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O cerco ao imprevisível na capoeira Regional

No documento O corpo em movimento na capoeira (páginas 107-111)

Aluno III: Faz uns 15 anos.

II – PRÁTICAS DE CULTIVO

1. O tempo da Vadiação

1.5. O cerco ao imprevisível na capoeira Regional

O treino, enquanto preparação física, quer dar conta das situações de imprevisibilidade, de modo a reiterar a possível sustentação de um controle sobre a performance em meio ao jogo de capoeira. Mestre Gladson argumenta a favor deste controle:

Veja bem: quanto eu treino pra aprender um determinado movimento, quanto eu treino pra melhorar a aplicação deste movimento dentro de uma sequência pedagógica estruturada pra que isto venha acontecer, o que eu estou estabelecendo? Uma meta pra chegar na roda de capoeira, pressupondo o que vai acontecer lá na roda. [...] Então é a mesma coisa assim: quando você faz uma pergunta pra mim eu vou responder utilizando aqueles movimentos treinados, se eu não tiver isto aqui eu não consigo entender a sistemática da roda. [...] eu posso até ser mal educado, de repente atingir você sem saber, sem querer, porque eu não treinei sistematicamente este movimento aqui. Isto é uma realidade! Porque todos os movimentos que eu treino aqui eu vou utilizar na roda... [...] Então a roda vai depender e muito [foi bem enfático] daquilo que eu treinei anteriormente, entendeu? Até porque, quando eu jogo com você eu não sei o que você vai fazer, mas de tanto pesquisar, de tanto ver o que eu faço com meu corpo, o que você faz olhando você, eu vou estabelecer regras sistemáticas pra poder atender a esta sua expectativa. E isto é uma verdade, não sei se assim falando dá pra você perceber isto, mas na prática dá pra te demonstrar o que estou querendo dizer aqui... (Entrevista realizada em 19/11/2008).

Fica evidente a defesa de mestre Gladson pelo treino físico e técnico. Lá, e só lá, no treino, o sujeito garante a assimilação e acomodação de gestos motores que serão posteriormente requisitados na roda de capoeira.

Pautando-se na fala de mestre Gladson é possível dizer que no treino o capoeirista automatiza os movimentos tornando-os cada vez mais precisos. Tal precisão, quando devidamente incrustada nos músculos, é suficiente para dar conta das demandas situacionais do jogo, o que, supostamente, serve como testemunho de um controle motor vigente e irredutível a qualquer experiência consciente de movimento.

Não se trata aqui de atestar a veracidade desta proposição, que atesta a eficiência do cerco à imprevisibilidade. Antes disto, perguntamos pela possibilidade de um desvio desta vigência consciente. Deleuze nos impele a este indagar quando demarca que a ideia de automatismo é perturbada e recoberta “por todo tipo de dissimulações, mil disfarces ou deslocamentos, que distinguem o novo presente do antigo” (2006, p. 154).

A partir desta ideia ousamos pensar que a experiência de movimento deforma a ideia de automatismo, travestindo-a indefinidamente a cada vez que se dá como evento. Assim, a

experiência de movimento abre caminho para apostar neste desvio aqui anunciado. Antes, porém, de se permitir este travestimento, a percepção viciada na vigência dos automatismos nos move ao treino, lançando o pesquisador ao registro a seguir:

O mestre chega, chama o aluno mais graduado. Pede para iniciar o alongamento com todos. [...] Do alongamento, o mesmo aluno passa a monitorar o treino. Começa um aquecimento só com a ginga. De longe o mestre observa... analisa cada um de seus alunos com atenção e cuidado. Num ímpeto, move-se em nossa direção. Aborda um ou outro. Ele tem sempre algo a dizer, seja no movimento complexo ou no mais elementar. Em sua fala, chama-nos à consciência do exercício. Depois de um afetuoso meio- abraço, parte para outro aluno e assim, de aluno em aluno, percorre a todos com o mesmo cuidado e atenção.

Da ginga se desdobram algumas sequências elementares (ginga e negativa; ginga, negativa e rolê; ginga e meia-lua; ginga e queixada; ginga e armada; e por aí vai...). A ideia é trabalhar possibilidades de movimento na relação elementar entre corpo e espaço.

O mestre intervém. Parece se adiantar na correção de meu pensamento e argumenta: por mais elementar que possa parecer esta relação entre corpo e espaço, o oponente já está virtualmente ali em sua frente. Deve, pois, imaginá-lo e trabalhar com esta imaginação de modo a experimentar a complexidade que está porvir.

Todos olham o mestre fixamente; cerram o olhar num claro esforço para assimilar tudo aquilo que escutam atentamente. Entre o esforço do entendimento e o encantamento daquele irromper de palavras, o corpo imóvel parece estar assimilando: armando sua estratégia para alcançar tudo aquilo que ouviu pela boca do mestre.

A prática é retomada... um pouco mais e consigo ver o oponente imaginado. Por pouco não é real.

Depois disto trabalhamos em duplas. Experimentamos sequências de movimento de ataque e defesa. O monitor nos avisa da necessidade de trabalhar a lateralidade: soltar o movimento com a direita e com a esquerda. Pensando bem, não sei se foi o monitor, ou o próprio mestre que alertou quanto a esta necessidade. Não importa: vejo na monitoria a face do mestre... engraçado como o aprendiz vai se tornando parecido com seu mestre. Não importam as diferenças físicas, as semelhanças parecem se incrustar nos gestos, nas falas, nas atitudes...

Aliás, a fala é preciosa nos treinos [...]. É pelo discurso verbal que o mestre investe para chamar o aprendiz à consciência de seu esforço [...]. O aprendiz escuta, o corpo absorve, a prática experimenta... acomoda, reacomoda e, neste liame contínuo e dinâmico, move-se o aprendiz a um maior domínio de seu esforço.

Vamos para a roda... não sei por que, mas acho que esta mesma consciência me acompanha... não consigo me desatar dela ou, ao menos, atenuá-la... Paro então de pensar nesta vigência, neste rastro consciente... Até porque, ou eu penso nela, ou jogo, não dá pra fazer as duas coisas ao mesmo tempo... deixo as intensidades virem: calor, suor, odor, o chão, a música, as palmas, a esquiva e o outro em minha frente... (Diário n. 05).

A mediação cognitiva na experiência corporal é preciosa no treino. Ela diz muito quando a razão suficiente é chamada à pauta, na intenção de compreender o passo a passo da experiência possível. O corpo imóvel, o olhar fixo e cerrado, atento às palavras do mestre, denuncia a vigência de um processo de assimilação que corre nos domínios de uma consciência ávida pela determinação da experiência. Assim, no fôlego entre uma repetição e outra, o mestre se ocupa em ajudar seu aprendiz a se apropriar de um hábito que gradualmente vai formando o padrão de certo comportamento motor.

Analisemos mais detidamente a situação registrada no fragmento de diário acima: mobilizamo-nos à prática de certa habilidade; lá, no momento mesmo em que a repetição é movimento, experimentamos forças puras, traçados dinâmicos no espaço. Num dado momento, o mestre nos chama à consciência; paramos; fixamos o olhar atento sobre ele; o corpo se imobiliza; assimila. Nesta imobilização a consciência é chamada à pauta; forma-se então um ponto fixo, sobre o qual se ajeita um Eu que contempla, imbuído da tarefa de avaliar e medir “à quantas anda” o hábito, o comportamento. Neste momento, imóvel, um registro cognitivo é forjado, permitindo a atualização do hábito. Assim, entre um fôlego e outro da repetição, o comportamento registra automatizações que dão testemunho de um domínio em processo de aquisição.

Cada chamada à consciência do mestre implica na edificação de um ponto sobre o qual a consciência se ajeita. Assim, de um ponto a outro, na sucessão do treino, o canal da razão suficiente é re-sintonizado, o que mantêm o treino sempre afinado com os movimentos da recognição.

Segundo Kastrup (2001), a aprendizagem como recognição torna possível a conscientização do itinerário que leva de um estágio inicial de aprendizagem à aquisição de hábitos que são requisitados e aplicados como soluções que querem dar conta dos problemas postos. Quanto mais automática a requisição e aplicação destes hábitos, mais eficiente a solução dos problemas.

Segundo Alvarez, o hábito, na recognição, reduz a aprendizagem ao treino sistemático de respostas ou ações gerais que operam um reforço dos modelos e esquema motores assimilados (2007, p. 103). Desta forma, o hábito aponta para um “aprender como”, sustentado sob os domínios da recognição.

Para Deleuze, no hábito, “só agimos com a condição de que haja em nós um pequeno Eu que contempla” (2006, p. 27). Este “Eu que contempla” é o agente que impõe a

recognição. Todavia, entre os pontos que sustentam a edificação deste hábito corre a repetição que não se deixa capturar pelo hábito, justamente porque não compreende em si a contemplação, mas antes, o movimento. Assim, enquanto movimento, a repetição:

implica uma pluralidade de centros, uma superposição de perspectivas, uma imbricação de pontos de vista, uma coexistência de momentos que deformam essencialmente a representação (DELEUZE, 2006, p. 93).

É por isto que a repetição sempre aponta para a possibilidade da transgressão, pois ela é da ordem do movimento e, enquanto tal, sempre se desloca, se aperfeiçoa, se disfarça.

O capoeirista Regional encontra caminhos que o desviam do cerco à imprevisibilidade quando enxerga a constituição dos hábitos em suas entrelinhas, onde corre, indomável, o movimento e as potências de transgressão que eles suportam. A fala de mestre Marcial ajuda a compor esta ideia:

tem as sequências de movimentos do mestre Bimba, tem as sequências que às vezes passo pro pessoal [...] e isto é legal como forma de treinamento, pra pessoa poder memorizar e desenvolver seu jogo, mas... não sei... às vezes isto ia ficando meio... sei lá... foi ficando meio automático, então percebi a necessidade de fazer mais livre mesmo, sem estar pensando naquela sequência e tal, e isto aqui é assim, e não sei o quê, enfim... deixei de determinar a sequência [...] Eu sei que tem alguns grupos que fazem isto, não sou contra [...] eu só acho que tem que tomar cuidado porque [...] no final fica tudo muito igual, fica tudo uns robôs [risos]. Eu não sei, é esquisito. Então, naturalmente fui deixando de fazer, sem pensar no porquê [...] Hoje eu me preocupo em fazer a cada dia uma coisa diferente [...] Enfim, preferi dá um pouquinho mais de liberdade da pessoa crescer dentro da capoeira e vivenciar mais, né, sem perder a tradição nem nada, né... (Entrevista

realizada em 01/11/2008).

A prática de ensino da capoeira foi ensinando o mestre sobre a necessidade de ir além das sequências de movimento que visam à assimilação e ao reforço de esquemas motores prévios. O mestre não deixa de registrar a importância deste momento, em que a recognição estende seus domínios na busca pela automatização dos movimentos, mas também alerta para a necessidade de certo relaxamento sobre esta tendência à automatização, do contrário, “fica

tudo uns robôs” e isto “é esquisito”, pois foge da tradição da capoeira.

A fala do Mestre inspira pensar que a vivência é o meio a partir do qual o capoeirista pode experimentar este escape à recognição, pois ao vivenciar, o capoeirista não se dedica apenas à ordem disciplinar imposta no treino físico, mas também se depara com a vadiação, o aprendizado da dissimulação, da malícia, o momento ritual do jogo, onde experimenta a

possibilidade de expansão dos sentidos, liberando-se do controle consciente sobre a

performance sensório-motora. Assim, ao alimentar o desejo por esta vivência intensa, o

capoeirista Regional também se vê às voltas com o imprevisível, o que orienta seu olhar prospectivo e aventureiro e aprofunda suas relações com esta prática.

No documento O corpo em movimento na capoeira (páginas 107-111)

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