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Freud e a fantasia filogenética

e o conceito de desenvolvimento.

4.3 Freud e a fantasia filogenética

“Espero que o leitor, tendo notado pela forma maçante de muitos parágrafos como as observações foram montadas de maneira penosa e feitas com muito cuidado, seja tolerante, permitindo que a crítica ceda lugar à fantasia na apresentação de coisas incertas, embora estimulantes, o que justifico, na medida em que se pode, assim, abrir novas perspectivas.”, Sigmund Freud, Neuroses de Transferência.

Ao menos no que se refere às obras de Jung, Ferenczi e Zilboorg que foram apresentadas nos capítulos anteriores, é possível encontrar a ideia principal da teoria da recapitulação de Haeckel como um dos pressupostos teóricos fundamental. Abraham também foi um teórico que utilizou essa ideia e afirma textualmente que a “(...) psicanálise está constantemente encontrando confirmação do fato de que o indivíduo recapitula a história de sua espécie, também em seus aspectos psicológicos” (1970, p. 158), não deixando dúvidas a respeito de sua posição.

A obra de Ferenczi, no entanto, apresenta nuances em relação à concepção de desenvolvimento que tornam necessários maiores comentários para melhor apreendê-la. Ainda que o texto comentado no capítulo anterior demonstre ter havido uma adesão do autor às teses de Haeckel, nele também é possível notar um elemento estranho à teoria da recapitulação quando Ferenczi insere a importância do meio externo para que o desenvolvimento ontogenético ocorresse e houvesse a recapitulação da filogênese, fator esse que, como visto acima, não estava posto como condição prévia de recapitulação na teoria de Haeckel. Desse modo, no texto referido, o desenvolvimento não é o processo que testemunha a manifestação de uma tendência inata seguindo seu curso sem interferência externa rumo ao seu termo. Na hipótese apresentada por Ferenczi, o meio impõe resistências, as chamadas ondas de recalque, que parecem cavar um leito no qual o desenvolvimento do sentido de realidade pode seguir seu curso e alcançar sua meta progressivamente, uma fez que a tendência original é a regressão e não a progressão. Desse modo, é possível afirmar que há recapitulação, há etapas hierarquicamente diferenciadas, há uma escatologia para a ontogênese do sentido de realidade, mas esse processo não está garantido sem a determinação do meio.

Esse esquema explicativo se mantém na obra de Ferenczi e pode ser reencontrado em Thalassa, texto de 1926, acrescido de novas gradações representadas pela inserção das teses evolucionistas de Lamarck (citadas textualmente pelo autor) e do relevo dado à regressão. A observação da correspondência entre Ferenczi e Freud durante os anos iniciais primeira guerra mundial revelam que a importação para Thalassa das ideias de Lamarck não foi fortuita. Primeiramente, entre 1915 e 1916, é possível encontrar nas cartas entre os autores menções à teoria de Lamarck e a manifestação de interesse dos dois autores em realizar um projeto denominado por eles de o trabalho Lamarck, cujo objetivo era tecer conexões entre a psicanálise e as ideais lamarckistas. Em cartas posteriores, que datam de 1917, Freud anuncia que vai ceder o trabalho Lamarck a Ferenczi, que, de algum modo, parece tê-lo realizado em Thalassa.

No entanto, há mais de Lamarck nas cartas trocadas entre Freud e Ferenczi. Entre as cartas de 1914, há um manuscrito de Freud, recém descoberto, intitulado Neuroses de Transferência: uma síntese29que também ficou conhecido como fantasia filogenética. Tal escrito foi bastante influenciado pelo texto O desenvolvimento do sentido de realidade e seus estágios de Ferenczi, a ponto de Freud anunciar na carta que acompanha o manuscrito: “seus direitos autorais, no acima exposto, são evidentes”. Às ideias contidas no manuscrito, Ferenczi respondera com entusiasmo: “minhas fantasias ontogenéticas ganharam tão rapidamente uma irmã filogenética” (Grubrich-Simitis, 1987).

A irmã filogenética a que Ferenczi se refere está exposta no sexto item do manuscrito de Freud que versa a respeito da disposição à neurose. Elemento mais influente na escolha da neurose, a disposição seria uma espécie de inclinação a voltar a um determinado ponto do desenvolvimento que se sobressaiu ou no qual se permaneceu por muito tempo e que deixou resíduos, tal seria o ponto de fixação, que adviria de fatores inatos ou suscitado por impressões prematuras. No entanto, Freud logo faz a ressalva contra a alternância entre as duas origens da fixação – congênito ou adquirido – e afirma que os fatores trabalham em conjunto: aos elementos constitucionais somam-se os adquiridos precocemente.

“Onde se leva em consideração o elemento constitucional de fixação não se afasta o adquirido: retroage para um passado ainda mais remoto, já que se pode justamente afirmar que disposições herdadas são restos das aquisições dos antepassados. Com isso, chega-se ao problema da disposição filogenética atrás da individual, ou ontogenética, e não há contradição quando o indivíduo adiciona às suas disposições herdadas, baseadas em vivência anterior, as disposições recentes derivadas de vivências próprias.” (Freud, 1914/1987, p. 71).

Desse modo, além da disposição para se regredir aos pontos de fixação presentes na história do desenvolvimento do sujeito, há também a disposição de regressão aos pontos de fixação que foram herdados e estão presentes na história do desenvolvimento da espécie. Mais do que isso, Freud afirma a seguir que os pontos de fixação da ontogênese seriam reproduções dos pontos de fixação da filogênese. Ainda que afirme                                                                                                                          

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Alguns comentadores da obra preferem, para o título Übersicht der Übertragungsneurosen, a tradução Visão de conjunto das neuroses de transferência e não o título dado na tradução brasileira de Abram Eksterman publicada pela editora Imago em 1987 (Monzani, 1991).

que “ainda não é possível ter uma visão de conjunto sobre até que ponto a disposição filogenética pode contribuir para a compreensão das neuroses” (p.71), a seguir Freud afirma que “ainda é legítimo supor que também as neuroses têm de prestar seu testemunho sobre a história do desenvolvimento da alma humana.” (p.72). Apresenta-se aqui, portanto, que o modo como a neurose poderá prestar um testemunho a respeito da história do desenvolvimento da alma humana será através da repetição do desenvolvimento filogenético.

A partir dessa hipótese, Freud primeiro estabelece uma ordem cronológica de aparecimento das neuroses para a ontogênese e, a seguir, tenta relacioná-la com uma possível sequência de acontecimentos filogenética. Ou seja, Freud supõe um paralelo entre as duas séries cronológicas – a série ontogenética e a série filogenética – e procura encontrar, nos pontos de fixação de cada tipo de neurose, a repetição dos pontos de fixação da história da humanidade, as fases que foram marcantes por algum motivo ou que deixaram resíduos ao longo da história da espécie. Portanto, cada uma das neuroses, narcísicas e de transferência, repetiria uma das situações filogenéticas30.

Nesse ponto, Freud recorre às ideias de Fritz Wittel para poder teorizar a respeito de tais situações e fases da história da humanidade, teoria que afirma que “o primata teria passado sua existência num ambiente extremamente rico, satisfazendo todas as suas necessidades” (p. 74), teoria esta que Freud aproxima de um mito do paraíso original. Seguindo a teoria de Wittel, Freud afirma que teria havido um momento inicial no qual a humanidade conseguia satisfazer todas as suas necessidades, tanto as sexuais quanto as de auto conservação, uma espécie de paraíso original no qual a humanidade vivia sob a égide do princípio do prazer. Freud aceita também a tese de Ferenczi, apresentada em O desenvolvimento do sentido de realidade e seus estágios, segundo a qual o fim desse estado de prazer da humanidade ocorreu devido aos problemas e intempéries do meio externo, iniciados na era Glacial. A primeira reação da humanidade aos problemas do começo da era glacial foi a angústia frente ao perigo externo. Posteriormente, devido à diminuição da disponibilidade dos artigos para subsistência, surgiu o conflito entre a auto preservação e o prazer de procriar, sendo necessário, então, o controle da função genital. Em seguida, para continuar garantindo                                                                                                                          

30

Essa teoria freudiana influenciou a obra do médico psiquiatra alagoano Arthur Ramos em sua obra intitulada Primitivo e loucura (1926). De acordo com Pereira e Gutman (2007), “Arthur Ramos considerava que os fenômenos psicóticos consistiriam em expressões mórbidas do primitivo sufocado em cada sujeito e, para além do sujeito, da própria cultura, tal como Freud o proporia em seus estudos sobre as relações entre o inconsciente e a história das civilizações” (p. 520).

sua sobrevivência perante o meio hostil uma vez já tendo aprendido controlar sua libido, Freud descreve que o homem teria desenvolvido sua inteligência para pesquisar a natureza do mundo externo para dominá-lo; um equivalente próximo às descrições da instalação de um princípio de realidade feita no texto Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental, de 1911. Freud passa a descrever a formação da horda liderada pelo pai, a castração dos filhos, fases que foram posteriormente apresentadas em Totem e Tabu, relacionando-as sempre com as neuroses de transferência e narcísicas. Portanto, enquanto reações aos problemas da era glacial, as neuroses seriam a repetição desta criação humana, o que leva Freud a afirmar que “a neurose também é uma aquisição cultural” (p.80). Ou seja, os sintomas específicos que cada uma das neuroses apresenta, seria uma repetição das soluções encontradas pela humanidade perante os problemas que o meio externo lhe impôs.

Essa interpretação da neurose como repetição da reação da humanidade à catástrofe nos levaria, na leitura de Berlink (1999), a supor que, para Freud, a humanidade possuiria uma psicopatologia que lhe é fundamental:

“Em outras palavras, Freud postula, a partir de Wittels e Ferenczi, uma universalidade psicopatológica que, inicialmente, foi uma série de soluções criativas diante da catástrofe glacial. O homem é, assim, um ser da catástrofe e é a partir dela, e de uma capacidade criativa que se transforma em repetição, que o ser humano é uma espécie psicopatológica.” (Berlink, 1999, p.13).

Sequência Ontogenética

Regressão libidinal Sequência Filogenética

Histeria de angústia Privações impostas pela era glacial, a humanidade ficou angustiada

Histeria de conversão Orienta-se contra o primado dos genitais.

Conflito entre autopreservação e o prazer de procriar, proibições da função genital.

Neurose obsessiva Contra a fase anterior sádica.

Princípio da linguagem Pensamento onipotente Concepção anímica do mundo Horda primitiva comandada pelo pai.

Demência precoce Regressão ao auto- erotismo.

Despojados da virilidade, por isso a volta ao auto-erotismo.

Castração.

Paranoia Regressão à escolha homossexual e narcisista de objeto.

Fuga dos filhos

Satisfações sexuais homossexuais

Melancolia/ Mania Identificação narcisista com o objeto.

Morte do pai Trunfo e luto

Identificação com o pai

Tabela1: Descrição resumida das séries paralelas.

A admissão da tese de Haeckel na hipótese freudiana, apresentada no manuscrito destinado a Ferenczi, parece ser fato evidente. Nele, por diversas vezes Freud afirma que a ontogênese repete a filogênese. Entretanto, a explicação freudiana para as neuroses vai além da tese da recapitulação de Haeckel uma vez que ele afirma que as séries não podem ser totalmente sobrepostas, que há transformações nas neuroses, pois ela é “um compromisso entre as coisas antigas dos tempos primitivos e a exigência do culturalmente novo” (p.75), resultado do compromisso entre o que se conserva e o que se renova, entre repetição e a mudança. Se há uma espécie de programa filogenético pronto a ser repetido, a sua efetivação na ontogênese não se dá sem novas soluções e escolhas. Assim, em nossa leitura, a teoria da recapitulação de Haeckel não explicaria totalmente a origem das neuroses nesse manuscrito freudiano.

Contudo, Dunker (2002) afirma que a teoria que Freud expos no tópico sobre a Disposição “deu origem a versões mais próximas da psicologia do desenvolvimento em psicanálise” (p. 102). Não negamos que haja desenvolvimento em jogo nas teorias psicanalíticas ou nas teorias de psicologia que derivaram das descobertas freudianas, uma vez que não se trata de teorias que versam sobre esquemas ideais ou sobre um aparelho psíquico que não esteja de nenhum modo submetido ao tempo. No entanto, de que tipo de desenvolvimento se trata? Nessa afirmação, Dunker parece se referir às versões teóricas de psicologia nas quais o conceito de desenvolvimento utilizado aparece no sentido a que nos referimos acima como o mais divulgado e manifesto no século XIX, ou seja, aquele que entende o desenvolvimento como uma modificação gradual de uma organização menos complexa em direção a uma organização mais complexa e mais perfeita que se dá em uma escala temporal linear e progressiva.

Nosso próximo passo será verificar de que modo a teoria da recapitulação de Haeckel, admitida por Freud no tópico que versa sobre a disposição às neuroses no manuscrito, esteve presente ao longo de sua obra e se ela é o único modelo de desenvolvimento presente em seus textos, pois assim poderemos conferir a legitimidade da interpretação que levou à construção de teorias que adotam modelos desenvolvimentistas lineares e progressistas a partir de sua obra.

Capítulo 5