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Totem e tabu e a hipótese perfectibilista.

Os desenvolvimentos do sentido de realidade

6.3 Totem e tabu e a hipótese perfectibilista.

Seria possível levantar uma objeção contra nossa hipótese, de que não há em Freud um desenvolvimento do sentido de realidade teleológico, fazendo uso das passagens que apresentamos sobre Totem e tabu (1913) e O futuro de uma ilusão (1927) em nosso primeiro capítulo.

Ao afirmar que os sistemas de pensamento animista e religioso estavam mais próximos ao regime do princípio de prazer e deveriam ser abandonados enquanto o pensamento científico, mais próximos do predomínio do princípio de realidade, deveria ser a meta que poderia direcionar os caminhos para a humanidade, poderíamos considerar que haveria nessa afirmação a ideia de um desenvolvimento de sentido de realidade com um fim pré-estabelecido e perfectibilista.

Seria possível, inclusive, lembrar a passagem no texto de 1927, em que Freud sugere que seja feita uma educação para a realidade de modo a se passar dos sistemas de pensamento animista e religioso em direção ao pensamento científico, no qual finalmente as ilusões seriam abandonadas.

“Terão de admitir para si mesmos toda a extensão de seu desamparo e insignificância na maquinaria do universo; não podem mais ser o centro da criação, o objeto de terno cuidado por parte de uma Providência beneficente. Estarão na mesma posição de uma criança que abandonou a casa paterna, onde se achava tão bem instalada e confortável. Mas não há dúvida de que o infantilismo está destinado a ser superado. Os homens não podem permanecer crianças para sempre; têm de, por fim, sair para a ‘vida hostil’. Podemos chamar isso de ‘educação para a realidade’.” (Freud, 1927/1996, p. 57).

Primeiramente, se pudéssemos classificar esse texto de Freud na série de metáforas apresentadas no capítulo anterior, ele estaria junto das hipóteses da ontogênese como repetição da série filogenética. Essa hipótese é explicitada por Freud no texto de Totem e tabu (1913), quando considera, por exemplo, que essas etapas do pensamento da humanidade seriam repetidas na história de cada indivíduo, e inclusive chegava a comparar o pensamento infantil e o pensamento primitivo.

Vimos no capítulo anterior como, no interior dessa hipótese que afirma que as trilhas traçadas pelos antepassados da espécie seriam repetidas resumidamente pelo indivíduo, tanto em seu desenvolvimento libidinal quanto no desenvolvimento de seu eu, havia também a consideração de que a atualização da série de recapitulações não estaria garantida de ocorrer na ontogênese. Talvez essas duas possibilidades, a da repetição regular da série mas também a possibilidade que isso não ocorra, expliquem as duas passagens de O futuro de uma ilusão (1927), em que Freud propõe a figura do professor sensato, que apenas não deve interferir na repetição de uma série de crescimento, e a passagem que citamos novamente acima na qual propõe a necessidade de uma educação para a realidade, para que a série possa ocorrer na ontogênese.

Perguntamo-nos se estaria sugerida a concepção da educação para a realidade como uma forma de garantir que o desenvolvimento do sentido de realidade ocorresse e colocasse um fim às ilusões do pensamento humano, de modo que não restassem mais vestígios de outras fases. Não entraremos aqui nas discussões que aproximam ou distanciam Freud de Augusto Comte ou do Iluminismo, ainda que essas questões estejam no horizonte desse debate. Interessa-nos aqui apenas o problema da existência da proposta de um fim perfectibilista para o desenvolvimento do sentido de realidade nos moldes propostos pela epigênese. Ou seja, se há possibilidade de afirmar que existe na obra freudiana a suposição de que o pensamento racional é a ultima forma do pensamento que eliminaria os outros moldes e que consiste na forma mais perfeita e harmônica de relação com a realidade.

A resposta para a possibilidade de convivência de traços residuais no desenvolvimento desses sistemas de pensamentos já está presente em pelo menos duas passagens da Conferência XXXV – A Questão de uma Weltanschauung (1933[1932]). Há essa passagem que citamos em nosso primeiro capítulo,

“Os senhores sabem como é difícil algo desaparecer após haver alguma vez conseguido expressão psíquica. Assim, não se

supreenderão ao ouvir dizer que muitas das expressões do animismo persistiram até hoje, na maior parte segundo o que chamamos superstição, paralelamente e por trás da religião. E, mais ainda, dificilmente os senhores poderão rejeitar o raciocínio de que a filosofia de hoje conservou alguns aspectos essenciais do modo animista de pensamento – a supervalorização da magia das palavras e a crença segundo a qual os fatos reais do mundo tomam o rumo que nosso pensamento deseja impor-lhes.” (Freud, 1933[1932]/1996, p. 162).

Mas há outra afirmação de Freud a respeito também da arte, que, segundo Freud, “quase sempre é inócua e benéfica; não procura ser nada mais do que uma ilusão” (Ibid., p.157).

Nossa resposta para a segunda questão se pauta na interpretação de Ines Loureiro, no capítulo três, intitulado “A Guerra às ilusões”, da terceira parte de seu livro O carvalho e o pinheiro (2002). A tese da autora, com a qual concordamos, afirma que a defesa de Freud da necessidade do abandono das ilusões do pensamento religioso não implica o fim dos conflitos pulsionais e a possibilidade de convivência harmônica entre os homens. Tampouco a passagem do pensamento religioso ao pensamento racional científico significaria o fim do sofrimento humano. Como afirma Loureiro, (2002), Freud deixa claro em O mal-estar na civilização que os avanços científicos e seus resultados tecnológicos não iriam garantir a eliminação do sofrimento humano, “até porque o próprio progresso traz consigo novas formas de sofrimento.” (Loureiro, 2002, p. 318).

A autora também retoma a seguinte passagem da resposta de Freud a Einstein no texto Por que a guerra? (1933) que visa justamente responder a essa questão. Ao considerar os recursos dos quais a humanidade poderia se valer para impedir a ocorrência de outra grande guerra, Freud chega a sugerir, entre as suas considerações, a importância da educação para a autonomia da razão:

“Um exemplo da desigualdade inata e irremovível dos homens é sua tendência a se classificarem em dois tipos, o dos líderes e o dos seguidores. Esses últimos constituem a vasta maioria; têm necessidade de uma autoridade que tome decisões por eles e à qual, na sua maioria devotam uma submissão ilimitada. Isto sugere que se deva dar mais atenção, do que até hoje se tem dado, à educação da camada superior dos homens dotados de mentalidade independente, não passível de intimidação e desejosa de manter-se fiel à verdade, cuja preocupação seja a de dirigir as massas dependentes. É desnecessário dizer que as usurpações cometidas pelo poder executivo do Estado e a proibição estabelecida pela Igreja contra a liberdade de pensamento não são

nada favoráveis à formação de uma classe desse tipo. A situação ideal, naturalmente, seria a comunidade humana que tivesse subordinado sua vida instintual ao domínio da razão. Nada mais poderia unir os homens de forma tão completa e firme, ainda que entre eles não houvesse vínculos emocionais. No entanto, com toda a probabilidade isto é uma expectativa utópica.” (Freud, 1933/1996, p. 206)

No entanto, como o final dessa passagem apresenta, a possibilidade da existência do domínio da razão era para Freud uma expectativa utópica. A consideração de ser utópica não invalida sua pertinência, mas aponta a possibilidade de criar outra ilusão não-benéfica para a humanidade. Para Freud as respostas que proponham soluções que se acreditem harmonizadoras para solucionar as questões do indivíduo com a civilização, de modo a um dia ser possível atingir-se uma perfeição, eram apenas outra ilusão que seria instaurada no lugar das ilusões religiosas destituídas.

“Como resultado do verdadeiro massacre a que submete as ilusões (o que não quer dizer que tenham sido eliminadas, ao contrário...), o mínimo que se pode dizer é que alguns ideais e valores profundamente enraizados na civilização ocidental passam a ser vistos como utopias. Convivência pacífica, perfectibilidade, e talvez não fosse inadequado generalizar, o anseio de felicidade – tudo isso é reputado como impossível. No entanto, nem por isso Freud abre mão de princípios e valores como norteadores da vida individual e social: o ataque às ilusões destrói certos ideais, abala outros, mas também conserva no horizonte vários desses ideais.” (Loureiro, 2002, p. 345).

Assim, acreditamos que, embora a passagem da humanidade ou do indivíduo para o pensamento científico represente para Freud muitos ganhos nos modos de relação com a realidade e com a verdade (ao consentir com a condição humana mortal, desamparada e precária), representando um avanço, não significaria a conquista de uma fase na qual a perfeição foi alcançada. O problema residiria em interpretar essa mudança como o final de um processo de desenvolvimento nos moldes de uma formação que se complete e leve à perfectibilidade e a harmonia com a realidade.

Na passagem abaixo retirada do texto freudiano Além do princípio do prazer (1920), o autor afirma que não há para os seres humanos uma pulsão para a perfeição, fruto apenas de seus ideais narcísicos:

“Pode também ser difícil, para muitos de nós, abandonar a crença de que existe em ação nos seres humanos um instinto para a perfeição, instinto que os trouxe a seu atual alto nível de realização intelectual e sublimação ética, e do qual se pode esperar que zele pelo seu

desenvolvimento em super-homens. Não tenho fé, contudo, na existência de tal instinto interno e não posso perceber por que essa ilusão benévola deva ser conservada. A evolução atual dos seres humanos não exige, segundo me parece, uma explicação diferente da dos animais. Aquilo que, numa minoria de indivíduos humanos, parece ser um impulso incansável no sentido de maior perfeição, pode ser facilmente compreendido como resultado da repressão instintual em que se baseia tudo o que é mais precioso na civilização humana. O instinto reprimido nunca deixa de esforçar-se em busca da satisfação completa, que consistiria na repetição de um experiência primária de satisfação.” (Freud, 1920/1996, p. 52).

Esse trecho citado acima deixa ainda mais consistente a hipótese de que não poderíamos sustentar com Freud a hipótese de um desenvolvimento teleológico que comportasse a ideia de aperfeiçoamento totalizante.