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A dura elaboração de si – Áskesis

No documento O corpo em movimento na capoeira (páginas 34-37)

I – PISTAS PARA UM PLANO ÉTICO

1. A capoeira pelo olhar do cuidado de s

1.4. A dura elaboração de si – Áskesis

Quando se fala em ascese trata-se de um saber prático que prepara o indivíduo para os acontecimentos da vida. A ascese, portanto, requer uma preparação (paraskeué).

A partir de um texto de Demétrius, Foucault verifica o exercício de preparação do atleta e observa que o bom atleta é aquele que se mantém sempre alerta e domina a prática que

12 O movimento do Éros se coloca na relação entre o sujeito e o mestre. Nesta relação se inscreve a necessidade

de uma ética que dirige a condução da consciência (FOUCAULT, 2006a, pp. 202).

13 Ao se reconhecer como sujeito cognoscente, o sujeito se acomoda num status que garante a este sujeito a

possibilidade de acesso à verdade de seu ser. Tal acesso não se faz, neste caso, senão pela consciência, onde vigora a faculdade do entendimento. O sujeito só se reconhece enquanto cognoscente quando contorna seu status à luz da consciência (FOUCAULT, 2006a, p. 20-23; ver nota p. 35).

tomou para si. Para tanto, a prática precisa estar nele arraigada e implantada de modo a incrustá-la no espírito, através da repetição.

Sem esta inscrição da prática no corpo, o atleta não tem o domínio do lógos. Este logos é o equipamento material do atleta, sua armadura, e como tal, é uma proposição que prescreve o que é preciso fazer. O lógos precisa estar sempre ao alcance da mão.

É preciso tê-lo à mão, isto é, tê-lo, de certo modo, quase que nos músculos. É preciso tê-lo de tal maneira que se possa reatualizá-lo imediatamente e prontamente, de forma automática. É preciso que seja realmente uma memória de atividade (FOUCAULT, 2006a, p. 393).

Tal materialidade (esta armadura, este lógos), para que possa se constituir enquanto uma preparação de que se tem necessidade, precisa ser não somente adquirida, mas também dotada “de uma presença permanente, ao mesmo tempo virtual e eficaz, que permita que [a

ela] se recorra sempre que necessário” (FOUCAULT, 2006a, p. 391). Firma-se nesta presença permanente, segundo Demétrius – citado por Foucault (2006a) – a relação indissociável entre preparação e modos de ser.

Para que esta presença permanente seja possível, a repetição é uma prática primordial. Demétrius – citado por Foucault – argumenta que através das repetições, ou seja, dos exercícios de rememoração, o lógos pode integrar-se no indivíduo, “fazer parte de certo modo de seus músculos e de seus nervos” (2006a, p. 394). Para tanto é preciso seguir um regime de

abstinências.

Tal regime, em Platão – citado por Foucault (2006a, p. 516) – tem por objetivo formar a coragem física do indivíduo – para que ele possa suportar os acontecimentos exteriores sem sucumbir a eles – e formar sua moderação – o seu domínio de si.

Já no período imperial, a preparação atlética desaparece por completo.14 Em Musonius Rufus, pensador do período imperial – citado por Foucault – a preparação virá a partir de um regime de resistência em relação à fome, ao frio, ao calor, ao sono: está em jogo, portanto, um corpo de abstinências.

Além do regime de abstinências há outro conjunto de práticas ascéticas: a prática das provas. Segundo Foucault, em sua leitura sobre a prática das provas na época imperial, “a

prova comporta sempre uma certa interrogação: interrogação de si sobre si”. Em uma prova

14 Sêneca – citado por Foucault – chega a “zombar das pessoas que passam o tempo a exercitar os braços, a

modelar os músculos, a avolumar o pescoço, a fortalecer o dorso.” A preparação para Sêneca deve abrir

trata-se “de medir o ponto de progresso em que se está, e de saber no fundo o que se é”

(2006a, p. 521). A prova é, portanto, um exercício formador, e como tal, se aproxima do próprio exercício do viver. Assim salienta: “a vida deve ser reconhecida, pensada, vivida,

praticada como uma perpétua prova” (p. 531).

1.4.1. O labor da ascese: a apropriação do dizer verdadeiro

A preparação que advém da prática ascética se incrusta nos músculos do indivíduo, constituindo seus modos de ser: eis aí, neste esforço de implicação das práticas no corpo, o labor da ascese.

No bojo desta constituição se inscreve o processo de subjetivação do discurso verdadeiro. Segundo Sêneca – citado por Foucault – o indivíduo só alcança este processo de subjetivação quando se ocupa com a escuta. O ato de ouvir planta sementes na alma daquele que se abre à escuta, portanto é uma atividade que requer atenção.

Citando Epicteto, diz Foucault que “na escuta, começamos a ter contato com a verdade” (2006a, p. 409), portanto, a escuta requer certa habilidade para se acolher o que é

dito. A prática assídua ajuda a desenvolver esta habilidade de escuta, mas a escuta só pode ser purificada através do silêncio.

Para Plutarco, como assinala Foucault, a aprendizagem do silêncio é um dos elementos essenciais da boa educação. Assim, a vida precisa ser pautada por “uma espécie de economia estrita da palavra. É preciso calar-se tanto quanto possível [...] não se deve falar quando um outro fala”. É preciso cercar a escuta com o silêncio e “não reconverter de imediato aquilo que se ouviu em discurso” (2006a, p. 410-411).

Todavia, o silêncio não é suficiente, como demarca Foucault (2006a), a partir da leitura de Plutarco. É preciso também certa atitude ativa que recruta o físico durante a escuta, como recurso para fazer brotar no corpo aquilo que foi plantado pela escuta. É preciso também ter atenção, sem a qual não se apreende o que é dito.

No pitagorismo, Foucault encontra as regras do silêncio pedagógico – o silêncio em relação à palavra do mestre. A palavra só é permitida aos alunos mais avançados e ao próprio mestre. O silêncio como um exercício de memória mantém o ouvinte na escuta e no registro da palavra dita pelo mestre. Todos os exercícios de aprendizagem partem deste exercício

primeiro, onde se aprende as duas coisas mais difíceis entre todas: “calar-se e escutar”

(2006a, p. 502).

1.4.2. A prática ascética na modernidade: o caso da capoeira

A verificação das práticas ascéticas na época imperial possibilitou entender como este período histórico organizou certas práticas e elaborou suas tecnologias de si.

Como desdobramento, é possível entender: ao tomar para si uma tecnologia, o indivíduo investe num labor que faz implicar esta tecnologia em seus músculos. Como efeito desta implicação, o indivíduo conquista acesso a um dizer verdadeiro por ele próprio tecido.

E o que é este dizer verdadeiro? É o discurso que se dá como efeito de um labor, no qual o indivíduo investe seu tempo, sua força e sua vontade para tomar para si certa técnica de viver e deslocá-la ao sabor de seus afetos. O dizer verdadeiro se dá sempre à conquista, no curso de um labor. O trabalho duro de um olhar que se volta sobre si abre esta possibilidade de conquista.

Inscreve-se neste labor, a atitude ascética, ou seja, uma atitude corajosa de modificação que mobiliza a constituição – sempre em deslocamento – do sujeito (CANDIOTTO, 2010, pp. 133-141).

O homem na modernidade se apropriou de algum modo da atitude ascética? Desta questão, interessa-nos um recorte: como o capoeirista toma para si esta atitude ao problematizar a capoeira em meio à elaboração que cria (e recria) de si mesmo?

A investigação colocará a pesquisa diante destas questões.

No documento O corpo em movimento na capoeira (páginas 34-37)

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