• Nenhum resultado encontrado

A dissolução do ponto de vista do observador

No documento O corpo em movimento na capoeira (páginas 60-62)

I – A INVESTIGAÇÃO EM PAUTA

5. A dissolução do ponto de vista do observador

Vejo os corpos em minha frente desatando um jogo corporal malicioso, circular, espiral. Concentro o olhar entre os oponentes. Firmo o foco... insisto no foco até que o desfoco....e a imagem se perturba. Mantenho a firmeza do olhar como que sintonizando outro canal perceptivo por sobre a imagem em minha frente. Não vejo mais detalhes, vejo só borrões em movimento... corpos... e o chão e o espaço entre os corpos... viajo literalmente... (Diário n. 21).

Um primeiro olhar sobre este fragmento de diário remete o leitor à ótica de um ponto de vista, em que uma identidade individualizada – o pesquisador – se permitiu a expressão do caso relatado. Todavia, os verbos conjugados na primeira pessoa do singular não concorrem a

17 Segundo Kastrup e Barros, explicitação designa “o ato de trazer à consciência uma dimensão pré-reflexiva da

ação” (PASSOS et al., 2009, p. 83).

18 Este movimento da escrita requer um aprendizado e uma atenção permanentes, sem os quais o pesquisador se

rende à sedução de uma política cognitiva que isola o objeto de estudos, na busca de soluções e regras forjadas fora do plano da experiência. Não há uma forma previamente estruturada que guia a produção dos diários de pesquisa. A única prerrogativa que se institui é a abertura do pesquisador ao movimento do território que se propõe investigar. Segundo Lourau, os diários “revelam as implicações do pesquisador e realizam restituições insuportáveis à instituição científica. Falam sobre a vivência do campo cotidiana e mostram como, realmente, se faz a pesquisa” (1993, p. 72).

favor do contorno de uma autoria, mas, antes, à sua dispersão, ao operar o traço de uma escrita forjada num campo problemático. Como isto foi possível?

Ao “ver”, “concentrar”, “firmar”, “insistir”, “manter”, o escritor “viajou”, ou seja, se permitiu escrever num nível perceptivo onde só existem “corpos... e o chão... e o espaço

entre os corpos”, isto é: relações em ato. Os verbos problematizam, isto é, criam um itinerário da observação que se orienta na direção de num espaço-tempo dinâmico, em torno do qual a percepção do escritor “viaja” para outros níveis, não localizáveis, onde vigora a presença virtual da razão múltipla, na face dionisíaca do sujeito larvar.19

A escrita que experimenta esta “viagem” transborda para além das bordas da autoria, abrindo passagem aos múltiplos pontos de vista que habitam uma mesma realidade estudada. Assim, ao se colocar junto à capoeira, o pesquisador habita também esta realidade e nela intervém. Como efeito, o ponto de vista do observador é dissolvido. À escritura resta o registro daquilo que insiste no caso estudado, como movimento, isto é, força de criação.

Convém salientar que não se deve confundir dissolução do ponto de vista do observador com anulação da observação. A dissolução do ponto de vista implica na desmontagem dos juízos de valor e da vigência linear e monótona da consciência. A solvência destes juízos eleva a intervenção para um plano coletivo, onde, como diria Guattari (2004), transita uma rede de comunicações transversais que atravessam o pesquisador em seu ato investigativo, atando produção de conhecimento e produção de realidade.20

A regência em primeira pessoa, portanto, antes de enunciar a identidade individualizada do pesquisador, coloca em cena a expressão de um “eu” dissolvido, aberto ao encontro furtivo com outros pontos de vista.21

19 O virtual, segundo Deleuze “de modo algum é uma noção vaga; ele possui uma plena realidade objetiva”

(2006, p. 386). As idéias, como movimentos singulares de um sujeito larvar atuante, encarnam-se na realidade virtual, e no enredar desta atuação encarnada – plenamente objetiva – são progressivamente determinadas. Tal determinação não se engendra na ordem do fundamento, mas se projeta na virtualidade da idéia, não existindo fora desta projeção – “dimensão temporal ideal”, que tem como operador a razão múltipla no traço furtivo do sujeito larvar (2006, p. 385).

20 Segundo Guattari (2004), a rede de comunicações transversais constitui o plano da transversalidade e expressa

uma dimensão da realidade que experimenta o cruzamento das várias forças que a compõem. O que é produzido nessa experiência concreta de comunicações transversais inaugura um plano de flutuações da experiência, que possibilita a habitação de vários pontos de vista em sua emergência, sem firmar identificação e apego a qualquer um destes pontos de vista. A prática de pesquisa que se abre a esta rede de comunicações transversais é também atravessada pelas múltiplas vozes que perpassam esta rede. Como efeito, a produção de conhecimento torna-se inseparável da produção da realidade.

21 Convém demarcar que a abertura a este “eu” dissolvido não implica em uma invasão irremediável da

subjetividade dentro do campo da pesquisa. Entre a neutralidade negada do pesquisador e as marcas coercivas de uma autoria que insiste em fechar a experiência dentro de um plano pessoal se inscreve o furtivo, o exercício

Segundo Lourau, a experiência da escrita sob os domínios desta dissolução abranda as pretensões coercivas da identidade, inscritas no plano pessoal, permitindo um acolhimento do outro e as variações da experiência.22 Nesta dissolução, a escrita comporta variações de velocidade que permitem a abertura a uma narrativa operada em uma espécie de transe (LOURAU, 1998).

A experiência da roda de capoeira ofereceu um caminho através do qual foi possível desbravar os domínios insondáveis deste transe.23 Lá, em ato, o escritor foi mobilizado, ou seja, esteve longe da acomodação de um lugar. Assim, implicado, fez a experiência da escrita: uma escrita que já não é mais sua, pois é não-local, tecida na fronteira, nos limites de um si fora de si.24

No documento O corpo em movimento na capoeira (páginas 60-62)

Documentos relacionados