os oponentes se lançam à ginga. Uma sequência de movimentos me faz lembrar o treino. Lembro-me de ter treinado algo parecido, mas, pensando bem, não foi bem assim, o jogo traçou seus próprios rumos e o capoeirista teve que se virar para adequar a sequência treinada às demandas em ato... Acho que pensou demais: aplicou um golpe, mas esqueceu de jogar. Depois da “meia lua de compasso” levou uma rasteira e caiu de bunda no chão. Fez uma cara, como quem diz: “que raiva! Minha calça branca que estava limpinha! Fiquei com a bunda suja agora!” O capoeirista se levanta, limpa os fundilhos, ginga... cerra os olhos fixando-os atentamente sobre seu adversário. Num lapso, vê o momento da réplica: o oponente, acuado, ginga de lado, pra sair no “aú” e neste momento recebe uma cabeçada na boca do estomago, perde o equilíbrio e despenca sobre a roda. Um sorriso maroto escapa pelo canto da boca, é o suficiente para provocar o outro, vacilão...

O jogo continua, o berimbau repica pedindo pelo jogo. Os corpos testam seus poderes de atuação no embate com o outro [...]. As sequências de

transcendente do pensamento (DELEUZE, 2006). É este exercício que move o cultivo, a curiosidade, o interesse e a disponibilidade do pesquisador junto ao território estudado.

22 Lourau (1998) chama este exercício narrativo mobilizado pela dissolução do humano de escrita automática.

Esta escrita tira do texto o excesso de pessoalidade, permitindo que o autor possa compor o sentido nos domínios de um plano coletivo, onde experimenta o limite da consciência de si.

23 Para ler mais sobre a experiência de intensificação dos sentidos instalada na roda de capoeira, confira-se a

seção II do próximo capítulo, subseção 3: “A roda de capoeira – experiência ritual e performativa”.

24 Segundo Souza, a escrita nos limites de um si fora de si coloca o escritor frente ao abismo da escritura. A

escritura em abismo abriga um pensamento que só se constitui em cena e como tal, está sempre „por fazer‟. Realça-se, assim, a figura de um escritor em movimento, que se insinua na textualidade – na ordem estabelecida pelo discurso – e nela se faz ausente, abandonando-a “absolutamente às vicissitudes de um pensar que não

precede, mas que é concomitante ao ato da escritura.” Desta maneira a escritura vai constituindo um dizer que, “sem preestabelecer o que há a ser dito, deixa aparecer um saber sem sujeito” (2008, p. 209). A escritura posta

ataque e defesa e os esquemas previamente treinados são postos à prova na imprevisibilidade das relações. Dança, jogo e luta se misturam sob a cadência pulsante do instante.[...]

O ataque vai desenhando uma defesa que, por sua vez vai traçando um ataque, e assim, num enredar porvir do jogo, o movimento dos corpos descreve um itinerário imprevisível. Assim, as respostas motoras variam infinitamente, de acordo com as demandas do momento. Estas relações corporais vão aclamando as energias do jogo, intensificando-o. O clima é quase palpável de tão denso (Diário n. 7).

O texto acima descreve o jogo de capoeira como um exercício de diálogo corporal. Este modo de vê-lo também foi registrado na fala dos capoeiristas, mestre Gladson pontua:

capoeira pra mim é uma oportunidade de duas pessoas conversarem direitinho, sem a competição final: “opa, derrubei, acabou!” Até porque perde a ideia do “jogar com” (Entrevista realizada em 19/11/2008).

Contramestre Buda relata:

às vezes as pessoas olham e acham que a capoeira é uma coisa combinada, e não é bem assim. É algo de momento. É um jogo de perguntas e de respostas, aquele que souber responder e perguntar mais é que a gente fala que vence no jogo [...] A gente treina meia lua de compasso? A gente treina parafuso? Sim, tudo isto... mas é difícil você falar que você vai fazer isto dentro do jogo porque depende da situação do jogo, depende do movimento que a pessoa vai fazer pra que você também possa responder de uma maneira, na qual você obrigue esta pessoa, ao mesmo tempo, a te dar a resposta e te fazer uma pergunta. [...] A capoeira é livre, ela é liberta pra você poder na hora da roda criar qualquer outro tipo de movimento, [...] é lógico, a gente treina pra poder fazer, mas na roda [...] é aquilo que seu espírito sentir, que seu coração... e você vai, e joga, e faz (Entrevista realizada em 31/10/2008).

Contramestre Buda enfatiza: “é lógico, a gente treina pra poder fazer, mas...”. A

conjunção adversativa aqui aponta a irredutibilidade de uma experiência que eleva a

performance para o plano das sensações, onde o que vigora é “aquilo que seu espírito e seu coração sente”.

A conversa, portanto, se passa num outro nível perceptivo, onde as habilidades treinadas são extraídas da memória imemorial que as acomoda25 para mobilizar o plano de

25 Segundo Deleuze, a memória imemorial busca o fundamento das coisas, para tornar possível sua determinação,

ou seja, sua subordinação no campo da representação. É operada no plano das formas (logos) pela razão suficiente e, sob estes domínios, invoca a identidade do conceito – tratando-a como princípio – tanto para explicar quanto para compreender aquilo que é submetido à sua apreciação (DELEUZE, 2006, p. 377-382; DELEUZE & PARNET, 2004). Pensar as habilidades corporais sob a perspectiva da memória imemorial, portanto, é entendê- las no campo das representações, onde a razão suficiente descarta aquilo que foge às suas possibilidades de explicação e compreensão (o elemento extraproposicional, ou sub-representativo – DELEUZE, 2006, p. 255) e

forças onde acontece o jogo de capoeira. Da mesma forma que se desenrola um diálogo verbal.26

Assim pontua mestre Marcial: “porque o jogo é ali um diálogo também né, um diálogo

entre os corpos né, e... é a mesma coisa, nós estamos conversando aqui...” (Entrevista

realizada em 01/11/2008).

As palavras de mestre Brasília se encaminham nesta mesma direção. Assim fala:

[no jogo de capoeira] você está em função do cara. [...] quer dizer que você

tem que perceber... é como eu conversando aqui com você, aí você me falou: “Puxa, mas você falou algo interessante aí”, aí você guardou isto e aí você repete... o jogo é a mesma coisa... eu tô fazendo um movimento e “pá”! Eu fiz um movimento e aí você veio e [pensou:] “é aqui que eu vou pegar ele”, aí eu repito o movimento e se você vier eu entro [e te pego]! Entendeu? Isto é jogar capoeira, entendeu? (Entrevista realizada em 02/12/2008).

A relação entre as partes desbrava os rumos da conversa, fazendo-a apontar na direção de um porvir que só se inscreve no ato, no desatar do fluxo da conversa.

Atento a este fluxo forjado no jogo lançamo-nos à produção das entrevistas. Tal produção não serviu como mero momento de coleta de informações, mas como espaço de

enquadra as habilidades corporais dando-lhes um fundamento que pretende definir as condições da experiência possível. Todavia, tal definição não dá conta da experiência real – onde fluem os elementos extraproposicionais (DELEUZE, 2006, p. 108). Pensar as habilidades corporais fora da ordem da representação implica numa divergência e num descentramento, através dos quais suas identidades – acomodadas na memória imemorial – se dissolvem em função da pura presença destas habilidades, como elementos imediatos: como movimento que força o pensamento a pensar sem imagem, sem apelar para o inatismo ou para reminiscências da memória imemorial. Tal movimento divergente e descentrado é próprio da razão múltipla operada sob os domínios da memória transcendental. A razão múltipla dobra a razão suficiente, orientando-a obliquamente até mergulhá-la num sem-fundo, “para além do fundamento, que resiste a todas as formas e não se deixa representar”

(DELEUZE, 2006, p. 380). Em torno deste sem-fundo vigora a “forma pura e vazia do tempo”, onde o

pensamento é mobilizado a pensar, frente ao encarnar das ideias na virtualidade que as mobiliza, isto é, na plena realidade objetiva na qual as ideias se apresentam como problemas, como multiplicidades, no irromper do real (2006, pp. 382-386).

26 Para sustentar esta afirmação reclamamos pela teoria de Laban quando esta afirma que “toda forma de

expressão (seja falar, escrever, cantar, pintar ou dançar) utiliza o movimento como veículo” (1990, p. 100).

Sendo assim, considerando a conversa como um espaço de comunicação que se constitui tanto no jogo dos corpos quando no jogo da palavra falada, o princípio da expressão, em ambos os casos é sempre o mesmo: o movimento e o jogo nele forjado, que Laban diria se tratar do fluxo. Segundo Laban, o fluxo do movimento “é um meio de comunicação entre as pessoas porque todas as nossas formas de expressão como a fala, a escrita [...] são conduzidas pelo fluxo do movimento” (1990, p. 97). A imersão neste fluxo intensifica a experiência de ações

corporais, estimulando novas respostas e enriquecendo a imaginação do movimento (p. 116). Ao que parece, o fluxo do movimento em Laban se aproxima daquilo que Deleuze e Parnet dizem se tratar do plano de forças. Segundo estes autores, no plano de forças não existem regras fixas, modos privilegiados de relação, o que existe é um plano concreto de intensidades e singularidades, que suspendem as formas num interstício que se sustenta no ato, e somente no ato em que as formas são requisitadas no plano das intensidades (DELEUZE e PARNET, 2004, pp. 114-116). O fluxo do movimento em Laban parece encontrar seu canal de expressão na suspensão das formas, na profusão das intensidades. Tal aproximação aqui tecida é importante para sustentarmos a relação tramada entre o jogo de capoeira e a conversa, à medida que dissolve a distinção entre as partes, movendo-as para o plano onde só existem fluxo e forças em relação.

interação, no qual pesquisador e sujeito mergulharam juntos para tecer as tramas daquilo que foi dito.

Soa estranho pensar em entrevistas no âmbito das ciências, sem pensar em sua função catalisadora, afinal, a busca pelo sujeito de pesquisa só parece se justificar se dele o pesquisador quiser extrair alguma informação.

De qualquer modo as informações vêm, é claro, mas a coleta destas informações não se justificou por si mesma. Antes disto, permitiu uma aproximação com o entrevistado, gerando uma espécie de contágio entre as partes; um contágio que se intensificou durante a entrevista, abrindo acesso ao plano da experiência.

A entrevista realizada com mestre Ananias mostra como o pesquisador e o grupo se esgueiraram nas tramas deste contágio:

Mestre Ananias: [...] neste mundo, se não tiver conhecimento, meu filho, tá

frito! Tá frito mesmo! Porque o negócio não é chegar dentro da roda da capoeira e estender a perninha... todo mundo sabe estender a perninha, mas entender que é bom, é preciso de muito batente...

Entrevistador: E o que eu tenho que fazer para entender?

Mestre Ananias: Precisa procurar seguir!! Seguir o regulamento do

mestre... olha bem o que o mestre fala, olha o jeito que o mestre faz e explica tudo... tem que se guiar pelo mestre. Hoje existe um monte de mestre de capoeira por aí.... tá cheio de mestre de capoeira boboca por aí. Eu não troco meus alunos por nada! Não troco por eles! Não troco mesmo!!!

[enfático] Meus alunos não têm diploma não. [...]

No documento O corpo em movimento na capoeira (páginas 62-65)

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