• Nenhum resultado encontrado

O sentimento de realidade em Freud

2.1 A crença na realidade

Como mencionamos no início do capítulo, também foi possível encontrar, ao menos em Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen (1907[1906]), a utilização do conceito de crença na realidade aplicado de modo equivalente ao que se deu com o conceito de sentimento de realidade nos outros textos. Gostaríamos agora de investigar um pouco mais sobre o conceito da crença na realidade a fim de verificar se são sempre utilizados desse mesmo modo em Freud, designando sempre o mesmo fenômeno.

Na continuação do texto Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen (1907[1906]), encontramos mais uma aplicação do conceito de crença de realidade além daquela que mencionamos ao início desse capítulo. Agora, a utilização do termo está voltada à explicação da crença que o paciente tem em seu delírio, crença esta que não poderia ser facultada à incapacidade de julgamento, mas à parcela de verdade que existe nos delírios, “um elemento digno de fé, que é a origem da convicção do paciente” (p.75). O passo seguinte de Freud nesse texto é explicar como toda a convicção é formada da reunião de elementos verdadeiros com elementos falsos, não apenas a convicção proveniente do delírio, como também a convicção de qualquer formação normal de pensamento:

“Todos nós emprestamos nossa convicção a conteúdos de pensamento em que se combinam a verdade e o erro, deixando-a estender-se da primeira ao último. É como se a convicção se propagasse da verdade ao erro a ela ligado, protegendo-o das merecidas críticas, embora não tão vigorosamente como no caso de um delírio. Assim, também na psicologia normal, ser bem relacionado – ‘ter influência’, por assim dizer – pode substituir um valor real.” (Freud, 1907[1906]/1996, p.75).

O termo crença na realidade volta a aparecer no texto Suplemento metapsicológico à teoria dos sonhos (1917[1915]), agora relacionado ao problema da alucinação onírica e nas alucinações de estados patológicos. Como poderemos acompanhar, e como já avisa o título, boa parte da análise das alucinações será realizada a partir do fenômeno do sonho.

Freud afirma que os seres humanos, quando vão dormir, se despem de seus “invólucros” e suplementos corporais, como os óculos, dentes postiços, mas também despem suas mentes de boa parte das aquisições psíquicas e do seu interesse pelo mundo externo, aproximando-se “consideravelmente da situação na qual começaram a vida” (p.229). No estado de sono, algumas transformações aconteceriam no aparelho psíquico: a retirada de investimentos no mundo externo e da motilidade voluntária e também a regressão temporal que atinge o desenvolvimento do eu. Essa linha de desenvolvimento retorna a um de seus estágios iniciais, levando o aparelho psíquico a condições muito próximas aquelas de um narcisismo primário. Isso significa, em termos econômicos, a retirada de investimento de todas as representações de objeto presentes nos sistemas inconscientes e pré-conscientes, a retirada de investimento nos objetos externos e o investimento libidinal no eu. Desse modo, todas as sensações corporais durante o sono, são excessivamente investidas, fazendo com que “todas as sensações costumeiras do corpo assumam proporções gigantescas. Essa amplificação é por natureza hipocondríaca; depende da retirada de todas as catexias psíquicas do mundo externo para o ego (...).” (p. 230).

No entanto, esse cenário de quietude psíquica, no qual o eu pode dormir sem ser incomodado, só poderia existir, de fato, em um aparelho psíquico no qual não houvesse qualquer conflito entre suas instâncias de funcionamento. Será esse o problema apontado por Freud na passagem seguinte do texto, quando afirma que, se a explicação sobre o sono estivesse restrita apenas a sua condição narcísica, estaríamos diante de um paradoxo e já não haveria como elucidar que os impulsos de desejo inconsciente se manifestem formando os sonhos:

“Se o estado narcisista do sono tiver resultado num retração de todas as catexias dos sistemas Ics. e Pcs., então já não haverá qualquer possibilidade de que os resíduos pré-conscientes do dia venham a ser reforçados por impulsos instituais inconscientes, visto que estes cederam suas catexias ao ego. Aqui, a teoria da formação dos sonhos termina numa contradição, a menos que possamos salvá-la novamente

mediante uma modificação em nossa suposição sobre o narcisismo do sono” (Freud, 1917[1915]/1996, p. 232).

A resposta de Freud para esse impasse é simples: os impulsos de desejo, da parcela inconsciente recalcada, não atendem ao desejo de dormir do eu e sua exigência de abandono dos investimentos, passando a investir os traços mnêmicos diurnos e conseguindo, assim, se manifestar e ter acesso à consciência. Freud adverte que é por isso que “quanto mais fortes forem as catexias instintuais do Ics., mais instável será o sono.” (p. 232). No entanto, esse acesso dos impulsos de desejo à consciência não deixa de ocorrer sem embaraços, pois mesmo que diminuída em razão da via motora estar desinvestida, a censura entre os sistemas ainda existe. Devido a esse fato, os traços investidos pelos impulsos de desejo inconscientes deverão estar submetidos aos mecanismos de distorção, como deslocamento, condensação e a transformação de representação de palavras em representações de coisas, para só então poderem ter acesso à consciência.

Essa via de acesso que os traços mnêmicos investidos pelos impulsos de desejos recalcados seguem para chegarem à consciência possui um sentido contrário ao que ocorre normalmente, uma vez que vão dos traços pré-conscientes ao inconsciente e só então à percepção. Freud denomina essa inversão no caminho da excitação de regressão topográfica e afirma que, um pensamento, ao seguir o caminho da regressão topográfica e tornar-se consciente, é aceito como uma percepção sensorial real. É essa percepção sensorial aceita como real que faz com que a satisfação do impulso de desejo que animou os traços mnêmicos diurnos torne-se crível.

"A conclusão do processo onírico consiste no conteúdo do pensamento – regressivamente transformado e elaborado numa fantasia carregada de desejo –, tornando-se consciente como uma percepção sensorial; enquanto isso ocorre, ele passa por uma revisão secundária, à qual todo conceito perceptual está sujeito. O desejo onírico, como dizemos, é alucinado, e, como uma alucinação, encontra-se com a crença na realidade (Realitätsglaube) de sua satisfação.” (FREUD, 1917[1915]/1996, p.236).

Podemos notar que Freud sublinha tratar-se da crença na realidade da satisfação do desejo. Essa crença na satisfação dos desejos ocorre também nas alucinações dos estados patológicos, que percorrem a mesma via da regressão topográfica para se tornarem conscientes. A alucinação investida por impulsos de desejo, que percorre essa

via regressiva, tem como consequência para o aparelho psíquico não apenas conduzir os desejos inconscientes recalcados para a consciência, mas também, e por essa razão, levar o indivíduo “com toda a crença” a tomar esses desejos como satisfeitos.

“É de todo impossível sustentar que os desejos inconscientes devem necessariamente ser considerados como realidades tão logo se tenham tornado conscientes, pois, como sabemos, somos capazes de distinguir as realidades de ideias e desejos, por mais intensos que possam ser. Por outro lado, parece justificável presumir que a crença na realidade está vinculada à percepção através dos sentidos.” (Ibid., p. 237).

Mas, nesse ponto, Freud apresenta mais um paradoxo na teoria. Ainda que a regressão apresente à percepção consciente imagens mnêmicas muito claras, fruto de um investimento de impulsos de desejo inconscientes intensos, a maioria dos casos, mesmo diante dessas condições, não apresenta a crença na realidade dessas fantasias de desejo. Isso invalidaria a eficácia teórica da hipótese regressiva como explicação para a alucinação. Logo, deveria haver outro requisito, não exclusivamente baseado na regressão topográfica, para que a crença na realidade e a alucinação da satisfação do desejo ocorram.

Freud considera que existe uma função psíquica que é responsável por distinguir entre o que é a realidade e o que é somente pensamento ou desejo. Essa função foi denominada de teste de realidade e tem também como tarefa “orientar o indivíduo no mundo pela discriminação entre o que é interno e o que é externo” (p. 239). Freud é taxativo ao afirmar que o exercício dessa função é um atributo exclusivo do sistema da consciência11.

                                                                                                                          11

Nesse texto, Freud faz algumas considerações a respeito da Consciência, no entanto, avisa ao leitor que deixará em suspenso muitas considerações a respeito desse sistema para serem examinados depois. Segundo nota do editor, essa seria uma provável referência ao artigo sobre a consciência que deveria ter sido publicado junto com os demais artigos sobre metapsicologia que estavam sendo escritos por Freud durante o período da Primeira Guerra Mundial. Tal artigo nunca foi publicado e, assim, muitos aspectos a respeito da consciência, que poderiam elucidar algumas das questões da relação com a realidade, nunca foram elucidadas. No artigo de 1917 que estamos analisando, no momento em que vai explicar a respeito da relação entre alucinação e teste de realidade, Freud anuncia que “a resposta poderá ser dada se agora passarmos a definir mais precisamente o terceiro de nossos sistemas psíquicos, o sistema Cs., que até o momento não distinguimos nitidamente do Pcs. Em A Interpretação dos Sonhos já tínhamos sido levados a considerar a percepção consciente como a função de um sistema especial, ao qual atribuímos certas propriedades curiosas, e ao qual teremos agora bons motivos para atribuir também outras características. (...). Não obstante, mesmo assim, o fato de uma coisa se tornar consciente ainda não coincide inteiramente com o fato de ela pertencer a um sistema, pois aprendemos que é possível estarmos cônscios de imagens sensórias mnêmicas às quais de forma alguma podemos permitir uma localização psíquica nos sistemas Cs. ou Pcpt. Devemos, contudo, adiar o exame dessa dificuldade até que possamos focalizar nosso interesse no próprio sistema Cs.” (Freud, 1917/1996, p. 238).

O mecanismo funcionaria da seguinte forma. Como explicamos acima, na alucinação, traços mnêmicos investidos de impulsos de desejo atingem a consciência via regressão topográfica. Se o teste de realidade, que é capaz de estabelecer a diferença entre interno e externo, não estiver atuante, não há como o aparelho psíquico distinguir se aquela percepção que está atingindo a consciência o faz por vias internas ou externas. Já que isso não ocorre, essas fantasias de desejo que atingem a consciência pela via regressiva interna passam a ser críveis e ganhar estatuto de realidade assim como os traços que tiveram origem externa.

Contudo, Freud se pergunta de que forma poderia a alucinação suspender o teste de realidade, respondendo que isso só ocorre porque foram retirados os investimentos do sistema de percepções da consciência. Ou seja, uma vez que a função do teste de realidade é atributo exclusivo da consciência, apenas quando esse sistema está investido pelo eu é que o teste de realidade poderia operar. Mas, se o eu rompe suas relações com a realidade, por julgá-la de algum modo insuportável, e dela se desvia retirando os investimentos do sistema Cs, o teste de realidade não pode mais ser acionado, e outra realidade, a realidade dos desejos, passaria então a reinar.

No texto, existem duas explicações diferentes para cada tipo de alucinação: alucinação que ocorre nos estados patológicos e aquela que ocorre no sonho. Nos dois casos, há um desligamento do mundo externo pelo eu, esse desinvestimento libidinal que causa a inatividade do teste de realidade. No entanto, enquanto nos casos patológicos isso ocorre por uma negação da realidade, no caso dos sonhos isso só ocorre para que o sono aconteça. Freud explica que quando se trata dos casos patológicos, o que ocorre:

“(...) é a reação a uma perda que a realidade afirma, mas que o ego tem de negar, por achá-la insuportável. Portanto, o ego rompe sua relação com a realidade; retira a catexia do sistema de percepções, Cs. (...). Com esse desvio da realidade, o teste de realidade é posto de lado, as fantasias carregadas de desejo (irreprimidas, inteiramente conscientes) são capazes de exercer pressão avançando para dentro do sistema, sendo por ali consideradas como uma realidade melhor.” (Ibid. p.240).

No caso do sonho, a retirada de investimentos da consciência pelo eu não se daria pelo caráter insuportável de uma parte da realidade que precisa ser negada para dar espaço a uma nova realidade fantasmática substitutiva. O desinvestimento do mundo externo e da consciência pelo eu ocorreria apenas em função das condições exigidas

para que o sono aconteça e o estado de narcisismo primário possa se instalar. De modo que, para dormir, os seres humanos se despiriam não apenas de seus óculos e dentes postiços, como também de seu teste de realidade, fruto do desinvestimento do eu na consciência e no mundo externo.

Se voltarmos agora ao problema do qual partimos, poderemos avaliar que, ao longo do texto que acabamos de analisar, a equivalência semântica entre os termos crença na realidade e sentimento de realidade, uma vez estabelecida no texto Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen (1907[1906]), não se mantém. O sentimento de realidade tal como empregado nos textos A Interpretação dos Sonhos e História de uma neurose infantil não era fruto da falha do teste de realidade, tampouco uma alucinação uma vez que se contava com a distinção entre o sonho e a realidade. Os pacientes relatam saber que as imagens pertenciam ao sonho, entretanto, alguns fragmentos do sonho causam no sonhador a sensação de serem reais, ainda que o sonhador conseguisse distinguir entre o sonho e a realidade. Freud afirma tanto ao comentar os sonhos de Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen e História de uma neurose infantil que o sentimento de realidade proveniente dos sonhos não deveria ser considerado como um erro de julgamento da realidade.

Além disso, as descrições do sentimento de realidade que aparecem nesses textos de Freud, exceto pelo caso de Emmy Von R. que afirma não ser um sonho ou um delírio as situações com os animais em sua narrativa, em todos os outros três casos, os pacientes conseguem reconhecer que tiveram um sonho e que, apenas ao despertar, surgiu o sentimento de que algo no sonho era real. Desse modo, nos casos relatados em que o sentimento de realidade ocorreu, a função do teste de realidade parece ter sido preservada não havendo alteração no reconhecimento do externo e interno por parte do eu e tampouco houve alucinação. Logo, poderíamos afirmar que o fenômeno do sentimento de realidade e o teste de realidade não se encontram diretamente relacionados, como vimos ocorrer com o teste de realidade e a alucinação no texto freudiano de 1917.

Mas não deixa de ser intrigante a possibilidade de uma sensação de realidade permanecer mesmo após o teste de realidade haver ocorrido e ter sido certificado que se tratava apenas de um sonho.